quarta-feira, 17 de maio de 2023

Wilson Gomes* - Plataformas pela democracia

Folha de S. Paulo

Contra uso antissocial da comunicação, plataformas devem ser vistas como parceiras

Estou do lado dos que acham que as empresas de plataformas podem fazer muito mais do que têm feito para lidar com as consequências indesejáveis da plataformização da vida pública e privada, que ameaçam o nosso bem-estar ou os valores dos quais não queremos abrir mão.

Entendo também que marcos legais são importantes para que elas possam ter segurança jurídica ao enfrentar os usos inapropriados das infraestruturas de comunicações digitais que oferecem. Coisas que já fazem com instrumentos insuficientes, como os seus termos de uso e a detecção automatizada de condutas e usos antissociais ou antidemocráticos, podem ser realizadas com maior eficiência com tipos penais bem definidos e com o apoio de leis em que a sociedade tenha confiança.

Isso incentivaria as plataformas que desejam se manter como parte da infraestrutura da democracia, contra concorrentes que resolvem fazer do vale-tudo ou do acolhimento de práticas ilegais e antidemocráticas uma parte do próprio modelo de negócios.

Não me encontro, contudo, do lado dos que resolveram que as empresas e as próprias plataformas são intrinsecamente perigosas, malignas, imperialistas ou antidemocráticas de modo que precisam sentir o peso da lei o do orgulho nacional em seu pescoço. Isso ocorre quando se substitui, como aconteceu nas semanas passadas, o foco no uso antissocial e antidemocrático dos recursos disponíveis nas plataformas por um foco na plataforma como um ator antissocial, parcial e antidemocrático. Que é uma forma padrão de desresponsabilizar indivíduos e grupos que usam para o mal recursos que todos nós usamos com outros fins, transferindo toda a responsabilidade para uma macroestrutura.

Ora, uso social é uma coisa, estruturas e recursos de natureza tecnológica, outra. O que uma lei consequente pode pedir é que uma empresa conceba os seus recursos para evitar o máximo possível dos usos inapropriados dos seus serviços e que colabore com as autoridades, dentro de um quadro legal democrático, para evitar tais abusos.

Além disso, as empresas são diferentes entre si no que tange à devida diligência para evitar a degeneração antissocial das suas plataformas. E até a mesma empresa pode se transformar em outra coisa ao logo do tempo, como vemos com o Twitter de Elon Musk. A indistinção sempre favorece o pior padrão adotado. Por fim, sintetizar todos os provedores e todas as plataformas sociais como uma espécie de grande e unitário inimigo nunca teve serventia para a compreensão ou a melhora do mundo. Já se condensou o mal capitalista nas multinacionais, já se resolveu que havia um partido da imprensa golpista (PIG) que unificava na parcialidade maligna todo o jornalismo brasileiro, não precisamos agora que as "big techs" sejam o novo espantalho.

Manter o foco no lugar certo impede, inclusive, que um PL possa alimentar expectativas irrealizáveis, o que, ao fim e ao cabo, é fonte certa de frustrações. Pessoas e grupos continuarão usando todas as oportunidades de comunicação e de interação social disponíveis para delinquir e causar mal se os seus cálculos políticos e ideológicos mostrarem que há ganho nisso. E, quando uma porta for fechada para eles, abrirão uma janela, como tem ocorrido desde a massificação da internet, em meados dos anos 1990.

Fala-se tanto que a lei irá controlar algoritmos, mas o WhatsApp fez um estrago tremendo nas eleições de 2018 sem que algoritmos de visibilidade cumpram nele qualquer papel. Promete-se tanto que o PL deixará nossas crianças mais protegidas de atentados às escolas, mas se omite que o inferno que leva à glorificação dos massacres acontece principalmente em imageboards como o 4chan, fora do alcance de qualquer regulação.

Há altas expectativas com relação ao impacto da lei na cultura das fake news, mas o fato é que mesmo os combatentes digitais contra a desinformação demonstraram nesses dias não ter, na prática, sequer um conceito consistente de fake news para colocar à mesa.

Por isso, o importante é garantir que janelas e portas usadas de forma antissocial e antidemocrática possam continuar sendo fechadas, que os custos da delinquência online se tornem cada vez mais altos, a ponto de não poderem ser facilmente cobertos, que a invulnerabilidade dos perversos não seja parte da cultura das redes.

Nesse sentido, é infinitamente mais útil ter as empresas de plataformas como sujeitos comprometidos com alguns acordos mínimos em benefício da sociedade e da democracia do que satanizadas como a causa de tudo o que está errado na vida digital.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Imageboards!!!???