sexta-feira, 24 de março de 2023

Maria Cristina Fernandes - Um laboratório de bolsonarismo sem Bolsonaro

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Estado em que o ex-presidente tem maior representação, Rio Grande do Norte pode significar a sobrevivência de suas ideias

No final da tarde da sexta-feira, 17 de março, tocou o celular da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT). Era o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Naquela tarde, o senador havia encaminhado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva um ofício dando seguimento a um pedido de um senador da bancada potiguar, Styvenson Valentim (Podemos), por uma operação de Garantia da Lei e da Ordem em reação aos ataques à segurança pública do Estado.

Policial militar que ganhou popularidade em decorrência do rigor com o qual aplicava a Lei Seca no estado, Styvenson Valentim foi eleito ao Senado em 2018 na onda do bolsonarismo. Em janeiro, ele foi um dos sete senadores que votaram contra a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal em função da invasão e depredação das sedes dos Três Poderes. Decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a intervenção, ao contrário daquela que mais tarde seria estendida ao governo do estado pelo Supremo Tribunal Federal, precisava ter o aval do Senado.

Ao longo dos primeiros quatro anos em que esteve na presidência do Senado, em coabitação com o governo Jair Bolsonaro, Pacheco arquivou mais de 30 pedidos de impeachment de ministros do STF patrocinados pela bancada bolsonarista, mas resolveu levar adiante o pedido de intervenção militar no único estado, entre as 27 unidades da federação, governado por uma mulher.

Só depois de encaminhar o pedido de intervenção a Lula é que Pacheco ligou para a governadora. Há duas versões para o telefonema. A de Pacheco é que se tratou de um telefonema de “solidariedade” pela crise em que teria “reconhecido o esforço” do governo estadual. Havia, porém, decidido dar encaminhamento ao pedido depois de falar com os demais senadores da bancada potiguar na Casa ante a “grave crise gerada pelo crime organizado”.

A de Fátima Bezerra é que Pacheco ligou para se desculpar por ter agido sem antes tomar ciência, com o governo do estado, das medidas para o enfrentamento da crise. A governadora lhe disse que se a situação estivesse fora de controle ela seria a primeira a solicitar a medida ao presidente e que ele deveria tê-la procurado antes de dar encaminhamento ao pedido de intervenção. No relato de uma fonte que presenciou o telefonema, o tom de Fátima Bezerra não foi o de quem estava intimidada.

No dia em que os ataques começaram, com o incêndio de ônibus, delegacias e até depósitos de medicamentos, em 45 cidades do estado, Fátima Bezerra estava em Brasília para a recauchutagem do programa de segurança pública dos governos petistas, o Pronasci. Naquele mesmo dia pediu tropas da Força Nacional de Segurança.

Vinte minutos depois do telefonema de Pacheco, foi Lula quem ligou para a governadora. Se havia alguma dúvida sobre o açodamento do pedido do Senado, foi dissipado. A intervenção havia sido descartada, mas o episódio ligou um alerta para a chama acesa da crise da violência na sobrevivência do bolsonarismo. Dois dias depois, o presidente antecipou a ida do ministro da Justiça, Flavio Dino, a Natal.

O pedido de Styvenson Valentim mostra que a bancada bolsonarista continuará a fazer cavalo de batalha em torno do tema e se valer das intempéries da base governista no Congresso para impor desgastes à gestão Lula, principalmente em temas caros aos aliados do ex-presidente. Tanto Pacheco quanto o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se valem da bancada bolsonarista para o jogo de pressões com o Executivo.

Além disso, a primeira grande crise na segurança pública no governo Lula acontece no estado proporcionalmente mais bem representado no governo Bolsonaro. Tinha dois ministros: Fabio Faria (Comunicações) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional). Faria virou executivo do BTG, e Marinho, líder da oposição no Senado.

É do Rio Grande do Norte também um dos maiores fenômenos eleitorais da pauta da segurança. Aos 46 anos, Wendel Fagner de Almeida (PL) foi o deputado estadual mais votado da história potiguar, tendo recebido 88 mil votos. Proporcionalmente, o ex-policial civil, conhecido por Wendel Lagartixa, teve uma votação superior àquela de Eduardo Suplicy (PT), recordista de votos na Assembleia Legislativa de São Paulo.

Condenado por porte de armamento de uso restrito, Wendel Lagartixa fez campanha na prisão e saiu 15 dias antes da eleição. Nesta breve campanha foi gravado dizendo a uma eleitora que Lula deveria morrer. Durante um corpo a corpo na Região Metropolitana de Natal, foi alvo de um atentado que acabou por mobilizar o noticiário às vésperas do primeiro turno.

Sua eleição acabou impugnada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Estado. Ao votar pela manutenção da impugnação na semana passada, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral Ricardo Lewandowski citou ainda as ações a que Lagartixa responde. O ex-policial é acusado, entre outros crimes, de triplo homicídio qualificado e de pertencer a grupo de extermínio e milícia privada. No registro de sua candidatura, constam 13 páginas de certidões criminais, o que levou o ministro a defini-lo como de “alta periculosidade social”.

Estrela do PL no estado, Lagartixa é defendido no TSE por Eric Pereira, filho de Emmanoel Pereira, presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Desde o início dos ataques, Lagartixa tem apontado a “estranha coincidência” entre sua eclosão e o julgamento de sua diplomação no TSE. Chegou a divulgar um vídeo em que supostos integrantes do “Sindicato do Crime”, facção que reivindica os ataques, o ameaçam. Este mesmo trio, em outro vídeo, declina a lista de reivindicações ao governo do estado para a melhoria do sistema penitenciário.

O bolsonarismo sempre atribuiu ao exercício do poder pela esquerda o fortalecimento da pauta de direitos humanos nos presídios. Não é diferente desta vez. Os blogs bolsonaristas no estado têm bombardeado notícias falsas de que Lula e Fátima prometeram visita íntima, TV e banho quente nas celas, mas o Mecanismo Nacional e Prevenção e Combate à Tortura, subordinado ao Ministério dos Direitos Humanos, reportou o inverso: comida estragada, tortura física e psicológica e falta de assistência médica em quatro presídios do estado. O pacote de R$ 100 milhões anunciado por Dino não alimenta o discurso de oposição. Vai para armas, viaturas e presídios.

Basta cotejar os ataques da vez com a rebelião do presídio de Alcaçuz em 2017 que salta aos olhos a centralidade da situação prisional. Naquele ano, governava o estado o atual deputado federal pelo PL, Robinson Faria, pai de Fabio Faria. Sob seu comando, o estado alcançaria o topo do ranking de violência no país e receberia duas GLOs em menos de dois anos. A guerra das facções ficou carimbada na escultura de 26 corpos mutilados que, ao final da rebelião, formaram no pátio do pavilhão a sigla “PCC” à vista dos helicópteros da forças policiais, militares e das redes de TV.

Apesar de minoritária no presídio em Nísia Floresta, a 15 km de Natal, a facção havia prevalecido na guerra com o Sindicato do Crime, surgido anos antes em reação ao poder crescente da organização criminosa paulista no estado. Rebeliões sucessivas e uma permanente crise fiscal haviam entregue o presídio às facções. Os presos ficavam fora das celas. O acesso a comida, celular e visitas eram por eles controlados.

A tragédia que vinha sendo anunciada por autoridades e pelos familiares dos presos aconteceu. A melhor reportagem sobre o tema, “Alcaçuz, o presídio do absurdo” (presidiodealcacuz.com), coordenada pelo jornalista Everton Dantas, mostra o drama das mães obrigadas a enterrar filhos decapitados. A concretização da ameaça anunciada tampouco levou à apuração de responsabilidades. Há um inquérito, em segredo de justiça que, por enquanto, só avançou sobre os advogados do crime organizado.

Se a situação dos presídios não melhorou, houve, por outro lado, um aperto sobre as facções, ou melhor, sobre o Sindicato do Crime, já que o PCC, na avaliação da Segurança Pública do Estado, hoje atua mais no atacado de embarques clandestinos de droga para o exterior, arranjo que teria permitido uma pactuação entre as facções. Em janeiro, foi preso o fundador do Sindicato do Crime, facção que completa 10 anos em 27 de março. Ele estava foragido depois de cumprir pena por 10 anos, passar para o regime semiaberto e romper a tornozeleira eletrônica.

Com a eclosão dos ataques, dos quais é considerado mentor, este mentor da facção potiguar (José Kemps de Araújo) foi transferido para penitenciária federal. Além disso o cerco se estendeu para os advogados da facção presos sob a acusação de participação num esquema de troca de mensagens entre criminosos nos presídios do estado.

O endurecimento se estendeu à organização dos presídios. Em Alcaçuz não se pode mais circular pelos pavilhões. Na última reforma, nem mesmo os agentes penitenciários têm acesso aos presos. Toda a comunicação é feita por câmeras. Os presos também perderam acesso a energia nas celas, sendo mais difícil carregar celular.

A governadora reuniu o empresariado e prestou contas das medidas, entre as quais 123 suspeitos presos. O maior temor é o de que se espraiem acontecimentos como o da terça-feira, 14. Naquela noite, o proprietário de um supermercado foi morto por dois bandidos que, aproveitando o pavor provocado pelos ataques, invadiram o estabelecimento para assaltá-lo.

Alguns dos empresários presentes à reunião ecoaram o discurso da bancada potiguar do PL no Congresso e pediram intervenção federal no estado. Uma semana depois, a bancada bolsonarista na Assembleia Legislativa apresentaria um pedido de impeachment de Fátima Bezerra. Se Bolsonaro está cada vez mais longe de ter sua elegibilidade confirmada pelo TSE, sua pauta sobrevive. E ainda reagrupa desgarrados para além das fronteiras do Rio Grande do Norte e do bolsonarismo.

Maria Cristina Fernandes, 

 

3 comentários:

Anônimo disse...

Em tempo:
As jóias e as armas que o Bestanaro mandou entregar na CEF e na PF, dizem, foram compradas recentemente na 25 de março

ADEMAR AMANCIO disse...

Quanta violência!

Anônimo disse...

Texto MAGNÍFICO! A colunista demonstra, mais uma vez, a PODRIDÃO COMPLETA DO BOLSONARISMO, movimento de milicianos violentos e criminosos, participante das piores ações políticas inclusive em situações menos conhecidas, como esta violenta história da segurança pública do Rio Grande do Norte. A canalhice bolsonarista é INFINITA!