Folha de S. Paulo
CPI, o campo de batalha na guerra de
narrativas
"Primeiro reúna os seus fatos, depois
você pode distorcê-los como quiser". O torneio lapidar de Mark Twain é
pretexto para uma abordagem à questão grave da desinformação, que hoje
atravessa a esfera pública das tecnodemocracias ocidentais, de forma aguda entre
nós.
A frase teria como alvo a imprensa, onde o viés excessivo da interpretação pode descambar no falseamento jornalístico. Não é caso raro em todas as épocas.
Atualmente, porém, na informação praticada pelas plataformas digitais, o processo é sistemático, com outros métodos: o principal consiste em amealhar fragmentos de fatos e encadeá-los por meio de mentiras explícitas antes de narrar. Não se trata, portanto, de mera distorção, mas de tática de controle da experiência empírica da sociedade civil, isto é, de tudo o que ocorre na vivência casual, não organizada, inclusive nas escolhas políticas.
É sempre oportuno deixar claro que acontecimento
jornalístico é a representação social de um fato, enquanto a notícia é
o modo como o fato selecionado se torna acontecimento pela narrativa. Narrar
não é sinônimo de mentir.
Assim, é um fato que os indígenas
constituem 5% da população global, mas a ilação de que protegem 80% da
biodiversidade planetária é uma narrativa objetiva, embora aberta a debate. A
objetividade pauta-se por padrões, não meramente lógicos, mas também éticos, em
que a seleção factual e a construção da notícia estão comprometidas com a
dicção da verdade social.
Em outras palavras, não é suficiente o
respeito técnico aos fatos para qualificar a objetividade. O imperativo ético
que preside ao jornalismo sério obriga a um compromisso continuado com a
verificação, os desdobramentos e os rizomas do fato selecionado, para que não
se incorra no silêncio cúmplice quanto às consequências.
A narrativa sobre o governo de um flagelo
político e moral não pode limitar-se às excentricidades de um indivíduo,
isolando-o de ministros, comandos militares e apoiadores do setor privado. E
frente ao dano cognitivo infligido pelo descontrole das redes, a meta de uma
informação pública responsável é o esclarecimento do fato social total.
Tão extenso é o alcance da deformação
factual que a vida política já foi gravemente contaminada, a ponto de um
candidato se consagrar majoritariamente nas urnas pela profundidade de seu
mergulho no pântano do falseamento. Ou então, abre-se uma CPI com o fim
exclusivo de travar uma guerra de "narrativas".
Entenda-se: um aloprado bate-boca de
mentiras, em que se tentará inverter e fragmentar os acontecimentos de um
golpismo de grandes proporções para esconder o encadeamento criminoso da
totalidade factual.
Ao jornalismo de fatos, Parlamento das
Letras, impõe-se recusar holofotes ao circo.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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