Contudo, nem tudo é névoa nas relações entre os dois poderes governativos no Brasil de 2023. Os arranjos mutantes em vigor podem não fixar ainda um sistema estável. Mas existem, do ponto de vista político e nunca deixaram de orientar a vida institucional. Podem, portanto, ser analisados, como foram até em momentos críticos, de Bolsonaro com pandemia. A anomia nos rondou, mas não se instalou, porque temos sociedade civil e também porque o Congresso agiu com perícia naquele 2020 fatídico. Hoje, com mais razão ainda, podemos constatar que o processo de mutação do sistema de governo, que já dura quase uma década, não foi interrompido e que, passada a borrasca, ganha intensidade.
No ponto a que já pôde chegar o redesenho
do sistema, sobressaem duas realidades incontornáveis. Uma, estrutural, é o
maior empoderamento do Legislativo na `pequena política” (miúda, do dia-a-dia).
Outra, contingente (embora duradoura), é a formação, também no âmbito do
Congresso, de um bloco de centro-direita que atua, também, na grande política. Ele
continua uma agenda de políticas liberais, retomada após o impedimento de Dilma
e a ascensão de Temer. O impeachment fechou um hiato de seis anos de
experiências desenvolvimentistas centradas numa lógica mais estatista e, com
isso, atualizou linhas de força da década dos 90, com as quais o governismo
lulista interagira positivamente até 2008. O Congresso de hoje atua sob o signo
dessa continuidade política, pragmática e programática. Cabe lembrar que o
fortalecimento da centro-direita vem sendo legitimado em seguidas eleições
legislativas, desde 2014. Se a pequena ou a grande política predomina neste ou
naquele momento (e os da pequena são, obviamente, mais frequentes), a
responsabilidade não é só de um, mas dos dois poderes.
A névoa é muito mais densa quando se tenta
analisar o que ocorreu e ocorre no âmbito do Executivo. As curvas e solavancos
sugerem um tobogã em ziguezague. Um estrangeiro que tenha estado no Brasil
durante a campanha eleitoral de 2014, fortemente marcada por uma postura
ideológica da candidata vencedora, estranharia ver, no início do ano seguinte,
a presidente reeleita indicar o Dr. Joaquim Levy para o ministério da Fazenda.
A hipótese de que tenha sido uma revisão racional de posição também não se
sustentaria diante do fato de que o seu partido e os movimentos sociais sobre
os quais ele influi continuavam batendo bumbo pela partitura antiliberal da
campanha. Tinham abrigo no palácio e o aval da presidente em manifestações e
atos crescentemente ruidosos, embora politicamente inócuos.
No contexto pós-impeachment a
partitura programática mudou e se manteve liberal em economia, ao menos até
Bolsonaro (que sempre tocou de ouvido e mal nessa seara) incinerar qualquer
programa político sério para a economia, num esforço populista desesperado para
se reeleger. O tobogã em ziguezague marcou, o tempo todo, o Poder Executivo, no
que diz respeito a pactos e métodos políticos. Abissal a oposição entre Temer e
Bolsonaro, o primeiro alvo perene da Lava-Jato e praticante de um
entendimento quase parlamentarista com o congresso e o segundo, surfista das
ondas da faxina lava-jatista e da lenda da nova política, a demonizar Congresso,
partidos e a política institucional em geral. Quando se chega a Lula 3 – e após
quatro meses de governo - ainda não se sabe a que veio o Executivo quanto a que
padrão de relações quer manter com o Legislativo na pequena política e a que
agenda macropolítica afinal adere. Entre o viés centrista da sua área econômica
e tendências - visíveis noutras áreas do governo e na retórica do presidente -
de resgatar o voluntarismo do tempo de Dilma Rousseff, o tobogã em ziguezague ainda
domina e segue rejeitando qualquer padrão estável de atitude política.
A oscilação dramática reflete-se também
sobre a arena eleitoral plebiscitária em que se legitima mandatos
presidenciais. Enquanto as eleições legislativas legitimam, no Congresso, há
três legislaturas, o predomínio continuado e crescente de um perfil de
centro-direita (ativa e não mais passiva como no passado mítico dos Lulas 1 e
2), nas eleições presidenciais, o eleitorado oscilou entre três faróis. Reelegeu,
em 2014, por exígua maioria, um petismo de pretensões hegemônicas, na
expectativa de manter um espetáculo de crescimento, emprego e renda que já não
era possível; catapultou ao poder, em 2018 - depois de rejeitar, em pesquisas
de opinião, um governo de transição de orientação liberal em economia e
centrista em política - uma extrema-direita travestida de moralista mas
destituída de qualquer valor republicano; e em 2022 elegeu, por maioria exígua como
a de 2014, um Lula com seu foco de sempre no social, mas propondo método político
agregador para a reconstrução nacional.
Diante desse contraste entre as dinâmicas pragmática
e programática verificadas nos dois poderes, seria de admirar se a balança do
poder sistêmico não estivesse pendendo mais, como está, para o lado daquele no
qual a continuidade é a marca. Sobre essa objetiva correlação de forças é que
se movem hoje os atores políticos que conduzem os dois poderes. A ambos não
faltam disfuncionalidades, mas as que se verificam no Legislativo são muito menos
graves do que as encontradas no terreno do Executivo. No Senado,
principalmente, elas não são impeditivas de que, no comando da casa, tenha se
firmado uma liderança ciosa do poder institucional que lhe cabe (defendendo-o
seja de ameaças de outro poder, sob Bolsonaro, seja internas, pelo ânimo
imperial do presidente da Câmara) e ao mesmo tempo flexível e cooperativa nas
relações com o Poder Executivo e na defesa do estado democrático de direito. Na
Câmara a disfuncionalidade é o fator Lira, tentativa de apropriação pessoal
assimétrica de um poder sistêmico adquirido pela instituição na última década. Mas
anticorpos já agem no próprio parlamento para que esse domínio pessoal
temporário não se torne uma tradição capaz de refratar a tendência de
fortalecimento de um poder institucional que resulta do processo de busca de um
novo sistema de governo estável para substituir o presidencialismo de coalizão.
Como tenho insistido nesta coluna, é também nessa chave – e não apenas na da
política miúda – que deve ser interpretada a formação de um segundo bloco
parlamentar de centro-direita na Câmara, entre o PSD, o MDB e o Republicanos. Essa
agregação para a ação na pequena e na grande política significa que Lira não
terá unanimidade nesse campo político-partidário para fazer seu sucessor, o
que, no limite, pode vir a ser o fim de um centrão orgânico, filho dileto da
fragmentação na pequena política. É um cenário possível de se materializar sem
ameaçar a unidade do bloco politico mais geral em prol de associar liberalismo
político e econômico numa agenda de governo compartilhada, disputada ou
negociada com o Chefe do Executivo da vez.
No Executivo os problemas políticos parecem
mais complicados e atrapalham a concretização, no novo formato que o sistema de
governo venha a assumir, de uma recuperação parcial dos poderes de agenda e
decisão exercidos por presidentes, até 2014. Isso não está fora de cogitação
desde que se afaste, por definição, do processo de mutação sistêmica, a hipótese
de retorno ao presidencialismo forte com poderes assimétricos do Presidente em
relação ao Congresso. Dentro das balizas da democracia, esses ovos já estão
fritos. Como se tem repetido amiúde, um
sério problema é que Lula e seu partido parecem até entender, mas não aceitar como
irreversível a nova realidade. O presidente ainda reluta e parece querer
restabelecer o protagonismo institucional e político que tinha em seus outros
mandatos. Quanto ao PT, insiste em propor e, em certos momentos, impor ao governo,
usando espaços institucionais que ocupa, uma agenda de esquerda que desafia
amplos consensos vigentes no Congresso. A ambiguidade do presidente, decorrente
da sua relutância em aceitar o compartilhamento de importantes funções
governativas com o Legislativo, embora não ameace invadir prerrogativas deste, favorece,
entre os ministros e parlamentares governistas, quem quer limitar em vez de
aprofundar, um entendimento com o centro e a centro-direita, essa última amplamente
majoritária no Congresso.
É erro ver o que ocorre hoje como
consequência direta e necessária do que foi, até 2015, o modo Cunha de agir. Ali
foi a pré-história, talvez a gota que faltava para o desfecho de uma festa e
para que se impusesse uma reforma do sistema de governo. A história atual
começa, realmente, na interação entre Temer e Rodrigo Maia, em 2016 e 2017. Lendo
bem o momento, Temer antecipou-se e compartilhou o poder, único modo de
manter-se nele. A eleição de Bolsonaro interrompeu esse processo. Com a omissão
do presidente, o Congresso aos poucos assumiu o governo prático do país,
através de uma coalizão parlamentar liderada por Rodrigo Maia. Depois da pandemia,
com Bolsonaro ou sem ele, já não haveria chance de retorno ao antigo status
quo das relações entre os dois poderes. Mas o Executivo, embora
enfraquecido, era imprescindível para governar em tempos normais. A solteirice
de Maia no poder levou à sua derrota no Legislativo, campo que seu protagonismo
adubou. Lira herdou o espólio e o centrão entrou na grande política. Passou a
ter luz própria e aí Bolsonaro leu e entendeu. Só que tarde demais. A demora
foi fatal para ele. Cedeu anéis e dedos e aumentou o déficit de poder do
Executivo. Seu caso parece dar razão a Hannah Arendt: se a violência assola é
porque o poder já foi embora.
A vitória de Lula e o freio de arrumação do
STF em janeiro desse ano criaram um cenário em que poderia (ainda poderá?) ser
reiniciado o processo que começou com Temer e Maia. Com Pacheco isso está
ocorrendo. Com Lira sabia-se que seria difícil. Mas a alternativa melhor seria
mesmo a de ir tentando a inevitável negociação no varejo e, mirando o médio prazo,
facilitar, pelos meios indiretos da articulação política, uma solução mais amigável
para a sua sucessão. Isso passaria pela chancela e empenho do presidente em dar
vida prática a um governo de frente ampla, escolha que, por sua vez, implicaria
em atuar, nessa direção, nos planos da pequena e da grande política. Em outras
palavras, incentivar, no parlamento, articulações novas, no campo da
centro-direita, para contrabalançar o poder pessoal de Lira e aprofundar, no
mundo político e na sociedade civil, o entendimento em torno de uma agenda
econômica que não confronte a maioria do Congresso. O bloco parlamentar do
PSD-MDB-Republicanos e o êxito preliminar das articulações da área econômica do
governo em torno do arcabouço fiscal são indícios concretos da viabilidade
prática desses virtuais caminhos.
O que até aqui foi feito, na necessária
política miúda, é distribuir ministérios com aliados de centro e
centro-direita, sem distribuir os respectivos poderes decisório e material. O primeiro
é centralizado no presidente, o segundo concentrado no PT, como mostra a
ocupação. pelo partido. de cargos relevantes nesses ministérios e a
procrastinação ou óbice ao preenchimento de outros tais, pelos aliados. Os
esforços das bancadas de alguns partidos de criarem, no parlamento, focos de
poder fora da esquerda para contrabalançar o de Lira são ignorados em favor da
crença numa negociação tête-à-tête entre ele e Lula. O preço prático tem
sido acumular derrotas. Para justificá-las o dedo do chefe é apontado, com bom
humor paternal, para seu ministro das Relações Institucionais. Ensaia-se um
“vai pra casa, Padilha” ocultando que sobre os ombros do bode expiatório
joga-se a missão impossível de articular sem script.
É verdade que da grande política surgiu uma
diretriz positiva e ela se traduz, de modo crível, na proposta de arcabouço
fiscal apresentada ao Congresso pela área econômica do ministério, liderada por
Fernando Haddad. O problema é que Lula não dá à proposta a inequívoca condição
de linha política do seu governo. Se assim fosse, como entender que partam de
áreas governistas e do próprio palácio iniciativas como a de alterar o marco do
saneamento e questionar judicialmente a privatização da Eletrobrás? São
iniciativas inócuas, ou meramente propagandistas de uma agenda minoritária e de
um estilo de gestão antigo. O PT tem direito de defender,
mas o governo não pode e o presidente não deve bancá-las, sob pena de desafiar o
atual arranjo de poder em que está inserido. Essas iniciativas ofendem
consensos congressuais sólidos e interferem negativamente nas condições de
negociação da proposta que é, aparentemente, a principal. E não há sinal de
arrefecimento do fogo amigo. Ao contrário, a bancada petista singelamente cogita
apresentar emendas à proposta do seu próprio governo e o ministro da Secom disse ontem
que o mal chamado “PL das fakenews” deve voltar à pauta da Câmara no
próximo dia 16, data que se prevê para o arcabouço fiscal entrar na mesma
pauta, após a viagem de Lira. Alguém perguntou a Haddad o que ele acha disso? É
dúvida se se trata de descuido ou sabotagem.
Há duas falácias no discurso que quer recolocar
agora esse bumerangue no colo da articulação política do governo. A primeira é
fazer de conta de que no Brasil não há regulação das redes socias e mídias
digitais. Acabamos de sair de um processo eleitoral em que ficou demonstrado o
oposto. Se não houvesse regulação, nem instituição capaz de aplicá-la, Lula não
estaria hoje onde está. A segunda falácia é o grau de urgência que se atribui a
essa questão da regulação. Sem dúvida é importante, mas o bom senso político
precisa colocá-la numa fila de prioridades. É um equívoco comprar essa pauta no
Congresso antes de votar matérias como o arcabouço fiscal e a reforma
tributária. É dar de bandeja uma pauta política para a oposição bolsonarista,
que está encurralada por processos policiais e judiciais. O PL foi gestado no
Congresso e como o Judiciário está muito ativo nessa questão, o tempo de
tramitação podia e pode esperar até se dobrar o cabo das tormentas da
governabilidade, mantendo assim a extrema-direita isolada e pressionada pelo
Judiciário. Inexiste sentido coletivo no governo colocar pilha no tema a ponto
de fazer a urgência legislativa parecer um interesse seu. O risco é facilitar a
reconexão da extrema-direita com outras áreas de oposição e mesmo da base
governista e ser um vetor de pressão a mais para o governo fazer concessões no
arcabouço fiscal. Surpreende que um quadro político da qualidade do ministro Flávio
Dino tenha se metido, fora de hora, nessa briga de cachorro grande.
Nesse tiroteio é difícil um ministro da Articulação
enxergar caminhos. Confuso, o Poder Executivo descola-se do mundo real da
política. Tende a perder mais espaço institucional num futuro arranjo para
funcionamento estável do sistema de governo. Esse arranjo acontecerá, nenhum
ator político individual será capaz de impedir. Por isso é mais que urgente
Lula assumir a chefia do espaço de poder que lhe compete de fato. Ou se
preferir, concentrar-se na busca de concluir sua biografia política pessoal num
plano além do cotidiano, terceirizando a missão mundana e espinhosa de combinar
política e governo. Com isso emprestaria sua ainda relevante legitimidade
plebiscitária aos movimentos de alguém - ou de um conjunto plural de lideranças
partidárias – que anteciparia, informalmente, o papel de um
primeiro-ministro, uma das possibilidades no horizonte mutante do nosso sistema
político. Seja por esse caminho cabal de governo de transição, seja pela sua
decisão de colocar, ele mesmo, a mão na massa com a legitimidade pessoal que
obteve nas urnas, Lula precisa mover-se. Como está não vai dar certo.
No imediato, a retórica farta dissimula o imobilismo
prático. Mas a névoa que espalha nubla a visão do presidente para o essencial,
que é a busca da forma política de viabilizar, num congresso conservador, a
governabilidade fiscal, em seguida a tributária, para cumprir de fato, a pauta
social que forma, juntamente com a defesa e o fortalecimento da democracia, o
compromisso político que agregou uma frente de partidos e a sociedade civil e
convenceu um número suficiente de eleitores a votarem nele.
*Cientista político e professor da UFBa.
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