quinta-feira, 11 de maio de 2023

Maria Hermínia Tavares* - Deu a lógica no Chile

Folha de S. Paulo

Oposição tem incontrastável hegemonia para decidir como será a lei básica do país

No domingo passado (7), os chilenos consagraram nas urnas a extrema direita na disputa pelos 51 assentos no Conselho Constituinte, ao qual incumbirá redigir a nova Carta do país. Os republicanos de José Antonio Kast foram premiados com cerca de 36% dos votos; somados aos recebidos pela coalizão da direita tradicional, Chile Seguro, os opositores do governo de esquerda de Gabriel Boric desfrutarão de incontrastável hegemonia para decidir como será a lei básica da nação andina.

resultado das eleições é o ponto culminante de um processo que começou com a revolta popular de 2019, que os nacionais chamam de "el estallido" (o estrondo), abrindo caminho à vitória da esquerda renovada contra as forças políticas tradicionais de centro-esquerda e direita —tanto no pleito presidencial de 2021 como na disputa pela representação na Assembleia Constituinte do ano seguinte.

Os vitoriosos provinham de uma coalizão entre variados agrupamentos esquerdistas que compartilhavam compromissos com o ambientalismo, a igualdade de gênero e o reconhecimento de direitos dos povos originários. Coerentemente, o seu projeto de Constituição respaldava franquias sociais extensas, diversos mecanismos de participação e aborto legal —além de converter o Chile em estado plurinacional.

Faltou combinar com o povo.

Submetida a plebiscito, a proposta foi rejeitada por 60% dos eleitores. A alternativa foi voltar ao ponto de partida, delegando ao Conselho Constituinte a feitura de uma nova Carta —a ser igualmente submetida ao crivo dos eleitores.

Vista de perto, a crise política é tipicamente chilena. Só que compartilha traços semelhantes com outras tantas que se repetem na vizinhança.

Como no Chile, partidos e coligações de esquerda têm chegado ao poder graças à capacidade de colher votos além de suas bases fiéis, mais bem aferidas pelos resultados no primeiro turno —foram, por exemplo, 25,8% para Gabriel Boric e 18,9% para o peruano Pedro Castillo, em 2021, e 40,3% para o colombiano Gustavo Petro, em 2022.

São estreitas, assim, as margens para a implementação de políticas da esquerda pura e dura. As tentativas de levá-las adiante, na contramão da realidade, alimentam as alas direitistas mais radicais, contemplando-as com protagonismo crescente em muitos países, facilitando-lhes o trabalho de jogar lenha na fogueira da polarização política. O resultado é a crispação crescente do jogo democrático.

Não virá da ultradireita a iniciativa de pacificação dos ânimos. Esta só poderá partir das frondas da esquerda conscientes do seu efetivo tamanho; logo, abertas ao diálogo com quem pensa diferente.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

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