Correio Braziliense
Na segunda de carnaval, o presidente Lula
visitou o local do desastre e demonstrou disposição de trabalhar com um
adversário político, o governador Tarcísio, para socorrer as famílias
desabrigadas
A tragédia causada pelas chuvas torrenciais
em São Sebastião e adjacências, no litoral norte de São Paulo — provocada pela
degradação ambiental nas encostas da Serra do Mar e pelas mudanças climáticas
decorrentes do aquecimento global, para o qual contribui fortemente o
desmatamento da Amazônia —, foi como uma ducha de água fria em pleno carnaval.
Não desanimou os foliões de raça, principalmente nos grandes centros
carnavalescos, mas mexeu com quase todos, pelo drama humano que estamos vivendo
e a certeza de que o planeta realmente está passando por eventos climáticos
desastrosos, que aumentam de escala a cada ano.
O episódio serviu para nos mostrar a grande diferença entre os governos atual e anterior, negacionista do aquecimento global. Ao contrário do comportamento do ex-presidente Jair Bolsonaro durante a tragédia ocorrida em Santa Catarina, em dezembro passado, na segunda-feira de carnaval, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a base naval de Aratu, na Bahia, onde passava os dias de carnaval, para vistoriar os estragos, confortar a população e coordenar a ação de seu governo junto ao governo paulista e à prefeitura da cidade. Além da empatia com os flagelados, Lula demonstrou disposição de trabalhar com um adversário político, o governador Tarcísio de Freitas (PR), para tratar do que é mais importante: o socorro às vítimas e a recuperação da infraestrutura da região, principalmente a Rio-Santos, cujo tráfego foi interrompido.
Vendo as cenas pela tevê, lembrei-me do
último filme de Akira Kurosawa, Depois da chuva, concluído postumamente. Todo o
roteiro, a escalação do elenco e pré-produção foram realizados com o diretor em
vida. Ao falecer, em setembro de 1998, aos 88 anos, seu filho ofereceria a
direção para seu assistente, Takashi Koizumi, que a agarrou com as duas mãos.
Ilhei Misawa (Akira Terao) é um ronin em busca de emprego, que vive o dilema de
lutar ou não por dinheiro. Ao lado de sua mulher, Tayo Misawa (Yoshiko Miyazaki),
é obrigado a parar em uma pequena hospedaria, porque o rio que deveria
atravessar transbordou.
A chuva impede que as pessoas saiam para
trabalhar, sobretudo carregadores e artistas errantes. Demorará dias até que o
leito do rio volte ao normal e seja possível atravessá-lo novamente, o que gera
uma crise social, devido à falta de alimentos e aos desentendimentos que surgem
quando o egoísmo e o altruísmo estão em confronto aberto diante da escassez. O
humanismo de Kurosawa transborda na tela, ao final do filme: quando a chuva
passa, o ronin vai às compras e volta com os mantimentos para alimentar os
demais abrigados. A comida farta muda da água para o vinho o comportamento das
pessoas, que celebram a vida.
A analogia surge por causa das notícias de
que, ao lado da grande mobilização dos órgãos públicos e dos voluntários da
Defesa Civil, há uma grande demonstração de solidariedade entre os moradores e
da população paulista, por meio de doações de água potável, alimentos, roupas,
colchões e cobertores para os desabrigados. Infelizmente, também foram
registrados saques aos caminhões que transportavam essas doações, talvez por
necessidade, muito provavelmente por banditismo mesmo. Vimos também um governo
federal preocupado com os mais necessitados, trabalhando de forma coordenada.
Ontem mesmo, o presidente Lula já estava em Brasília, liderando seus ministros.
Carnaval da Imperatriz
Mas vamos falar de carnaval. A Imperatriz
Leopoldinense venceu o desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro pela 10ª
vez, depois de um jejum de 22 anos, com o enredo “O Aperreio do Cabra que o
Excomungado Tratou com Má-querença e o Santíssimo não Deu Guarida”. Fez um
desfile praticamente perfeito, que contou a saga de Lampião no contexto do
Nordeste da década de 1920. A Imperatriz trouxe Matheus Nachtergaele e Regina
Casé como Lampião e Maria Bonita, respectivamente, mas o grande destaque foi a
filha do casal, Expedita Ferreira da Silva, na última alegoria, que celebrava a
herança cultural de Lampião. Com 90 anos, também desfilou na Mancha Verde, no
domingo, em São Paulo.
Com três mil componentes divididos em 24
alas, com cinco carros alegóricos, a Imperatriz resgatou a vida de Lampião e
seu bando no imaginário popular nordestino, com seus beatos, repentistas,
cordelistas, carpideiras e mamulengos. O carnavalesco Leandro Vieira
desenvolveu um enredo inspirado nas histórias delirantes de cordéis
nordestinos, nosso realismo fantástico, que falam da chegada do cangaceiro
Lampião ao céu e ao inferno: A Chegada de Lampião no Inferno, O Grande Debate
que Teve Lampião com São Pedro e A Chegada de Lampião no Céu.
Lampião é um mítico anti-herói do nosso
cangaço. Na década de 1960, o historiador inglês Eric Hobsbawn incluiu Lampião
entre um grupo de criminosos “sociais”, porém se baseou mais nas lendas do que
nos fatos, como ele próprio admitiu. Para Alberto Passos Guimarães, foi um
fenômeno do banditismo das “classes perigosas”. O cangaço serviu de inspiração
para obras como Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; o Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna; e O Dragão da Maldade contra o Santo
Guerreiro, de Glauber Rocha. Produto da miséria, das injustiças sociais e da
violência nos sertões nordestinos, Lampião foi glamorizado pela cultura
popular, assim como o ronin de Kurosawa.
Um comentário:
Pois é.
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