O Estado de S. Paulo.
A República lhe deu espaço público para,
como jurista, senador e em duas campanhas presidenciais, defender a verdade
eleitoral, enfrentar a questão social e sustentar o civilismo
Há cem anos falecia Rui Barbosa. Merece
destaque a atualidade de seu legado, que se notabiliza por um fio condutor: “a
formação da esfera pública e a construção institucional da democracia no
Brasil”, como certeiramente realçou Bolívar Lamounier.
A Oração aos Moços foi seu discurso de
paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
onde se formou. Foi o seu balanço de 50 anos de trabalho na jurisprudência e de
serviços à Nação. Enfatizou que não atuou como “político fértil em meios e
manhas”. Empenhou-se em “inculcar ao povo os costumes de liberdade e à
República as leis do bom governo”, que fazem prosperar os Estados, moralizar a
sociedade e honrar as nações.
Rui é um paradigma da atuação dos advogados que souberam valer-se do Direito como instrumento da ação política, como observou Afonso Arinos. Na sua práxis, viveu o Direito não como abstração, mas em função do agir. A autonomia de jurista em relação ao poder é um traço marcante da personalidade de Rui, que não colocou o seu saber para acomodar impulsos arbitrários do pragmatismo de governantes ou justificativas de “razão de estado”.
No início da sua caminhada, teve ativa
participação, em parceria com Joaquim Nabuco, na campanha abolicionista.
Fulminou “a legalidade caduca do cativeiro”. Realçou que a questão da
escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam,
pois “encarna em si o começo da solução de todas as demais”. Certeira colocação
ainda pendente de encaminhamento, pois a herança da escravidão persiste com a
agenda do racismo estrutural.
Lembro os inovadores pareceres sobre o
ensino, apresentados na Câmara dos Deputados do Império. Lastreiam-se no papel
da educação para o desenvolvimento material e moral do nosso país e dão ênfase
à ciência e ao método experimental.
Foi a República que deu a Rui espaço
público para, como jurista, senador e nas suas duas campanhas presidenciais,
defender a verdade eleitoral, enfrentar a questão social e sustentar o
civilismo: “Civilismo quer dizer ordem civil, ordem jurídica, a saber: governo
das leis contraposto ao governo de arbítrio, ao governo da força, ao governo da
espada”.
O papel de Rui na feitura da Constituição
de 1891 é parte dos seus grandes serviços à Nação. A ele se deve o federalismo,
que contrapôs à monarquia unitária e centralizadora.
Devem-se a Rui a criação do Supremo
Tribunal Federal e seu papel de guarda da Constituição, com a sustentação de
seu “direito-dever” de conter atos usurpatórios do governo e do Congresso
mediante a afirmação da “lei das leis”, que está acima da legislação ordinária.
Rui promoveu a separação da Igreja do
Estado e a laicidade consagrada na Constituição de 1891 e nas subsequentes. A
laicidade significa que o Estado se dessolidariza de toda e qualquer religião,
em função de um muro de separação entre o que cabe a ele e o que cabe à
sociedade civil como esfera autônoma para o exercício da liberdade religiosa e
de consciência. Num Estado laico, as normas religiosas são conselhos e
orientações no âmbito da sociedade civil aos fiéis, e não comandos para toda a
sociedade.
Rui, na Oração aos Moços, englobou na
missão do advogado a magistratura de uma justiça militante. Protótipo do
exercício desta missão foi a pioneira defesa, em 1895, da inocência de Dreyfus,
um grande exemplo na França de quebra da “verdade ante o poder”, com a
flagrante denegação da justiça, por meio de um processo operado no segredo de
um tribunal militar. Entreviu que a verdadeira causa de condenação de Dreyfus
foi o antissemitismo, que na França daquele momento vivia “o espasmo do ódio
insaciável”.
O texto de Rui foi escrito na Inglaterra,
publicado no Brasil
e data de seu período de exílio, a que se
viu forçado pelo arbítrio da presidência Floriano Peixoto. Foi, depois, vertido
para o francês e circulou na Europa.
Baptista Pereira, seu genro e próximo colaborador,
identificou no texto de Rui “uma autópsia de militarismo”, válido para o Brasil
de Floriano, que postergou na experiência de vida de Rui a vigência das
garantias legais, às quais se dedicou na implantação da República, almejando a
construção institucional da democracia em nosso país.
O texto de Rui sobre Dreyfus corrobora a
defesa que fez em 1920 sobre o dever da verdade – nos debates, nos atos, no
governo, na tribuna, na imprensa – e da transparência do espaço público, pois
“o poder não é um antro, é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um
farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça”. Daí a inaceitabilidade
da falsificação e da mentira nas instituições. Desnecessário destacar a
vigência da sua mensagem.
Em 1949 Oswald de Andrade sublinhou que Rui
tinha a capacidade do sacrifício e sempre soube perder. Por isso, “como a
semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele sempre soube
morrer pelo dia seguinte do Brasil”. A árvore da liberdade e a construção
institucional da democracia estão subjacentes à atualidade do seu legado.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores (1992; 2001-2002)
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