quinta-feira, 16 de março de 2023

Malu Gaspar - O alerta potiguar

O Globo

De tempos em tempos, o crime organizado produz um espetáculo de violência e selvageria que nos lembra da pior maneira possível de uma de nossas mais graves lacunas, que nenhum governo foi capaz de sanar: a falta de uma política integrada de segurança pública, que submete os brasileiros à constante sensação de vulnerabilidade.

Nos últimos dias, o Rio Grande do Norte vem sofrendo com ataques a ônibus, prédios públicos e lojas que resultaram em três mortos e 43 presos. Para tentar conter a desordem, a governadora Fátima Bezerra (PT) recorreu ao governo federal, que enviou a Força Nacional*.

Pelo que se sabe até agora, os ataques têm relação com as péssimas condições nos presídios locais, com denúncias de tortura, superlotação e de comida estragada.

Em 2021, o Amazonas foi palco de crise semelhante, que também terminou com a chegada da Força Nacional. Em 2019, tinha acontecido no Ceará. Rebeliões nas penitenciárias de Pedrinhas, no Maranhão, e de Alcaçuz, no mesmo Rio Grande do Norte, já haviam legado à memória nacional imagens tenebrosas de presos decapitados e incinerados durante rebeliões.

Embora cada caso tenha um motivo particular, todos começaram com o “salve” de uma facção criminosa com ramificações nos presídios locais. Em todos houve uma resposta improvisada — como esparadrapos que cobrem as feridas, mas não curam o tecido doente.

O esparadrapo de Jair Bolsonaro foi a liberalização do acesso às armas, com a tentativa de implantar um “excludente de ilicitude” que, na prática, também servia como um “liberou geral” à violência policial. Como se vê, a política do tiro, porrada e bomba não fez os criminosos desaparecer, não reduziu o crime organizado, nem ajudou a impedir novos ataques e rebeliões.

Quando Bolsonaro assumiu o governo, o Brasil estava prestes a implantar o Sistema Único de Segurança Pública, criado em 2018 depois de um amplo debate do Congresso.

Mas o sistema, planejado para integrar as bases de dados sobre crime de todo o país, permitindo a articulação de operações e atividades de inteligência, foi esquecido e até hoje carece de regulamentação e estrutura. Se estivesse em funcionamento, poderia ter ajudado a prevenir os ataques no Rio Grande do Norte.

O desleixo com a segurança pública é fruto de uma característica comum à esquerda e à direita: a falta de coragem para discutir o tema em profundidade. Para boa parte da direita, política de segurança pública é matar bandido. A esquerda historicamente evita o assunto, que considera “questão de polícia”.

Na campanha, o time de Lula ensaiou um debate sobre segurança em que se propunha a reformulação das polícias, mas ele foi rapidamente sufocado. Temia-se a má repercussão numa fatia do eleitorado que poderia fazer diferença decisiva em favor de Bolsonaro.

Houve, ainda, uma intensa discussão sobre a necessidade de criar um Ministério da Segurança Pública separado do Ministério da Justiça, para manter o foco no combate ao crime sistêmico. O tema rachou os aliados do petista, que ao final optou por deixar tudo como estava.

Ontem, enquanto cem homens da Força Nacional desembarcavam em Natal, Lula anunciava a distribuição de 270 viaturas policiais licitadas* no governo passado e a recriação do Pronasci, um programa que financia de viaturas a delegacias, passando por programas de educação e ressocialização de presos.

No discurso, Lula falou da importância do acolhimento à mulher e do investimento em educação para reduzir a criminalidade, mas não disse uma palavra sobre os acontecimentos no Rio Grande do Norte, onde teve 65% dos votos no segundo turno.

Aliados de Lula têm sido explícitos ao dizer que, pelo menos neste primeiro semestre, não há chance de o governo investir num debate mais aprofundado sobre a reforma das polícias, a ampliação da Força Nacional ou qualquer outro tema espinhoso na área de segurança pública.

É até compreensível, dado que o Planalto ainda não conseguiu resolver nem mesmo questões bem mais simples, como a nomeação para os cargos de segundo e terceiro escalão. Ou mais urgentes, como a formação da base de apoio no Congresso. Mas não deixa de ser preocupante e certamente cobrará um preço.

Da última vez que a esquerda deixou no vácuo um tema tão importante para o brasileiro médio, teve que engolir a ascensão de Jair Bolsonaro.

Atualização às 8h48: O Ministério da Justiça informou que está apenas colaborando com o governo do Rio Grande do Norte e não realizou intervenção federal no sistema penitenciário do estado. O que está em curso é uma operação tática para estabilizar a situação nos presídios -- diferente da intervenção que ocorreu, por exemplo, no Distrito Federal após o 8 de janeiro. Também observou que as viaturas entregues ontem foram licitadas no governo passado, mas pagas (e portanto compradas) nesta gestão. Os trechos do texto original que continham essas informações foram corrigidos.

Nenhum comentário: