Lula manteve opacidade no Orçamento
O Globo
Mas, com aumento nas emendas de
parlamentares, nem isso lhe garante força para ditar agenda no Congresso
Ao acabar com as emendas do relator,
identificadas pela sigla RP9 no Orçamento da União, o Supremo Tribunal Federal
(STF) acreditou prestar um serviço ao país. No discurso, valorizava a
transparência dando um basta ao esquema de compra de votos que sustentou apoio
parlamentar ao governo Jair Bolsonaro e à alocação de recursos públicos seguindo
critérios paroquiais, não técnicos. Na prática, as brechas continuam abertas.
Os critérios adotados no Orçamento de 2023 desenham um quadro não muito
diferente, quando não pior, do existente sob Bolsonaro.
Para começar, os recursos à disposição dos
congressistas aumentaram. As verbas previstas para 2023 somavam R$ 47 bilhões,
ante emendas de R$ 43,1 bilhões em 2020, R$ 37,1 bilhões em 2021 e R$ 26,2
bilhões em 2022 (em valores corrigidos até 15 de março). Nunca o Orçamento lhes
destinou tanto dinheiro (há dez anos, as emendas giravam ao redor de R$ 15
bilhões).
Metade (R$ 9,8 bilhões) do valor previsto para as banidas emendas do relator foi incorporada às emendas individuais, cuja execução é obrigatória (RP6). Na dotação inicial, o total das RP6s saltou de R$ 11,7 bilhões para R$ 21,5 bilhões. Cada deputado federal teria neste ano R$ 32,5 milhões à disposição, e cada senador R$ 59,8 milhões — antes ambos tinham R$ 19,7 milhões.
Depois, a maior parte das emendas
individuais foi transferida às rubricas correspondentes às bancadas (RP7),
também de execução obrigatória, e às comissões do Congresso (RP8). E ainda
foram alocados mais R$ 7,7 bilhões na rubrica RP8, antes raramente usada (em
2022, somou só R$ 315 milhões). As RP8s são alocadas segundo a conveniência das
lideranças do Congresso, sem deixar claros os responsáveis pela destinação.
Esse pedaço do Orçamento, portanto, continua secreto.
A segunda metade do valor das emendas do relator
foi incorporada ao orçamento discricionário dos ministérios, sob a rubrica RP2.
Por um acordo com o Executivo, a liberação desses recursos continuará
dependendo do aval do Congresso. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo,
não foi criado nenhum mecanismo para saber quem é o deputado ou senador
responsável pela destinação. Mais um pedaço do orçamento que continuará
secreto.
Na campanha eleitoral, Luiz Inácio Lula da
Silva chamou o orçamento secreto de “excrescência” e prometeu restabelecer
práticas republicanas no relacionamento com o Legislativo. Eleito, cedeu às
demandas para manter a opacidade. Na certa imaginava que isso lhe permitiria
liberar verbas quando precisasse de apoio. A falta de transparência é
justificada pela necessidade de “governabilidade”. Permite dar a uns — os que
votam com o governo —, mas não a outros — os que não votam. Não há objeção
razoável a destinar mais recursos a aliados, desde que de modo transparente.
Mas os políticos preferem a opacidade, temendo os escândalos associados ao toma
lá dá cá.
Neste governo, multiplicaram-se os recursos
disponíveis a deputados e senadores sem que precisem fazer esforço. Isso enfraquece
o Executivo. Os parlamentares precisam menos de Lula do que precisavam de
Bolsonaro com o orçamento secreto. Não é um acaso que a agenda legislativa do
governo esteja paralisada e que, como lembrou recentemente o presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Lula não tenha votos para aprovar um simples
Projeto de Lei. A “governabilidade” virou meta distante.
Plataformas digitais são coniventes com
desinformação da extrema direita
O Globo
Campanha contra a imprensa profissional
conta com beneplácito das redes sociais, conclui pesquisa
As plataformas digitais são coniventes com
a campanha contra a imprensa orquestrada por grupos de extrema direita nas
redes sociais e deveriam ser responsabilizadas por isso. Financiados por
políticos de pequena expressão e veiculadores de desinformação, esses grupos
contam com um ecossistema estruturado, revela a pesquisa “Ataques à imprensa”,
do laboratório dedicado a estudos de internet e redes sociais NetLab, da Escola
de Comunicação da UFRJ.
Entre 1º de janeiro de 2021 e 7 de setembro
de 2022, o YouTube apresentou 6.900 vídeos com termos relacionados a ataques à
imprensa. No total, foram vistos 532 milhões de vezes, receberam 102,5 milhões
de curtidas e 8 milhões de comentários. No mesmo período, foram registrados 5,7
milhões de publicações do tipo no Twitter. Os principais disseminadores foram
influenciadores e políticos de extrema direita. Eles contaram também com a ação
em larga escala de contas automáticas (robôs) para propagar as mensagens.
No Facebook, houve 86.700 publicações, que
provocaram 42 milhões de reações e 13 milhões de compartilhamentos. No
Instagram, 27.300 publicações com 86 milhões de curtidas. No WhatsApp foram
vistas 78 mil mensagens em 230 grupos públicos monitorados. No Telegram, um
número maior: 124 mil mensagens em 703 grupos e canais. Entre 9 de outubro de
2020 e 22 de agosto de 2022, foram 4.800 vídeos no Tik Tok, com 280,3 milhões
de visualizações. Nessa plataforma, chama a atenção a estratégia de misturar
entretenimento e desinformação.
Desqualificar a imprensa profissional é uma
estratégia política adotada por esses grupos na tentativa de ser ouvidos e de
arrebanhar mais adeptos à realidade alternativa. As narrativas de ataque,
segundo o estudo, estão estabelecidas: 1) a “mídia” representa o
“establishment” e manipula o “povo”; 2) os grupos de extrema direita defendem a
“liberdade de expressão” e revelam a “verdade”; 3) a imprensa profissional é
“autoritária” e quer calar a extrema direita; 4) ela defende imoralidades
contra a família; 5) ela conspira com os institutos de pesquisa; 6) ela dá
muito espaço às mulheres. O principal alvo da campanha, segundo o levantamento,
é a TV Globo.
No período analisado, políticos eleitos ou
em busca de um mandato foram os responsáveis pela publicação de 45% dos
anúncios. Pela estimativa do NetLab, a Meta (dona de Facebook, WhatsApp e
Instagram) faturou pelo menos R$ 770 mil com esses anúncios atacando imprensa
entre abril de 2018 e abril de 2022. Embora gostem de falar dos mecanismos de
moderação, as plataformas digitais privilegiam o engajamento gerado pela
desinformação, favorável a seus modelos de negócios. A lógica não é a liberdade
de expressão. É o que gera mais caixa, independentemente dos efeitos que isso
possa ter no debate público, na imprensa profissional, na busca da verdade e na
democracia.
Teleprompter já
Folha de S. Paulo
Fala do presidente tem grande peso na
sociedade e deve ser tratada com cuidado
No Império brasileiro, os trabalhos
legislativos anuais abriam-se e encerravam-se com a "fala do trono".
Não obstante a alusão à oralidade, as peças eram na verdade escritas com
denodo, e seus termos, detidamente sopesados, antes da apresentação aos
parlamentares.
A República livrou-se do vezo absolutista
da velha tradição, mas não da centralidade do discurso para o exercício do
poder pelo chefe de Estado. A palavra do presidente tem grande peso na
sociedade e deveria receber melhor atenção do círculo governamental.
O improviso, decantado por seguidores seja
do atual mandatário, seja do seu antecessor, costuma ser traiçoeiro e custoso.
Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) embananou-se
com frases um tanto desconexas tratando de preguiça dos
indígenas, da miscigenação como um lado bom da escravidão e dos malefícios da
obesidade.
Um discurso organizado e preparado
antecipadamente com a ajuda de auxiliares familiarizados com os assuntos
tocaria nesses temas com eficácia e elegância.
A miscigenação pode conotar um alto grau de
liberdade para os indivíduos se relacionarem numa dada sociedade desde que não
haja violência nem submissão, como houve durante a escravidão no Brasil. A
obesidade é uma doença grave e crescente no país, embora devamos combater os
preconceitos contra pessoas obesas.
Numa dessas falações sem bússola, que
bajuladores aplaudem como geniais, Lula tachou de golpista o governo de Michel
Temer (MDB). Dois minutos de reflexão e um texto escrito à sua frente o teriam
poupado do ataque gratuito a aliados e potenciais aliados de seu terceiro
mandato.
Nos juros, a oratória destampada do
presidente resultou no oposto do que almejava. Queria, como aliás é o desejo
geral no país, que as taxas caíssem, mas as suas ameaças à autonomia do Banco
Central encareceram o crédito e postergaram a redução esperada da Selic.
A imagem do encantador de serpentes ou a do
pícaro que, com a sua prosódia melíflua, convence a plateia das teses mais
indigestas não combinam com o exercício da Presidência nas democracias modernas
—nem com Lula, haja vista seu desempenho errático nos debates eleitorais
recentes.
As responsabilidades políticas, econômicas
e sociais implicadas na mensagem do governante exigem que se dê a ela
tratamento profissional, protocolar e mediato. O uso mais frequente do
teleprompter, o dispositivo eletrônico que mostra ao presidente o que ele de
antemão se propôs a falar, faria um grande bem à República.
O gênio da lâmpada
Folha de S. Paulo
Medida sobre o crédito consignado é mais um
sinal de busca por soluções mágicas
Partiu do ministro Carlos Lupi, da
Previdência, a mais nova "genialidade" do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) —usando o
termo adotado pelo presidente, não sem ironia, para conter a
proliferação de ideias divulgadas sem maior embasamento por seus auxiliares.
O pedetista Lupi, que já fora desautorizado
após defender a revogação da reforma da Previdência, agora teve influência
decisiva na redução do teto de juros aplicável ao crédito consignado para
aposentados e pensionistas do INSS.
O corte da taxa —de 2,14% para 1,70% ao
mês— foi aprovado por
12 votos a 3 no Conselho Nacional da Previdência Social. Não parece
ter havido coordenação com o ministério da Fazenda, que no máximo teria
alertado contra a mudança.
O problema é que o limite pode inviabilizar
parte das operações por não cobrir os custos, que somam a taxa de captação dos
bancos, despesas administrativas e de distribuição, inadimplência e os encargos
tributários.
Ao menos 27 instituições operam com
consignado. Mas várias são de pequeno e médio porte, com custos de captação
acima dos de bancos de primeira linha, e já operavam com baixa rentabilidade.
Mesmo os maiores bancos terão de rever
procedimentos. A suspensão de novas concessões de crédito ocorreu até no Banco
do Brasil e na Caixa, o que demonstra a imprudência da decisão. Regras do Banco
Central impedem a concessão de crédito na modalidade se houver rentabilidade
negativa.
A consequência deve ser a limitação da
oferta, que vinha rodando entre R$ 5 bilhões e 7 bilhões ao mês. Cerca de 14,5
milhões de aposentados tomam empréstimo consignado. Agora, qualquer dinheiro
novo poderá ficar concentrado em tomadores com menor risco, pelo menos enquanto
não houver redução da taxa básica de juros, hoje em 13,75% anuais.
O freio dos bancos públicos gerou revolta
em parte do governo e no PT. Lupi, por sua vez, disse não ter medo de cara
feia. Talvez o ministro se sensibilize com a contrariedade dos aposentados —os
de menor renda e idade mais avançada serão os mais prejudicados.
A ansiedade por medidas mágicas para
acelerar o crescimento se espalha pelo governo, causando disputas internas e
emitindo sinais confusos para a sociedade.
As genialidades criticadas por Lula só proliferam, porém, porque é ele quem até aqui demonstra preferir caminhos fáceis a escolhas prudentes para construir resultados sustentáveis a médio prazo.
Os grilhões da economia brasileira
O Estado de S. Paulo.
Na vanguarda do atraso em tributação,
gastos públicos, governança ou segurança jurídica, País devora oportunidades de
crescimento econômico e desenvolvimento humano
A liberdade econômica é, antes de tudo, uma
questão de princípio: a afirmação do direito de cada indivíduo de decidir por
si mesmo como orientar sua vida. Na constelação de valores liberais, ela é
retroalimentada por um compromisso universal com a dignidade humana, com a
distribuição do poder e com o progresso social por meio de debates e reformas.
A eficácia desse princípio é mensurável.
Primeiro, pela correlação entre liberdade econômica e renda per capita. Países
com níveis maiores de liberdade econômica têm níveis menores de pobreza. Mas os
benefícios sociais vão além das dimensões materialistas e monetárias. Estes
mesmos países gozam de índices melhores de desenvolvimento humano, como
expectativa de vida, educação, saúde ou segurança. A correlação entre liberdade
econômica e inovação também confere mais capacidade de vencer desafios
ambientais, notadamente o da energia limpa. Finalmente, há uma inegável relação
entre liberdade econômica e governança democrática.
Isso não autoriza a complacência ou a
idealização. Mesmo nos países mais alinhados à economia de mercado há grandes
desafios para reduzir desigualdades ou a concentração de poder político e
econômico e prover oportunidades de crescimento para todos. Mas, apesar das
imperfeições, essas nações foram mais capazes de criar aparatos de proteção e
inclusão dos desvalidos – o Estado de Bem-Estar Social – do que sistemas, em
teoria, radicalmente redistributivos, como o fascismo ou o socialismo.
Parafraseando Winston Churchill, o livre mercado é o pior sistema econômico –
exceto por todos os outros que já foram tentados.
Se o Brasil é proverbialmente o “país do
futuro” – que nunca chega –, é em parte porque reluta em se comprometer com
essa verdade. A Constituição assegura “a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo
nos casos previstos em lei”. Ou seja, em tese, a liberdade é a regra; e a
interferência estatal, a exceção. Na prática, é bem diferente. Segundo o Índice
de Liberdade Econômica de 2023 da Heritage Foundation, por exemplo, o Brasil
está na 127.ª posição entre 174 países e na 26.ª entre os 32 países da América
Latina.
O Índice classifica as economias em quatro
categorias – livres, moderadamente livres, majoritariamente não livres e
reprimidas – conforme quatro grandes critérios: Estado de Direito (direitos de
propriedade, eficácia judicial e integridade governamental); tamanho do Estado
(encargos tributários, gastos governamentais e saúde fiscal); eficiência
regulatória (liberdades de negócios, trabalhista e monetária); e abertura de
mercado (liberdades de comércio, investimento e finanças). Na maioria desses indicadores,
o Brasil está abaixo da média mundial, patinando no pelotão das economias
majoritariamente não livres.
Quando o PT subiu ao poder em 2003, o País
estava na 72.ª posição; quando o deixou, tinha caído para a 140.ª. O declínio
foi ligeiramente revertido desde a gestão de Michel Temer. Medidas recentes,
como a reforma trabalhista e a da Previdência, os marcos do gás e do saneamento
ou a autonomia do Banco Central, foram positivas. A Lei da Liberdade Econômica
também, mas em alguns pontos ela é cosmética; em outros, insuficiente ou até
distorciva. Mais robusto é o anteprojeto de lei elaborado por um grupo de
juristas sob a coordenação do professor Carlos Ari Sundfeld (FGV), que
contempla um marco jurídico amplo baseado nas melhores práticas internacionais,
tanto para proteger a liberdade econômica como para assegurar critérios de
racionalidade na regulação.
As perspectivas, infelizmente, são ruins.
Como se viu, o lulopetismo é parte maior do problema, sendo responsável por
retrocessos expressivos em áreas como encargos tributários, gastos públicos e
liberdade para fazer negócios. Mas Brasília é maior que o Palácio do Planalto e
o Brasil é maior que Brasília. Se a sociedade civil for capaz de se organizar,
de baixo para cima, de fora para dentro, pode impedir retrocessos e lançar os
pilares para futuros avanços.
A Argentina beira o abismo – de novo
O Estado de S. Paulo.
A realidade é dura, mas é a realidade. Se
não a aceitar e parar de congelar preços e imprimir pesos para cobrir gastos, o
país seguirá no labirinto de seu pesadelo inflacionário
“Se você sair da Argentina e voltar em 20
dias, tudo terá mudado; se voltar em 20 anos, nada terá mudado.” As
estatísticas oficiais confirmam o chiste, só que não são engraçadas: a inflação
ultrapassou 100%, uma das maiores do mundo e a mais alta e mais acelerada desde
a hiperinflação dos anos 80. “A fonte principal da inflação são os gastos
deficitários do governo, financiados por empréstimos do banco central”, alertou
o FMI – em 1958.
Mais estonteante que a capacidade do país
de reeditar erros é a de desperdiçar seu potencial. No início do século 20, as
exportações de carne e grãos lhe conferiam uma das maiores rendas per capita do
mundo. Hoje, ainda goza de uma portentosa produção agrícola, está sentado sobre
imensas reservas de xisto e lítio e tem um setor de tecnologia responsável pelo
mais bem-sucedido e-commerce da América Latina. Mas o mesmo pensamento mágico
que dilapidou a belle époque argentina sufoca as possibilidades de revivê-la.
Há décadas a confiança excessiva nas exportações de commodities, aliada a
gastos públicos insustentáveis, dispara ciclos de euforia e depressão que
perpetuam a instabilidade política e o declínio econômico.
Para evitar colapsos nas turbulências,
sucessivos governos deram calote em seus credores. Nos anos 90, Carlos Menem
adotou alguma ortodoxia econômica e o capital voltou a circular, mas logo foi
drenado por políticas fiscais frouxas, levando a uma nova debacle em 2001. O
resgate veio pelo superciclo das commodities. Os governos peronistas voltaram a
distribuir copiosos auxílios e subsídios. Findo o ciclo, a barca furada voltou
a fazer água. Novos calotes se seguiram e, de novo, o país perdeu acesso aos
créditos internacionais.
Para restaurá-lo, Mauricio Macri logrou, em
2018, um empréstimo de US$ 57 bilhões do FMI e fez reformas de austeridade. Mas
poucas e tardias. Os sinais de estabilização evaporaram quando um novo governo
peronista, de Alberto Fernández, retomou subsídios, congelamentos de preços,
muita impressão de dinheiro para custear gastos do governo e mais calotes.
Para piorar, o FMI, que, num tango
excruciantemente infindável, sempre foi o renitente cobrador de austeridade e
racionalidade de um renitente devedor perdulário, dá sinais de fadiga, adotando
a indulgência de certos consortes de alcoólatras. Nas últimas negociações, ele
fez pouco para disciplinar o vício argentino da “inconsistência entre um
ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de acordo social sobre como
financiá-lo”, que, segundo o exdiretor do FMI Alejandro Werner, “levou à
instabilidade macroeconômica, à variedade de controles que minam o setor
privado e à falta de previsibilidade da política regulatória”. Juntos, “esses
elementos formam um status quo econômico letal”. O inimigo público do peronismo
tornou-se, segundo ironizou o jornal La Nación, a “Thelma no Ford Thunderbird
que Louise acelera até o abismo”, referindo-se ao filme Thelma & Louise.
Não há saída indolor. Para despertar do
transe, a Argentina precisa de uma terapia de choque. Menos dolorosa, mas menos
eficaz, seria a via gradualista. Mas ambas, sobretudo a primeira, exigem
clareza, resolução e capital político. O governo não tem nada disso e, em ano
eleitoral, não quer forçar ingestões amargas, ainda que de um remédio vital. “É
como o dilema do bonde”, disse o ex-economista-chefe do banco central Eduardo
Levy. “Ninguém quer apertar o botão vermelho.” Espera-se que o eleitorado
aperte o botão de ejeção do peronismo, substituindo-o por alguém com coragem
para fazer o que precisa ser feito. Até lá, os desgraçados nos trilhos do bonde
aumentarão.
O drama argentino é uma advertência às
nações que arriscam entregar a populistas um Estado sem controles fiscais. No
Brasil, o último presidente depredou o teto de gastos que o atual considera uma
“estupidez”. Seu ministro da Economia promete um novo arcabouço, mas, enquanto
isso, o céu é o limite e o Brasil navega águas tormentosas sem uma âncora. Se
ele está longe do abismo beirado pela Argentina, não significa que não siga na
mesma direção.
Juízes rebeldes
O Estado de S. Paulo.
Insurgência contra resolução do CNJ que
determinou a volta ao trabalho presencial não pode passar impune
Desde o dia 16 de fevereiro, todos os
magistrados e demais servidores do Poder Judiciário deveriam ter retornado ao
trabalho presencial por força de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) publicada em novembro do ano passado. Foram três meses de preparação para
a volta à realidade pré-pandemia, à qual, há ainda mais tempo, já voltaram os
servidores dos Poderes Executivo e Legislativo.
Segundo o corregedor nacional de Justiça,
ministro Luis Felipe Salomão, a esmagadora maioria dos juízes (96%) e dos
serventuários (83%) cumpriu a determinação do CNJ e voltou às suas comarcas na
data estabelecida. Porém, um pequeno e barulhento grupo de juízes insurgentes
ameaça não só a autoridade do CNJ, órgão responsável por zelar pela eficiência
na prestação dos serviços judiciais no País, como, principalmente, a própria
imagem da Justiça perante a sociedade.
O grupo rebelde, autodenominado “Respeito à
Magistratura”, é composto por cerca de 800 juízes estaduais, federais e
trabalhistas. Eles elaboraram um “manifesto” a fim de “orientar” seus colegas a
descumprir o que consideram ser “atos administrativos manifestamente ilegais
que violem a Lei Orgânica da Magistratura”. Pasme o leitor, é como tratam a
resolução do CNJ.
Ora, é evidente que nada há de ilegal nessa
resolução. Ao determinar a volta ao trabalho presencial, o CNJ apenas
restabeleceu uma rotina à qual todos os magistrados e servidores estavam
habituados até pouco tempo atrás, suspensa apenas em razão da pandemia.
Por trás dessa alegação está a defesa de
interesses particulares e privilégios aos quais se aferrou essa minoria de
juízes e servidores. Alguns tiveram o desplante de alegar que, em decorrência
do trabalho remoto, fixaram residência no exterior e, portanto, estariam
fisicamente impedidos de retornar aos postos de trabalho.
Dado o evidente abrandamento da pandemia,
graças à vacinação, não há mais qualquer razão para que a prestação
jurisdicional continue sendo realizada a distância. Nos momentos mais
dramáticos da emergência sanitária, por óbvio, era melhor ter o socorro de
juízes protegidos do vírus em suas casas do que não ter socorro algum. Mas essa
crise já foi superada, de modo que o essencial contato presencial dos
magistrados com as partes e seus respectivos advogados deve voltar a ser
rotina.
Como muito bem disse ao Estadão o
presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, desembargador Carlos França, “o
magistrado tem de estar na comarca, conhecer sua unidade judiciária, conviver
com a sociedade local, estar disponível para falar com advogados e para
audiências”.
De fato, é “intolerável”, como classificou
o ministro Salomão, que juízes se insurjam a um só tempo contra a Constituição,
a Lei Orgânica da Magistratura e uma resolução do CNJ bastante razoável apenas
por suas idiossincrasias. Se estão em desacordo com as normas que regulamentam
a profissão, que escolham outra. E, enquanto isso, que seus atos de flagrante
indisciplina, em prejuízo do interesse público, sejam devidamente punidos.
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