domingo, 19 de março de 2023

Luiz Sérgio Henriques* - ‘A rosa de Hiroshima’

O Estado de S. Paulo.

Mal podemos imaginar o grau de beligerância num mundo em que autocratas dos mais variados coturnos conseguissem acesso irrestrito às alavancas e às salas de comando

Desde 1945 imagens de “crianças mudas telepáticas” e de “meninas cegas inexatas”, entre outras, passaram a indicar, de modo irrevogável, a possibilidade de autodestruição da humanidade sob a nova condição atômica. E a tal ponto que a ameaça absoluta representada pelo cogumelo obsceno – a “rosa com cirrose”, na intuição de Vinícius de Moraes – seria percebida por políticos responsáveis de todas as correntes. A partir daí o gênio não voltaria mais à garrafa de origem e vez por outra nos assombraria. Em alguns momentos, como na crise cubana dos mísseis, escapamos por um triz.

Talvez surpreenda hoje a afirmação de que um líder comunista, forjado nos anos de ferro e fogo, tenha apreendido tal ameaça em toda a sua extensão e complexidade. Palmiro Togliatti, respeitado dirigente do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), nos anos 1950 e 1960 do século 20 interpelaria em variados momentos a cultura católica “adversária”, buscando um terreno comum a partir do qual a “luta pela paz” saísse da esfera instrumental – inclusive da parte dos comunistas – e empolgasse multidões mundo afora.

Para Togliatti, a guerra já não era a continuação da política por outros meios, mas, antes, a abolição desta mesma política e, como consequência, “o possível suicídio de todos”. A Igreja de Constantino começava a definhar com os bons ares do Concílio Vaticano II e o tempo dos anátemas devia ficar progressivamente para trás. Seria, então, a hora do “diálogo” entre cristãos e marxistas, estes últimos, ainda por cima, chamados a deixar de lado aspectos ultrapassados da sua visão das religiões, herdados do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19.

Movimentos desta grandeza não dão frutos imediatos nem nascem numa só tradição. Germinam aos poucos, confluem com outras ideias e realidades, como a afirmação dos direitos humanos, a proposição da não violência e o surgimento das Nações Unidas no rastro destrutivo da 2.ª Guerra Mundial. Não há mais o comunismo histórico, ainda que algumas das suas versões altas, como a togliattiana, mereçam revisões e releituras. Por isso, a advertência contra o apocalipse nuclear e a percepção de que caminhamos “como sonâmbulos à beira do abismo” ressurgem com insistência, estimulando uma consciência aguda dos perigos ao redor.

Jürgen Habermas, por exemplo, uma espécie de “papa laico” da razão discursiva, tem forte influência na esfera pública europeia e mesmo global. Um dos últimos maîtres à penser, o filósofo não esconde afinidades eletivas com a social-democracia. Em ao menos duas intervenções, em maio de 2022 e em fevereiro de 2023, Habermas fez o que dele se esperava, denunciando inequivocamente a guerra de Putin e afastando-se dos extremos – de direita e de esquerda – que sentem o mesmo e estranho fascínio pelo autocrata. Observador das tragédias de dois séculos, que teimosamente parecem se repetir em espiral, o filósofo toma o claro partido da Ucrânia – uma nação tardia, ainda em formação – e simultaneamente adverte que não se derrota uma potência atômica.

A busca de “compromissos toleráveis” é o norte da bússola habermasiana. Tais compromissos, se conseguidos, é que permitiriam afastar o cenário que, em Bakhmut e outros lugares infelizes, lembra Verdun, a terrível batalha de posições do primeiro ato da prolongada guerra civil europeia do século passado. Na consciência humana deveriam se fixar, antes de tudo, o sofrimento das vítimas e o cancelamento da vida civilizada que ora invadem nossas telas cotidianamente. A urgência dos compromissos decorre da percepção deste sofrimento inaudito e inaceitável. À Rússia de Putin não se deveria reconhecer nenhuma vantagem posterior à invasão, voltandose assim ao status quo de pouco mais de um ano atrás.

O dilema ocidental está contido em momentos discrepantes que certamente escapam a reivindicações justas, mas “maximalistas”: a Ucrânia não deve perder a guerra, a qual, por seu turno, não pode deixar de joelhos o invasor. A primeira vive o tempo heroico – e, na verdade, irrefreável – típico dos processos de nation-building. No entanto, a autocracia russa, capaz de manipular a própria opinião pública e dela obter um consenso mais ou menos passivo, não será derrotada por forças de fora. Caberá aos cidadãos do grande país desafiar o ditador e seu regime, bem como desinflar o que Vladimir Lenin, a seu tempo e com grande conhecimento de causa, rotineiramente chamava de “chauvinismo grão-russo”.

Há ainda, em meio à tempestade, um sinal potente para todos os democratas. Putin, aparentemente tão poderoso, é uma ponta de iceberg, um dos rostos do movimento que envolve não só ditaduras afins, como também forças de extrema direita e esquerdistas desmiolados que solapam internamente nossas democracias. Mal podemos imaginar o grau de beligerância num mundo em que autocratas dos mais variados coturnos conseguissem acesso irrestrito às alavancas e às salas de comando. Teríamos certamente de renunciar à delicada razão lírica de Vinícius e nos abandonar, sem esperança, à prosa soturna de novos Orwells.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

 

2 comentários:

Marcus Cremonese disse...

Tenho tentado. Mas nesse punhado de linhas do penúltimo parágrafo, o enfoque preciso de Luiz Sérgio me faz, pela primeira vez, entender a realidade sombria – aterrorizante, até – que passou a envolver a Ucrânia (e partes do mundo). Um ano atrás, acreditávamos que haveria apenas uma invasão (sim, criminosa, como é sabido) e que ela duraria umas poucas semanas. Mas faltou aquele ingrediente, a efemeridade, elemento tão significativo no mundo digital com que já nos acostumamos. De fato, empurrando o contexto do presente numa tentativa de jogá-lo no passado, há sempre "o ditador e seu regime", a ser desafiado, como muito bem coloca o Luiz Sérgio. Gostaria de estar vivo quando o mundo, sacudindo a poeira das guerras (e seus efeitos globais), deixasse de ser tema para a "prosa soturna de novos Orwells".

ADEMAR AMANCIO disse...

Um belo artigo e um belo comentário.