O Globo
De tempos em tempos, o crime organizado
produz um espetáculo de violência e
selvageria que nos lembra da pior maneira possível de uma de nossas mais graves
lacunas, que nenhum governo foi capaz de sanar: a falta de uma política
integrada de segurança pública, que submete os brasileiros à constante sensação
de vulnerabilidade.
Nos últimos dias, o Rio Grande do
Norte vem sofrendo com ataques a ônibus, prédios públicos e lojas que
resultaram em três mortos e 43 presos. Para tentar conter a desordem, a
governadora Fátima
Bezerra (PT) recorreu ao governo federal, que enviou a Força
Nacional*.
Pelo que se sabe até agora, os ataques têm relação com as péssimas condições nos presídios locais, com denúncias de tortura, superlotação e de comida estragada.
Em 2021, o Amazonas foi
palco de crise semelhante, que também terminou com a chegada da Força Nacional.
Em 2019, tinha acontecido no Ceará. Rebeliões nas
penitenciárias de Pedrinhas, no Maranhão, e de Alcaçuz, no mesmo Rio Grande do
Norte, já haviam legado à memória nacional imagens tenebrosas de presos
decapitados e incinerados durante rebeliões.
Embora cada caso tenha um motivo
particular, todos começaram com o “salve” de uma facção criminosa com
ramificações nos presídios locais. Em todos houve uma resposta improvisada —
como esparadrapos que cobrem as feridas, mas não curam o tecido doente.
O esparadrapo de Jair
Bolsonaro foi a liberalização do acesso às armas, com a tentativa de
implantar um “excludente de ilicitude” que, na prática, também servia como um
“liberou geral” à violência policial. Como se vê, a política do tiro, porrada e
bomba não fez os criminosos desaparecer, não reduziu o crime organizado, nem
ajudou a impedir novos ataques e rebeliões.
Quando Bolsonaro assumiu o governo, o
Brasil estava prestes a implantar o Sistema Único de Segurança Pública, criado
em 2018 depois de um amplo debate do Congresso.
Mas o sistema, planejado para integrar as
bases de dados sobre crime de todo o país, permitindo a articulação de
operações e atividades de inteligência, foi esquecido e até hoje carece de
regulamentação e estrutura. Se estivesse em funcionamento, poderia ter ajudado
a prevenir os ataques no Rio Grande do Norte.
O desleixo com a segurança pública é fruto
de uma característica comum à esquerda e à direita: a falta de coragem para
discutir o tema em profundidade. Para boa parte da direita, política de
segurança pública é matar bandido. A esquerda historicamente evita o assunto,
que considera “questão de polícia”.
Na campanha, o time de Lula ensaiou um
debate sobre segurança em que se propunha a reformulação das polícias, mas
ele foi rapidamente sufocado. Temia-se a má repercussão numa fatia do
eleitorado que poderia fazer diferença decisiva em favor de Bolsonaro.
Houve, ainda, uma intensa discussão sobre a
necessidade de criar um Ministério da Segurança Pública separado do Ministério
da Justiça, para manter o foco no combate ao crime sistêmico. O tema rachou os
aliados do petista, que ao final optou por deixar tudo como estava.
Ontem, enquanto cem homens da Força
Nacional desembarcavam em Natal, Lula anunciava a distribuição de 270 viaturas
policiais licitadas* no governo passado e a recriação do Pronasci, um programa
que financia de viaturas a delegacias, passando por programas de educação e
ressocialização de presos.
No discurso, Lula falou da importância do
acolhimento à mulher e do investimento em educação para reduzir a
criminalidade, mas não disse uma palavra sobre os acontecimentos no Rio Grande
do Norte, onde teve 65% dos votos no segundo turno.
Aliados de Lula têm sido explícitos ao
dizer que, pelo menos neste primeiro semestre, não há chance de o governo
investir num debate mais aprofundado sobre a reforma das polícias, a ampliação
da Força Nacional ou qualquer outro tema espinhoso na área de segurança
pública.
É até compreensível, dado que o Planalto
ainda não conseguiu resolver nem mesmo questões bem mais simples, como a
nomeação para os cargos de segundo e terceiro escalão. Ou mais urgentes, como a
formação da base de apoio no Congresso. Mas não deixa de ser preocupante e
certamente cobrará um preço.
Da última vez que a esquerda deixou no
vácuo um tema tão importante para o brasileiro médio, teve que engolir a
ascensão de Jair Bolsonaro.
Atualização às 8h48: O Ministério da Justiça informou que está apenas colaborando com o governo do Rio Grande do Norte e não realizou intervenção federal no sistema penitenciário do estado. O que está em curso é uma operação tática para estabilizar a situação nos presídios -- diferente da intervenção que ocorreu, por exemplo, no Distrito Federal após o 8 de janeiro. Também observou que as viaturas entregues ontem foram licitadas no governo passado, mas pagas (e portanto compradas) nesta gestão. Os trechos do texto original que continham essas informações foram corrigidos.
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