quarta-feira, 17 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Nova versão de regra fiscal ainda desperta dúvidas

O Globo

Relator acerta ao restabelecer contingenciamento e travas, porém modelo final está aquém do necessário

O relator do Projeto de Lei (PL) do arcabouço fiscal na Câmara, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), apresentou na segunda-feira mudanças no texto encaminhado pelo governo. O Congresso deverá votar agora o pedido de urgência para que o texto seja examinado pelo plenário a partir da semana que vem. O substitutivo de Cajado traz avanços importantes em relação à proposta do governo. Mesmo assim, continuam a pairar dúvidas sobre a capacidade de o novo arcabouço funcionar e garantir a estabilidade da dívida pública.

No formato original, o PL propunha um acompanhamento frouxo das contas ao longo do ano. Relatórios sobre receita e despesa do governo, hoje bimestrais, passariam a ser feitos apenas em março, junho e setembro. Em caso de risco para a meta de resultado primário, o governo não precisaria bloquear gastos. Cajado restabeleceu a periodicidade bimestral e a obrigatoriedade de cortes, ainda que de forma mais branda na comparação com a regra atual. O bloqueio proposto tem um limite para preservar um nível de gastos classificado como “mínimo”, que não poderá ser inferior a 75% das despesas discricionárias.

Ainda entre os avanços, o texto de Cajado prevê travas à irresponsabilidade fiscal. Se o governo não cumprir a meta de um ano, ficará proibido de criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa, de instituir ou aumentar auxílios e de conceder ou ampliar incentivos fiscais. Em caso de reincidência, ficarão vetados aumento ou reajustes ao funcionalismo, além de concursos públicos. Cajado também reduziu as exceções no cálculo da meta fiscal proposto pelo governo. Passarão a ser computados entre as depesas o Fundeb (da educação), aumentos de capital de estatais e gastos com o piso nacional de enfermagem.

Apesar do esforço do relator em chegar a uma proposta conciliadora, fica a impressão de que ele parou de corrigir os problemas do texto antes da hora. Se o projeto ficar assim, o ajuste será lento, pois a limitação do aumento do gasto em 2024 será inócua (ele poderá crescer 2,5%, o máximo permitido). A base das despesas será ampliada, com a inclusão de novos créditos adicionais. Fora isso, a exclusão de aumentos reais para o salário mínimo das travas propostas por Cajado criará problemas com os gastos na Previdência e gerará pressão sobre outras despesas. E, ainda que representem avanço, as travas se estendem demais no tempo. Um governo irresponsável poderá empurrar o ajuste com a barriga por anos sem sofrer sanção.

Arcabouço fiscal: relatório endurece regra, mas aumenta gastos no curto prazo

O modelo proposto por Cajado, assim como o PL do governo, continua dependente de forte aumento das receitas para funcionar, porque tem um mecanismo poderoso de elevação do gasto. A regra continua sendo ruim, pois despesas que crescerão puxadas pelos vínculos constitucionais (como saúde e educação) pressionarão inevitavelmente os demais gastos em qualquer momento de ajuste. É preferível haver alguma regra fiscal, mesmo que imperfeita, a não haver nenhuma. Mas seria melhor se o Congresso aperfeiçoasse o texto de Cajado.

Indícios de envolvimento em trama golpista chegam perto de Bolsonaro

O Globo

PF descobriu mensagens e áudios sugerindo contato entre ex-presidente e movimento antidemocrático

Depois de meses investigando os golpistas presos em 8 de janeiro — 795 já se tornaram réus no Supremo Tribunal Federal (STF) —, a Polícia Federal (PF) descobriu curiosamente numa operação sem relação com o vandalismo os principais indícios de relação do Palácio do Planalto com a tentativa de golpe. Eles vieram à tona na investigação sobre o cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro, que apreendeu os celulares do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e do ex-major Ailton Barros, expulso do Exército em 2006.

Os dois foram presos pela PF sob a acusação de envolvimento na fraude da vacinação. Mensagens e áudios nos celulares de ambos expõem, segundo relatório da PF revelado pelo GLOBO, a articulação de um plano para dar um golpe envolvendo ataques ao STF, às urnas eletrônicas e até a prisão do ministro Alexandre de Moraes.

Num dos áudios, revelado pela CNN Brasil, Barros cobra de Cid uma posição sobre a participação do ex-comandante do Exército no golpe. Duas capturas de tela mostram uma conversa entre Barros e um contato identificado como “PR 01”. De acordo com a PF, o personagem está “possivelmente relacionado ao ex-presidente Jair Bolsonaro” (a sigla PR é usada em referência ao presidente da República). As conversas tratam dos atos de 7 de setembro de 2021, espécie de embrião do movimento golpista do 8 de Janeiro.

Noutros dois áudios do celular de Barros, um militar não identificado tenta acelerar, diz o relatório, “um golpe de Estado, que culminaria na tomada de poder pelas Forças Armadas brasileiras, lideradas pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro”. Numa terceira gravação, encaminhada a Barros por um contato, um alto funcionário do governo informa que o comandante do Exército não tomaria a frente “nesse assunto” por temer as consequências. Barros responde com críticas ao Alto-Comando, dizendo que um dos generais estava “dificultando a vida do PR”. “Não cabe fazer pressão no PR”, diz Barros depois de xingar a cúpula do Exército.

É fundamental reconhecer que os comandantes militares resistiram às pressões golpistas, e a iniciativa aparentemente ficou restrita a um grupo de baixo escalão. Mas há, segundo a PF, indícios de que Barros, além de próximo de Cid, mantinha contato frequente com Bolsonaro, a quem chamou de “segundo irmão” em sua campanha para deputado estadual em 2022. Barros também acompanhou Bolsonaro na votação do segundo turno na Vila Militar do Rio de Janeiro.

Os áudios descobertos estão longe de ser prova definitiva do envolvimento de Bolsonaro em qualquer plano de golpe. Mas são o primeiro indício concreto que vincula os golpistas aos gabinetes mais reservados do Palácio do Planalto. Cabe à PF levar as investigações até o fim. O Brasil tem o direito de descobrir até onde chegou a conspiração para solapar a democracia. Se comprovado o envolvimento de Bolsonaro e seu círculo mais próximo, todos precisam ser punidos com o rigor da lei.

Barulho na Petrobras

Folha de S. Paulo

Estatal anuncia política vaga para os preços, mas intervenção maior será difícil

A Petrobras ocupa obviamente lugar de destaque na agenda passadista de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —a gigante estatal, afinal, espelhou à perfeição os momentos de prosperidade, megalomania, escândalos e, por fim, derrocada das administrações petistas.

Na campanha pelo terceiro mandato, Lula prometeu reviver os dias em que a companhia fixava seus preços não a partir das condições de mercado, mas da diretriz e da conveniência do governante da vez.

No último quadriênio, aliás, Jair Bolsonaro (PL) tentou pôr em prática o mesmo discurso populista, mas suas sucessivas trocas no comando da petroleira surtiram pouco ou nenhum efeito. Não será surpresa se o atual mandatário enfrentar dificuldades semelhantes.

Nesta terça-feira (16), a Petrobras divulgou que adotará uma política diferente para os preços dos combustíveis, em substituição à que vigorava desde 2016 e seguia de perto as cotações internacionais e a taxa de câmbio. Em seguida, anunciaram-se reduções —razoáveis— nos preços da gasolina, do óleo diesel e do gás de cozinha.

Investidores e especialistas do setor tiveram dificuldade em entender o exato teor das mudanças, mas petistas e aliados trataram de propagandear uma nova era, de preços "abrasileirados". Barulho à parte, a novidade foi bem recebida na Bolsa de Valores por não parecer tão novidade assim.

Há bons motivos para tal leitura. Em seu comunicado um tanto vago, a estatal apresenta uma estratégia mais flexível e menos previsível de reajustes de preços, mas indica que as cotações internacionais e a busca por rentabilidade continuarão sendo decisivas.

Acima disso, seguem em vigor os dispositivos da Lei das Estatais e do estatuto social da Petrobras que restringem a possibilidade de uso da empresa em políticas públicas.

Tudo isso nem de longe significa, claro, que estejam afastados os riscos que pairam sobre a gestão da petroleira. Para além da manipulação de preços, que gerou prejuízos bilionários há poucos anos, não é segredo que o governo pretende expandir novamente o raio de atuação da companhia —o que pode significar investimentos temerários e até reestatizações.

Quando o presidente da República determina o retorno de incentivos à indústria para a oferta de "carros populares", pode-se ter uma ideia da obsolescência das ideias em curso na administração.

Felizmente, tem havido resistência a retrocessos, como se vê agora, por exemplo, na reação do Congresso Nacional à tentativa de enfraquecer o marco legal do saneamento básico. Sem prejuízo das realizações do passado, Lula deveria reconhecer os avanços recentes do país e mirar o futuro.

Mulheres à obra

Folha de S. Paulo

Divisão de tarefas e creches são ações que aumentam a empregabilidade delas

Revoluções nos costumes ocorridas desde os anos 1960 libertaram a mulher do jugo doméstico. Todavia a maternidade e o cuidado do lar ainda dificultam a inserção feminina no mercado de trabalho.

Segundo levantamento do DataSocial, laboratório da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, feito a partir de dados do IBGE, de 1,9 milhão de mães com três ou mais filhos de 0 a 15 anos, quase 798,2 mil (ou 40,69%) não tinham um emprego remunerado entre outubro e dezembro de 2022 por causa dos afazeres domésticos.

A diferença em relação aos homens é brutal: apenas 0,62% (11,9 mil) dos pais na mesma condição estavam fora da força de trabalho devido ao mesmo motivo. Também em casais com dois filhos ou só um o abismo se verifica, com 28,83% e 21,89% das mulheres ausentes do mercado, respectivamente, ante 0,45% e 0,55% dos homens.

Apresentava-se uma tendência de queda desde 2012. Mas a pandemia elevou os números, dado o aumento do desemprego e do desalento no mercado de trabalho.

A sociedade brasileira ainda destina o cuidado do lar e dos filhos às mães. O resultado é uma exaustiva jornada dupla de trabalho que leva muitas a desistirem da vida profissional. É necessária, portanto, uma profunda mudança cultural: homens precisam dividir as tarefas mais pesadas do lar.

A desigualdade revela-se até na legislação. Enquanto mulheres têm 4 meses de licença após o parto garantidos pela CLT, homens têm apenas 5 dias —na Suécia, primeiro país a oferecer licença-paternidade em 1974, casais recebem 480 dias que podem ser divididos igualmente, e cada parceiro pode doar 150 dias dos seus 240 ao outro.

Para diminuir as distorções, empresas aqui também podem oferecer licenças estendidas, jornadas mais flexíveis e auxílio-creche.

Este último ponto é fundamental. De acordo com o Censo Escolar de 2022, só 36% das crianças até 3 anos estão em creches —índice distante da meta de 50% em 2024 do Plano Nacional de Educação.
Fornecer uma rede pública de cuidado no início da primeira infância deve ser prioridade de uma política de Estado no Brasil.

Há benefícios em duas frentes: creches ajudam mulheres a participarem de modo mais igualitário no mercado de trabalho e contribuem para a formação cognitiva das crianças —o que melhora a aprendizagem no futuro, aumenta a produtividade e reduz desigualdades.

O flerte da Petrobras com o atraso

O Estado de S. Paulo

Nova política de preços é confusa e pouco transparente, mas permite ao governo fazer reajustes como quiser e abandonar diretrizes que salvaram companhia da ruína

A Petrobras anunciou uma nova política de preços de combustíveis a ser praticada no mercado interno. Em um comunicado confuso e pouco explicativo, a companhia deixou uma gama de possibilidades em aberto, mas ficou bastante claro que as diretrizes adotadas há quase sete anos e que salvaram a empresa da ruína financeira foram definitivamente abandonadas.

O fato relevante divulgado pela Petrobras menciona referências genéricas, que priorizam, na definição da precificação, o custo alternativo do cliente e o valor marginal para a Petrobras. Segundo a companhia, isso significa contemplar as principais opções de suprimento do cliente, sejam de fornecedores dos mesmos produtos ou de produtos substitutos, bem como o custo de oportunidade da companhia considerando alternativas como produção, importação e exportação do produto e/ou do petróleo.

A política é tão vaga que permite à Petrobras fazer reajustes da forma como quiser – ou melhor, da forma que o governo achar que deve. A única certeza, segundo comunicado distribuído pela companhia, é que “o anúncio encerra a subordinação obrigatória ao preço de paridade de importação, mantendo o alinhamento aos preços competitivos por polo de venda, tendo em vista a melhor alternativa acessível aos clientes”.

Adotada em outubro de 2016, durante o governo Michel Temer e a gestão de Pedro Parente, a política do Preço de Paridade de Importação (PPI) considerava o preço de aquisição dos combustíveis no exterior e o custo logístico para levar o combustível até o ponto de entrega. Ela incluía não apenas a variação do câmbio e do barril do petróleo no mercado, mas também frete marítimo e rodoviário e taxas portuárias, além da margem de lucro e de impostos.

Altamente endividada e acumulando perdas bilionárias geradas justamente pelo controle artificial dos preços dos combustíveis nos governos petistas, a Petrobras decidiu, em 2016, concentrar sua atuação no pré-sal. Consolidar essa política demandava investimentos vultosos, mas era preciso abandonar a participação dominante da Petrobras no segmento de derivados, que não trazia retorno para a companhia. Assim, a Petrobras adotou o PPI, abandonou uma prática predatória e parou de vender gasolina e diesel com prejuízo, viabilizando a atividade de importadores de combustíveis.

O PPI não foi uma escolha perversa, mas o reconhecimento de uma realidade inexorável que os governos petistas costumam ignorar ao discutir a temática dos combustíveis. O Brasil, embora seja um dos maiores produtores de petróleo e tenha conquistado o status de exportador líquido de óleo cru, não é autossuficiente em derivados e depende de importações para abastecer o mercado interno. O PPI tampouco foi uma atitude estúpida da Petrobras, mas uma forma de fomentar a livre concorrência, o consumidor, a empresa e, em última instância, o País. Ao concentrar atividades no pré-sal, uma atividade em que era líder mundial, a empresa reverteu anos de prejuízos, enquanto o setor de combustíveis rapidamente se adaptou a esse cenário, assim como o consumidor.

Hoje a Petrobras contribui com 4% do PIB, recolhe centenas de bilhões de reais em impostos, royalties e dividendos e gera milhares de empregos diretos e indiretos. É do interesse de toda a sociedade que a companhia seja lucrativa e faça investimentos rentáveis que a preparem para a transição energética, mas isso não parece compatível com uma política de preços que ignora os parâmetros internacionais para favorecer o consumo de combustíveis fósseis.

Preocupado em desfazer tudo que os governos anteriores fizeram, o governo Lula começa a flertar com políticas autodestrutivas que foram marca da administração Dilma Rousseff – como o retorno de subsídios para a produção de carros populares. Se essas medidas ultrapassadas já não deram certo antes, não haveriam de funcionar agora que o País deveria buscar se transformar em uma economia verde. Não há qualquer lógica que justifique esse resgate do passado, que levou o País a uma das maiores recessões de sua história, que não o puro revanchismo.

Quem ‘enquadra’ Lula?

O Estado de S. Paulo

Petista avisou que não admitirá oposição do PT à tramitação do arcabouço fiscal. Mas, ao propor ele mesmo exceções ao texto, o presidente desmoraliza a proposta da Fazenda

Há poucos dias, o presidente Lula da Silva reuniu os ministros palacianos e os líderes do governo na Câmara e no Senado. Segundo consta, nesse encontro o presidente “enquadrou” o PT, deixando claro que, em hipótese alguma, admitirá oposição de seu partido à tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/2023, que institui o novo arcabouço fiscal.

Em tese, Lula tem razão ao chamar seus correligionários às falas. O mínimo que se espera do partido do presidente, que está à frente de dez Ministérios e de tantos outros postos de destaque na administração pública federal, é a defesa dos projetos elaborados pelo próprio governo. Mas, ao contrário disso, pululam exemplos de que a oposição mais ferrenha ao arcabouço fiscal tem vindo justamente dos petistas, sobretudo na Câmara.

É bom ter em mente que, se dependesse da vontade da ala mais sectária do PT, o Congresso não estaria deliberando sobre arcabouço fiscal algum neste momento. No fundo d’alma, petistas como a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do partido, e os deputados Lindbergh Farias e Zeca Dirceu, entre outros, querem que o governo tenha liberdade absoluta para gastar. Alguns economistas heterodoxos que andam fazendo a cabeça dessa turma têm sustentado uma teoria esotérica segundo a qual governos que se endividam na própria moeda jamais seriam insolventes, pois bastaria imprimir dinheiro na medida de sua necessidade para quitar dívidas.

Devaneios à parte, ao fim e ao cabo, Lula teve o bom senso de privilegiar a ala mais moderada do PT, que tem no ministro da Fazenda, Fernando Haddad, uma de suas faces mais conhecidas. Como já dissemos neste espaço, a proposta de arcabouço fiscal apresentada por Haddad, em meados de abril, sem dúvida foi melhor do que a sonhada por muitos de seus colegas de partido, mas ainda está distante de ser um sistema de controle de gastos públicos com a seriedade de que o País precisa como o substituto do regime fiscal anterior, o teto de gastos, o mesmo que é execrado pelos petistas como a raiz de todos os males do Brasil – depois do impeachment de Dilma Rousseff, é claro.

Falta quase tudo no texto original do PLC 93 para que a proposta de arcabouço fiscal possa ser reconhecida como tal. Não há gatilhos rigorosos para deter uma escalada de gastos diante de um cenário fiscal adverso; há muitas exceções para manutenção de subsídios, os chamados gastos tributários; e, principalmente, não estão previstas sanções para agentes públicos que descumprirem as regras fiscais, ferindo de morte a Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, e fazendo do texto não mais do que uma carta de intenções.

Ao que tudo indica, porém, o relatório do deputado Cláudio Cajado (PPBA) resolverá, se não todos, quase todos esses problemas, em especial a questão do enforcement, vale dizer, a ausência de punição por descumprimento de metas, e a previsão de gatilhos mais arrojados para o bloqueio de despesas na eventualidade de um cenário de desequilíbrio fiscal.

Para que não haja dúvidas: Lula “enquadrou” os petistas para que, no mínimo, não desconfigurem o trabalho de Haddad por meio de emendas que teriam como objetivo enfraquecer ainda mais um texto que já veio a público desacreditado por sua frouxidão. Lula não cobrou a participação dos petistas na negociação política na Câmara para tornar o arcabouço um projeto crível, de fato.

Diante da inexorabilidade da atuação do Congresso, que, cumprindo seu papel, aprimorará o PLC 93, o presidente em pessoa tem defendido que o aumento real, ou seja, acima da inflação, dos benefícios do programa Bolsa Família e do salário mínimo e os recursos do Fundeb sejam tratados como exceção às regras do novo arcabouço fiscal. Seria o caso de perguntar, então: quem “enquadrará” Lula? Sabe-se que são temas caros ao presidente. E exatamente por isso Lula deveria ser o primeiro a defender um marco fiscal mais rigoroso, ainda que isso seja extremamente improvável.

Remendo argentino

O Estado de S. Paulo

Medidas econômicas são recebidas com ceticismo, porque o problema é falta de credibilidade do governo

O novo pacote de medidas econômicas anunciado pelo governo da Argentina está fadado ao fracasso. Essa é a avaliação de especialistas e também a conclusão a que se chega quando se olha o passado recente do país vizinho e sua política econômica.

A atual crise argentina já é considerada a mais severa em duas décadas – e isso significa muito num país que vive de crise em crise. Pelo andar da carruagem, é possível esperar que os problemas se aprofundem antes que haja uma melhora – o que provavelmente só deve acontecer depois das eleições presidenciais deste ano, marcadas para 22 de outubro, conforme o resultado do pleito.

Qualquer indicador econômico e social que se tome em consideração, no cenário argentino, indica a gravidade da situação. Em geral, presta-se atenção na inflação e nas taxas de juros, que atingem níveis estratosféricos. Mas outros dados assustam. Veja-se o nível das reservas internacionais. No Brasil, o total era de US$ 348 bilhões em março; na Argentina são cerca de 10% desse valor – as reservas em abril caíram US$ 4 bilhões, ficando em US$ 35 bilhões.

O Produto Interno Bruto (PIB) praticamente ficará estagnado neste ano: as previsões são de um aumento de 0,2%. Depois de anos de crescimento econômico medíocre e inflação persistente, aproximadamente 39,2% dos argentinos — em torno de 18 milhões — viviam em situação de pobreza no segundo semestre do ano passado, acima do nível dos seis meses anteriores, de 36,5%, segundo dados oficiais.

Pressionado pela deterioração da economia, o governo do presidente Alberto Fernández anunciou domingo mais uma tentativa de conter a inflação, que teve um aumento de 8,4% apenas no mês de abril. É mais do que toda a inflação brasileira em 12 meses. A taxa anual na Argentina ultrapassou os 100%.

O pacote de medidas também busca frear a valorização do dólar ante o peso. Entre as decisões estão a subida das taxas de juros, a maior liberdade para o Banco Central (BC) controlar a moeda estrangeira e a aceleração de acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Como se poderia imaginar, nada mudou no mercado de câmbio. Relatos da imprensa de Buenos Aires informam que o dólar “blue” (a cotação da moeda no mercado paralelo, sem autorização do BC argentino) teve novas altas, ficando muito próximo do recorde registrado em abril.

Diz o preceito bíblico que não se deve colocar remendo novo em roupa velha porque o remendo esgarça ainda mais o tecido da roupa, e o rasgo aumenta. São muitas as comparações que podem ser feitas a partir das decisões econômicas do fim de semana. As medidas se assemelham a um conserto feito às pressas no asfalto de uma rua esburacada, antes que os buracos sejam tapados. E o problema é que a falta de credibilidade do governo torna extremamente complicada a adoção de uma reformulação da política econômica que mirasse o médio e longo prazos. De acordo com pesquisa do instituto Management & Fit mencionada pelo jornal Clarín, 68% da população desaprovava a gestão de Fernández em maio do ano passado. E isso antes da aceleração da inflação.

Argentina improvisa pacotes contra inflação indomável

Valor Econômico

Governo não consegue impedir alta dos preços nem corrida contra o peso

A alta da inflação acelerou o tempo da crise econômica argentina. Em abril, ela subiu 8,4% e foi ainda maior que os 7,7% de março - ambas motivaram ações de um governo que na prática não tem mais instrumentos eficientes para reduzi-la significativamente, ou mesmo conter sua alta. O ministro da Economia, Sergio Massa, lançou um pacote de nove medidas para cortar o caminho a novas desvalorizações do peso, um dos principais fatores de elevação do nível de preços. Foi recebido com ceticismo pelos analistas, como as providências anteriores.

Massa, que pode ser candidato à Presidência, com possível, mas longe de certo, apoio da vice-presidente Cristina Kirchner, pretende antes de tudo ganhar tempo e evitar a explosão de uma crise política e social semelhante à de 2001 antes das eleições de outubro. Isso limita os horizontes políticos de seus pacotes econômicos e a procrastinação a respeito de medidas duras que deveriam ser tomadas e que, obviamente, não rendem, mas tiram votos. Massa não pode fazer milagres. O governo tem baixas popularidade e credibilidade e não demonstra a menor propensão para um plano firme contra a inflação, além de ter diante de si um horizonte muito curto de tempo para que ele possa ser bem-sucedido.

Sem reservas cambiais, diante da histórica preferência dos argentinos pelo dólar quando a inflação ameaça disparar, o governo tem meios limitados para intervir. Uma das principais medidas anunciadas foi elevar em 6 pontos percentuais, para 97%, a taxa de juros das aplicações em renda fixa, que já havia aumentado outros 10 pontos em abril, quando a inflação de março deu um salto e surpreendeu. A meta é remunerar bem o peso para evitar que os investidores o convertam em dólar. A taxa mensal efetiva, com os novos juros, ainda assim, situa-se um pouco abaixo dos 8,4% da inflação corrente.

A medida mais importante, se o país dispusesse de reservas, é o monitoramento pelo Banco Central das variações diárias do dólar, o que a autoridade monetária já faz há muito tempo e havia reduzido a intensidade, a conselho do Fundo Monetário Internacional, com o qual tem um acordo de US$ 44 bilhões, o maior já feito pela instituição com um país membro. O BC terá de frear a desvalorização para evitar aceleração da inflação e sua atuação está perto de chegar ao limite.

Há medidas contraditórias no pacote divulgado. O governo vai liberar importação de alimentos sem tarifas e até flexibilizar sua legislação antidumping para aumentar a concorrência e baixar preços dos produtos importados. É um mistério com que dinheiro pagará o fluxo adicional de compras do exterior, uma restrição evidente.

Além disso, o governo não poderia deixar de acionar sua tecla populista-intervencionista, ao anunciar a criação de um superorganismo reunindo Receita, BC e aduanas para evitar “remarcações abusivas” de preços. As autoridades sentem os efeitos da disfuncionalidade do sistema de múltiplos câmbios no país e suspeitam, com certa razão, que há empresas obtendo licenças para importar pelo câmbio oficial (240,5 pesos) e vendendo-os como se seus custos tivessem ocorrido pelo dólar paralelo (488 pesos). Por fim, Massa reduziu um pouco a taxa de juros no cartão de crédito e outros tipos de compras a prazo de produtos nacionais.

Para tentar fugir à penúria de dólares, a Argentina pede ao FMI um adiantamento dos próximos desembolsos com o que, se aceito, poderia receber US$ 10,9 bilhões até o fim do ano. Massa vai à China no fim do mês com dupla missão: ampliar para US$ 9 bilhões os contratos de swap (usa US$ 5 bilhões) e convencer Pequim a que possa ter acesso ao dinheiro do banco dos Brics ou que dele possa se beneficiar se créditos para tal fim forem dados ao Brasil, que faz parte do grupo.

O governo brasileiro é mais do que simpático ao pleito argentino. Em Tóquio, o ministro Fernando Haddad mencionou a crise argentina à secretária de Tesouro dos EUA, Janet Yellen, e pediu ajuda do FMI a ela. Lula já havia dito que a solução é que o Fundo “tirasse a faca” do pescoço da Argentina. Não há faca nenhuma e o programa da instituição com Buenos Aires é um dos mais moderados de sua história. O FMI é quase refém da Argentina. Fez seu maior empréstimo ao governo Macri, que fracassou na execução do programa, enquanto os peronistas acusavam o FMI de favorecimento eleitoral. O Fundo prorrogou então o programa com Alberto Fernández, enquanto Cristina Kirchner criticava o acordo, que não exige desembolso do principal do atual governo, só do próximo.

De novo, a Argentina não consegue deter a inflação nem a corrida contra sua moeda. É uma situação muito delicada, às vésperas de um pleito eleitoral em que a extrema-direita é competitiva, os candidatos peronistas estão nas cordas, e os da direita moderada têm alguma dianteira. Javier Milei, a estrela reacionária, prega a dolarização da economia. “Por que continuar a ter o peso como moeda”, indaga. Grande parte dos argentinos pode não concordar com ele, mas há tempos abandonaram a moeda nacional.

 

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