Valor Econômico
Banqueiros pressionaram agências por nova
classificação em maio de 2008
As provas de que a democracia brasileira
carece de instituições fortes que a protejam de interesses desestabilizadores
de grupos de interesse específico se sucedem a cada governo. Apesar das
conquistas obtidas tanto no campo da estabilidade política quanto econômica
desde o fim do regime militar, em 1985, tudo pode mudar. O país vem convivendo
com ameaças a essas duas conquistas desde 2011. E a nossa história é pródiga de
momentos de interrupção da ordem institucional.
Um dos raros períodos de continuidade quase foi interrompido em abril de 2008, como vem revelando esta coluna. Naquele mês, um grupo de economistas de dentro e de fora do governo chegaram a convencer o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a dar um "cavalo de pau" na política econômica, que, pasmem, adotada em meados de 1999 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), vinha rendendo bons frutos.
Lula herdou o arcabouço de gestão
macroeconômica de FHC e o aperfeiçoou, colocando o país na rota da estabilidade
de preços de longo prazo, condição indispensável para a expansão do Produto
Interno Bruto (PIB). Todos sabemos, porém, que ter inflação baixa e sob
controle não faz, por si só, a economia crescer de maneira mais rápida.
É preciso, também, criar condições para que
o setor privado se sinta confiante para investir no aumento de sua capacidade
de produção. Isto só ocorre se empresários e investidores acreditarem que o
Estado controlará seus gastos, de maneira a permitir que a poupança doméstica
financie crescentemente os investimentos privados, e não as despesas públicas.
A popularidade de Lula só experimentou
níveis desafiadores nos meses seguintes ao "mensalão" - entre agosto
e dezembro de 2005, quando caiu a 25%, segundo o Datafolha. Dali em diante,
cresceu sem parar. Mas, em abril de 2008, o quadro econômico
"aterrador", projetado para 2010 pela maioria dos integrantes do
convescote no Palácio do Planalto, deixou o presidente bastante preocupado.
Havia um fator não revelado para a conversa
puxada pela turma liderada pelo então ministro da Fazenda, Guido Mantega: o
Banco Central (BC) deixou claro, em seus comunicados, que promoveria novo ciclo
de alta dos juros (Selic) a partir de abril. De fato, a Selic estava em 11,25%
ao ano desde setembro de 2007. Ocorre que tanto a inflação corrente (5,04% nos
12 meses até abril de 2008) quanto as expectativas captadas pelo BC junto a
mais de cem instituições financeiras e não financeiras estavam acima da meta de
4,5%.
Mantega propôs que Luiz Gonzaga Belluzzo
assumisse a presidência do BC, no lugar de Henrique Meirelles, que ocupava o
cargo desde janeiro de 2003. Lula autorizou o convite, mas sem oficializar a
decisão. Meirelles visitou o presidente no Palácio da Alvorada num domingo e,
sem tocar no assunto, já tornado público na ocasião, afirma que sua missão no
BC estava cumprida. Lula, então, diz a Meirelles que, eleito deputado por Goiás
em 2002, não fechasse a porta para política.
Meirelles entendeu que, naquele momento,
não era, mas estava presidente do BC. Os maiores banqueiros do país, claro,
foram informados do que estava por vir. Mesmo tendo acesso franqueado a Lula,
evitaram o erro de procurá-lo para tentar convencê-lo a não demitir Meirelles.
Quem conhece as mumunhas do poder em Brasília sabe que não se deve jamais dizer
a um presidente o que deve fazer. Há maneiras mais cuidadosas de fazer uma
mensagem relevante chegar ao primeiro mandatário do país.
O melhor caminho encontrado pelos
banqueiros foi chamar para uma conversa nada agradável os responsáveis pela
classificação de risco da dívida do Brasil - e, portanto, das empresas do país
- nos mercados nacional e estrangeiro. Quem são? As agências S&P, Fitch,
Moody's, entre outras.
A tertúlia se iniciou com uma indagação -
“Por que vocês ainda não deram ao Brasil o grau de investimento [equivalente ao
selo de bom pagador de dívidas], uma vez que o país já reúne todas as condições
para isso?” -, seguiu com uma "lembrança" - "Nossas empresas e
bancos têm contratos de classificação de risco com vocês" - e terminou com
uma recomendação - "Façam o que têm que fazer porque esta situação é
inaceitável".
Em maio, a S&P promove o Brasil e,
assim, simbolicamente, fecha um dos piores capítulos de nossa história econômica,
iniciado em 1982, quando o país quebrou, deu calote e passou a pagar credores
externos de maneira seletiva, durante o episódio conhecido como "crise da
dívida externa". Ato contínuo, banqueiros e empresários pesos pesados
telefonaram a Lula para parabenizá-lo pela façanha e o sucesso de sua política
econômica.
Lula, então, decide manter Meirelles no
cargo, mas faltava ainda deixar isso claro tanto para o presidente do BC quanto
para o mercado. Em telefonema, pergunta ao auxiliar: "Ô Meirelles, por que
você nunca me chamou para jantar em sua casa?". "Não seja por isso,
presidente. O senhor e dona Marisa estão convidados", respondeu, surpreso,
o então chefe do BC.
Meirelles agendou o dia com o gabinete do
presidente, chefiado então por Gilberto Carvalho, e conversou com Eva, sua
esposa. "Amanhã, quando a imprensa souber que haverá o jantar, Brasília e
São Paulo entenderão que Lula vem aqui à nossa casa para me demitir do
BC."
No dia do evento, funcionários do Planalto,
militares e agentes da Polícia Federal responsáveis pela segurança do
presidente visitaram a casa de Meirelles. Às 20h, horário do jantar, Meirelles
diz à Eva: "O presidente costuma se atrasar um pouco". Às 20h30, diz:
"É normal". Às 21h30, ouve da esposa: "É assim mesmo?". Às
22h, Eva cobra do marido: "Henrique, o que eu faço os funcionários. Acho
que você está sendo vítima de 'bolo'".
Meirelles decide ligar, então, para
Gilberto Carvalho. "Meirelles, a agenda foi mantida. Houve um atraso, mas
o Lula vai, sim", disse Gilberto, que, de tão próximo do presidente, era e
é um dos únicos de seus assessores a referir-se a ele com o artigo definido
"o" antes do nome. Passa mais um tempo e Meirelles procura novamente
Gilberto, que lhe diz: "Meirelles, tentei falar com o Lula e fui informado
de que ele já se recolheu com dona Marisa. Eu pensaria o seguinte: se o
presidente usaria jantar para lhe demitir, como a imprensa noticiou, e o jantar
não aconteceu...".
Meirelles acalmou dona Eva: "Eva,
nossos convidados não virão para o jantar e nós não mudaremos de Brasília
agora”. "House of Cards" à maneira brasileira.
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