O Estado de S. Paulo
Em ‘Crime e Castigo’, o personagem converge à redenção. O PT, hoje uma pedra no sapato do Ministério da Fazenda do seu próprio governo, precisa inspirar-se nesse mote e começar a ajudar
Confesso que gosto deste termo: arcabouço
fiscal. É que ele remete a estrutura, conjunto de normas a balizar
comportamentos. Na Warren Rena, projetamos a dívida e o déficit após a
apresentação do tal arcabouço. As contas melhoraram, mas a proposta poderia
ganhar mais corpulência. Os erros passados seriam suplantados por este novo
compromisso, desde que genuíno, como o de Raskólnikov.
No cenário-base, projetamos déficit primário
(receita menos despesa sem contar juros da dívida) de 1,1% do PIB, em 2023, e
de 1%, no ano que vem. Portanto, a meta de zerar o déficit em 2024 seria
rompida, levando ao acionamento do gatilho previsto no art. 9.º-A introduzido
pela proposta do arcabouço na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Esse gatilho reduz a taxa de crescimento do
limite de despesas. No lugar de crescer a 70% da variação porcentual real da
receita líquida até junho, o gasto só poderá aumentar 50% dessa taxa. Ao
simular o efeito da medida, os déficits estimados remanescem, mas em clara
trajetória de melhora, até passar ao azul em 2031. Partindo de 1,0%, em 2024, o
déficit cai a 0,9%, em 2027; a 0,7%, em 2028; a 0,4%, em 2029; e a 0,3% do PIB,
em 2030, sendo zerado em 2031.
As projeções consideram que o PIB crescerá a 1,4%, em 2024, acelerando a 1,8% até 2026. Situar-se-ia em 2% ao ano na média de 2027 a 2032. Os juros reais sairiam de mais de 7,5% para algo como 4,5% e, no período final, para menos de 4% ao ano. A pressuposição é de que os juros nominais seriam menores na presença de uma regra fiscal crível, com inflação sob controle (convergindo a 4%, entre 2024 a 2025, e, depois, a 3,5% ao ano).
Nesse cenário, os gastos com a folha do
serviço público cresceriam apenas pela chamada taxa vegetativa, sem novos
reajustes salariais. Sairiam de 3,4% do PIB, em 2023, para 3,2% em 2026. Até
2032, estariam abaixo dos 3% do PIB. A correção para o salário mínimo seria
pela variação real do PIB de dois anos antes, somada à inflação até 2026. A
previdência sairia de 8,1% do PIB, em 2023, para 8,5%, em 2026, e 8,8% em 2032.
O abono salarial e o seguro-desemprego sairiam de 0,7% do PIB, em 2023, para
0,6%, em 2026, ficando estáveis até 2032. O Benefício de Prestação Continuada
(BPC) oscilaria entre 0,8% e 0,9% do PIB na década.
Nas despesas discricionárias, vale dizer: a
rigidez aumentou. As regras para a correção das despesas com saúde e educação –
os chamados mínimos constitucionais – voltarão a seguir a receita corrente
líquida e a receita de impostos líquida, respectivamente, em razão dos comandos
da Emenda Constitucional n.º 126/2022. Desse modo, é preciso calcular como a
parcela discricionária necessária para cumprir esses mínimos constitucionais
evoluirá; em seguida, verificar se ela espremerá o restante das
discricionárias. Concluímos que o ajuste não limitaria o custeio e o
investimento a níveis impeditivos.
Ademais, uma nova rigidez foi introduzida
pelo PLP 93, o projeto do novo arcabouço fiscal: os investimentos terão de
crescer no mínimo pela inflação.
Dadas todas essas restrições, e sob as
premissas enunciadas, o gasto discricionário ficaria em torno de 1,7% do PIB,
em 2023, para atingir 1,8% do PIB até 2026 e, então, diminuir a 1,5% até 2032.
Esse patamar atende aos requisitos anteriormente dispostos. A regra de gastos
proposta no bojo do novo arcabouço fiscal seria observada. Já a meta de
resultado primário, descumprida.
Os mecanismos introduzidos no próprio PLP
93 seriam acionados para restringir a evolução da despesa, resultando nas
trajetórias aqui expostas para os principais gastos e o primário, com receitas
pari passu ao PIB. A dívida/PIB aumentaria dos cerca de 73% do PIB, em 2022,
para 82,4% do PIB, em 2026, e 89,9% do PIB, em 2032, no cenário-base, o mais
provável. Ainda um patamar alto, mas, para ter claro: sem esse controle de
gastos do novo arcabouço, a dívida poderia encerrar 2026 em 87,5% do PIB,
avançando até 104,2% do PIB em 2032.
A verdade é que a presença da nova regra de
gastos pode evitar cenários bem piores. Por exemplo, se o governo concedesse
reajustes reais de 2% ao ano aos servidores, pagasse centenas de bilhões do
estoque de precatórios – mas sem resolver o problema em definitivo, como propus
no artigo passado – e corrigisse permanentemente o salário mínimo acima da
inflação, o espaço fiscal seria diminuto. Premissas importam. Este é o debate.
De todo modo, sem as receitas necessárias
para cumprir as metas de primário prometidas (partindo de zero de esforço
primário e aumentando em meio ponto do PIB ano a ano), o gatilho redutor do
crescimento do limite de despesa deveria ser mais duro. Por que não 20%? Isso
melhoraria o primário médio projetado para 2024 a 2032 em R$ 80 bilhões ao ano.
Claro que segurar o ímpeto expansionista seria imperativo para o gasto caber na
“regra engatilhada”.
Em Crime e Castigo, de Dostoievski,
Raskólnikov converge à redenção. O PT, hoje uma pedra no sapato do Ministério
da Fazenda do seu próprio governo, precisa inspirar-se nesse mote e começar a
ajudar. Não há tempo a perder. Os erros e criatividades contábeis passadas se
desmanchariam no ar se retomássemos a rota do crescimento em bases sólidas.
Economista-Chefe e sócio da Warren Rena,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022)
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