O Estado de S. Paulo
Tão urgente quanto combater e prevenir a calamidade natural é combater e prevenir a hecatombe civilizacional que nos atinge
No Estadão de ontem, uma breve nota, na página A12, narrou um acontecimento inacreditável, ultrajante, absurdo e, a despeito disso tudo, real. Segundo o relato, Tiago Queiroz e Renata Cafardo, repórteres deste matutino, foram agredidos com xingamentos e empurrões num condomínio de luxo na praia de Maresias, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Eles tinham entrado no local – com autorização de um funcionário e um grupo de moradores – para dar seguimento à cobertura da tragédia provocada pelas chuvas (e pelo desgoverno) na região. Lá dentro, além de estragos, encontraram a violência atávica deste nosso império colonial, com notas de irracionalidade completa. Entre os impropérios que ouviram, estavam as palavras “comunista” e “esquerdista”, dirigidas não apenas à dupla de profissionais, mas a este jornal, este mesmo, fundado em 1875, que você conhece muito bem.
A cena poderia figurar numa obra de ficção
distópica. À força, tentaram roubar o celular de Renata Cafardo, uma referência
nacional em jornalismo sobre educação. De Tiago Queiroz, fotógrafo, exigiram
que apagasse imagens da câmera. O horror. O município de São Sebastião, entre
mortos e desabrigados, entre cadáveres soterrados e famílias ao desamparo,
virou também cenário de uma tragédia suplementar, ainda mais aterradora: a
selvageria antiimprensa, com avalanches de infâmia.
O nome do empreendimento que serviu de
palco para tamanha hostilidade é Vila de Anoman – talvez em homenagem à
divindade do hinduísmo chamada Hanuman, que tem aspecto de macaco e representa
longevidade e espírito sagrado. A alusão mística, porém, desafina do reino dos
bens materiais. Não vai além do nome. O conjunto de casas espaçosas, com pouco
mais de 300 metros quadrados cada uma e “piscina privativa”, não traz outras
evocações transcendentes. O modo de alguns de seus frequentadores, tampouco.
Suas maneiras lembram mais a fúria dos temporais extremos.
Por que eles se comportam desse modo? O que
lhes terá passado pela cabeça para dizer o que disseram e agir como agiram? A
pergunta não deveria interessar apenas aos que estudam os descaminhos do ódio
em almas açoitadas por tempestades. Acima de tudo, deveria merecer a atenção
dos que se preocupam com a paz social no Brasil. No delírio embrutecido dos que
veem na função do repórter uma ameaça a ser expelida a pontapés se esconde a
chave de um desmoronamento político muito maior que o desastre natural que
agora nos assombra.
Não é verdade que, com a derrota do
bolsonarismo nas urnas, em 2022, o mal tenha sido debelado. Não foi. Ele está
aí, praticamente intacto em sua bestialidade. Está em São Sebastião, está em
Roraima, está no aumento exponencial do número de pessoas armadas no País. O
fanatismo saiu do poder, mas fará de tudo para voltar, tirando proveito das
rachaduras estruturais que atravessam os pilares do Estado Democrático de
Direito. As edificações institucionais deslizam sobre seus próprios alicerces
e, na imaginação dos fanáticos, somente mão cega, impiedosa e torpe poderá
resguardar os privilégios. Eles são violentos por despreparo – mas também por
método, convicção e instinto de sobrevivência.
O condomínio dos intolerantes até convive
por alguns dias com a lama que, sem ser convidada, veio se alojar na varanda
depois da chuvarada, mas não convive com a imprensa livre nem sequer por um
minuto. Para essa turma, a verificação dos fatos e o debate público só são
aceitáveis quando ficam “do meu portão para fora”. E, mesmo assim, com limites pétreos:
a mera pretensão iluminista de investigar os fatos com rigor já constitui uma
afronta insuportável, mesmo do lado de fora da “minha cerca”. Nenhum fato
poderá estar acima do imperativo que inscreve nos corpos as diferenças de
classe. A verdade factual há de estar subordinada, incondicionalmente, aos
interesses dos de cima.
Esse modo de ser e de viver é nosso velho
conhecido. A piscina “privativa” é tanto melhor quanto mais ela priva os
demais. O deck de madeira “exclusivo” encanta mais à medida que exclui o
vizinho. A piscina pode ser um tanquezinho chinfrim, não importa. “É minha!” Em
outras palavras, “aqui você não pisa”.
Quanto mais medíocre, mais inexpressiva e
mais subalterna for a banheira “privativa”, mais visceral será a ira do dono
que defende. A ilusão de ser superior a quem está imediatamente abaixo é mais
determinante que o tamanho da propriedade. Graças a isso, a fé nos privilégios
penetra no tecido social de alto a baixo, distribuindo migalhas em troca de
adesão ideológica. Um estilhaço de regalia vale mais do que um direito. Não
surpreende que, no meio do caos, o sujeito ilhado e miseravelmente sem
helicóptero ainda encontre disposição para chamar este jornal de “comunista” e
“esquerdista”. Por elogiar o bem comum, a imprensa terá de ser proscrita.
Tão urgente quanto combater e prevenir a
calamidade natural é combater e prevenir a hecatombe civilizacional que nos
atinge. Se descuidarmos, o que tivemos de pior entre 2019 e 2022 voltará em
doses mais altas.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
2 comentários:
Bolsonaro perdeu (por muito pouco), mas os milhões de bolsonaristas, violentos, armados e milicianos ainda estão por aí, dispostos a tudo... E mentirosos como sempre: Estadão esquerdista... kkkk
Quem sabe,sabe.
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