O Estado de S. Paulo
Predisposição dos governos ao controle das contas públicas, quando não há ou é mais modesta, precisa ser motivada por sistemas de incentivos apropriados
A dívida pública precisa estacionar em
relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e, num segundo momento, diminuir. Esse
tem de ser o objetivo geral do novo arcabouço fiscal, no lugar do teto de
gastos. A nova regra precisa combinar: transparência, previsão de sanções para
o caso de descumprimento, flexibilidade e mecanismos que colaborem para manter
a nau no rumo mesmo quando os ventos não forem bons.
A título de sugestão, levei ao ministro Fernando Haddad, no mês passado, uma proposta formulada por mim em parceria com o economista e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) Josué Pellegrini. Na empreitada, contamos com a colaboração e comentários de outros especialistas: Renato Ramalho, Fernando Facury Scaff, José Roberto Afonso, Cristiane Coelho e Eduardo Walmsley Carneiro.
Não há regra tão boa a produzir, por si só,
responsabilidade fiscal permanente. A literatura relevante mostra que o
compromisso político em torno das leis é fundamental para o funcionamento do
arcabouço fiscal. Então, o desenho importa tanto quanto o pendor dos governos
pelo controle das contas públicas. E essa predisposição, quando não há ou é
mais modesta, precisa ser motivada por sistemas de incentivos apropriados.
Nada trivial. Em 2019, o economista Alberto
Alesina esteve em Brasília para prestigiar a cerimônia de entrega do Prêmio de
Monografias do Tesouro Nacional. Fiz a seguinte pergunta: “Por que, no Brasil,
temos Lei de Responsabilidade Fiscal, teto de gastos, regra de ouro (aquela
segundo a qual só se pode fazer dívida para investir) e outras regras
auxiliares, mas não conseguimos superar o problema fiscal?”. Ele foi muito
didático: “Países que não precisam de regras, por já apresentarem boa situação
fiscal, as cumprem; já aqueles que precisam, isto é, têm dívida alta e crescente,
as desrespeitam na maior parte do tempo”.
As regras devem funcionar como balizas para
o gasto e a receita, a fim de combater o chamado viés deficitário típico dos
governos. Vamo-nos entender: os governos existem para realizar políticas
públicas e todas elas têm custo. Em maior ou menor grau, portanto, há sempre um
programa de governo a ser executado e, para isso, é necessário arrecadar e
endividar-se. Assim, sem regras fiscais, o risco fiscal é maior.
Nossa proposta tem dois objetivos: 1) entre
dezembro de 2023 e 2026, a dívida bruta em porcentual do PIB deve desacelerar
em relação à taxa de aumento já contratada para o ano corrente; 2) num segundo
momento, de 2027 a 2036, a dívida deve diminuir, sempre em relação ao PIB, até
convergir para patamares compatíveis com a média dos países emergentes.
Em 2023, a dívida tende a crescer algo como
quatro pontos porcentuais do PIB, atingindo cerca de 77%. Se, até 2026, a
dívida subir outros cinco pontos, atingiríamos um pico de 82% do PIB, para
então iniciar trajetória de redução até 75% em 2036. Essa dinâmica requereria
um esforço fiscal primário relevante nos próximos anos. Isto é, seria preciso
conter o crescimento dos gastos e contar com arrecadação adicional.
Nas nossas contas, o gasto primário
aumentaria pela inflação, mas acrescida de uma taxa real equivalente à metade
do crescimento econômico dos últimos cinco anos. Dessa forma, ao mesmo tempo
que se alcançaria o controle do gasto, haveria espaço para ampliá-lo de modo
sustentável, abaixo do ritmo do PIB. Não se trata de um ajuste brusco, nem isso
seria possível ou desejável. Feitas as contas, é bastante razoável supor uma
regra para a despesa, com vistas a uma trajetória de dívida fidedigna e que
ajude a ancorar as expectativas do mercado.
Para atingir esse resultado, sugerimos que
a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA)
contemplem a trajetória de dívida esperada pelo governo, acompanhada das
medidas necessárias para cumprila. O resultado primário requerido, bem como as
projeções de receitas e as medidas do lado do gasto deverão ser explicitados. A
regra de gastos (inflação mais um incremento real, por exemplo) poderia ser
fixada em lei complementar, mas já contemplada na LDO para 2024.
Na LOA, eventual descumprimento da
trajetória de dívida teria de ser explicitada e as medidas de ajuste,
acionadas. Recomendamos que se utilizasse o próprio conjunto de gatilhos
introduzidos na Constituição federal pela Emenda n.º 109. Não há segredo: em
caso de expansão fiscal não prevista, o gasto tem de crescer menos. O ministro
da Fazenda teria de explicar ao Congresso, na mesma lógica do regime de metas à
inflação, os desvios em relação às estimativas.
Finalmente, propomos a criação de um fundo
de reserva fiscal, composto pelos eventuais excedentes de arrecadação em
relação ao resultado primário calculado e fixado para produzir determinada dinâmica
de dívida. A IFI seria constitucionalizada e passaria a ter a obrigação de
acompanhar todos os cálculos deste novo regime, inclusive cotejando metas,
resultados e estimativas oficiais aos produzidos pelo órgão.
Eis um caminho.
*Economista-chefe e sócio da Warren Rena,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e diretor-executivo
da IFI
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