quinta-feira, 16 de março de 2023

Cristiano Romero - Selo de bom pagador adiou adoção de NME

Valor Econômico

Banqueiros pressionaram agências por nova classificação em maio de 2008

As provas de que a democracia brasileira carece de instituições fortes que a protejam de interesses desestabilizadores de grupos de interesse específico se sucedem a cada governo. Apesar das conquistas obtidas tanto no campo da estabilidade política quanto econômica desde o fim do regime militar, em 1985, tudo pode mudar. O país vem convivendo com ameaças a essas duas conquistas desde 2011. E a nossa história é pródiga de momentos de interrupção da ordem institucional.

Um dos raros períodos de continuidade quase foi interrompido em abril de 2008, como vem revelando esta coluna. Naquele mês, um grupo de economistas de dentro e de fora do governo chegaram a convencer o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a dar um "cavalo de pau" na política econômica, que, pasmem, adotada em meados de 1999 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), vinha rendendo bons frutos.

Lula herdou o arcabouço de gestão macroeconômica de FHC e o aperfeiçoou, colocando o país na rota da estabilidade de preços de longo prazo, condição indispensável para a expansão do Produto Interno Bruto (PIB). Todos sabemos, porém, que ter inflação baixa e sob controle não faz, por si só, a economia crescer de maneira mais rápida.

É preciso, também, criar condições para que o setor privado se sinta confiante para investir no aumento de sua capacidade de produção. Isto só ocorre se empresários e investidores acreditarem que o Estado controlará seus gastos, de maneira a permitir que a poupança doméstica financie crescentemente os investimentos privados, e não as despesas públicas.

A popularidade de Lula só experimentou níveis desafiadores nos meses seguintes ao "mensalão" - entre agosto e dezembro de 2005, quando caiu a 25%, segundo o Datafolha. Dali em diante, cresceu sem parar. Mas, em abril de 2008, o quadro econômico "aterrador", projetado para 2010 pela maioria dos integrantes do convescote no Palácio do Planalto, deixou o presidente bastante preocupado.

Havia um fator não revelado para a conversa puxada pela turma liderada pelo então ministro da Fazenda, Guido Mantega: o Banco Central (BC) deixou claro, em seus comunicados, que promoveria novo ciclo de alta dos juros (Selic) a partir de abril. De fato, a Selic estava em 11,25% ao ano desde setembro de 2007. Ocorre que tanto a inflação corrente (5,04% nos 12 meses até abril de 2008) quanto as expectativas captadas pelo BC junto a mais de cem instituições financeiras e não financeiras estavam acima da meta de 4,5%.

Mantega propôs que Luiz Gonzaga Belluzzo assumisse a presidência do BC, no lugar de Henrique Meirelles, que ocupava o cargo desde janeiro de 2003. Lula autorizou o convite, mas sem oficializar a decisão. Meirelles visitou o presidente no Palácio da Alvorada num domingo e, sem tocar no assunto, já tornado público na ocasião, afirma que sua missão no BC estava cumprida. Lula, então, diz a Meirelles que, eleito deputado por Goiás em 2002, não fechasse a porta para política.

Meirelles entendeu que, naquele momento, não era, mas estava presidente do BC. Os maiores banqueiros do país, claro, foram informados do que estava por vir. Mesmo tendo acesso franqueado a Lula, evitaram o erro de procurá-lo para tentar convencê-lo a não demitir Meirelles. Quem conhece as mumunhas do poder em Brasília sabe que não se deve jamais dizer a um presidente o que deve fazer. Há maneiras mais cuidadosas de fazer uma mensagem relevante chegar ao primeiro mandatário do país.

O melhor caminho encontrado pelos banqueiros foi chamar para uma conversa nada agradável os responsáveis pela classificação de risco da dívida do Brasil - e, portanto, das empresas do país - nos mercados nacional e estrangeiro. Quem são? As agências S&P, Fitch, Moody's, entre outras.

A tertúlia se iniciou com uma indagação - “Por que vocês ainda não deram ao Brasil o grau de investimento [equivalente ao selo de bom pagador de dívidas], uma vez que o país já reúne todas as condições para isso?” -, seguiu com uma "lembrança" - "Nossas empresas e bancos têm contratos de classificação de risco com vocês" - e terminou com uma recomendação - "Façam o que têm que fazer porque esta situação é inaceitável".

Em maio, a S&P promove o Brasil e, assim, simbolicamente, fecha um dos piores capítulos de nossa história econômica, iniciado em 1982, quando o país quebrou, deu calote e passou a pagar credores externos de maneira seletiva, durante o episódio conhecido como "crise da dívida externa". Ato contínuo, banqueiros e empresários pesos pesados telefonaram a Lula para parabenizá-lo pela façanha e o sucesso de sua política econômica.

Lula, então, decide manter Meirelles no cargo, mas faltava ainda deixar isso claro tanto para o presidente do BC quanto para o mercado. Em telefonema, pergunta ao auxiliar: "Ô Meirelles, por que você nunca me chamou para jantar em sua casa?". "Não seja por isso, presidente. O senhor e dona Marisa estão convidados", respondeu, surpreso, o então chefe do BC.

Meirelles agendou o dia com o gabinete do presidente, chefiado então por Gilberto Carvalho, e conversou com Eva, sua esposa. "Amanhã, quando a imprensa souber que haverá o jantar, Brasília e São Paulo entenderão que Lula vem aqui à nossa casa para me demitir do BC."

No dia do evento, funcionários do Planalto, militares e agentes da Polícia Federal responsáveis pela segurança do presidente visitaram a casa de Meirelles. Às 20h, horário do jantar, Meirelles diz à Eva: "O presidente costuma se atrasar um pouco". Às 20h30, diz: "É normal". Às 21h30, ouve da esposa: "É assim mesmo?". Às 22h, Eva cobra do marido: "Henrique, o que eu faço os funcionários. Acho que você está sendo vítima de 'bolo'".

Meirelles decide ligar, então, para Gilberto Carvalho. "Meirelles, a agenda foi mantida. Houve um atraso, mas o Lula vai, sim", disse Gilberto, que, de tão próximo do presidente, era e é um dos únicos de seus assessores a referir-se a ele com o artigo definido "o" antes do nome. Passa mais um tempo e Meirelles procura novamente Gilberto, que lhe diz: "Meirelles, tentei falar com o Lula e fui informado de que ele já se recolheu com dona Marisa. Eu pensaria o seguinte: se o presidente usaria jantar para lhe demitir, como a imprensa noticiou, e o jantar não aconteceu...".

Meirelles acalmou dona Eva: "Eva, nossos convidados não virão para o jantar e nós não mudaremos de Brasília agora”. "House of Cards" à maneira brasileira.

 

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