O Globo
A tese é uma explicação sem pé nem cabeça
que atribui a ascensão de Bolsonaro à mobilização popular por direitos e retira
do PT qualquer tipo de responsabilidade
Ao aderir ao complô para assassinar Júlio
César e salvar a república romana, Brutus pondera o seguinte: “A luta não diz respeito
ao que ele mostra ser agora, mas posso argumentar: sua essência, dilatada, há
de crescer a tais e tais extremidades; e devo então pensar que é o ovo da
serpente: ao ser chocado, há de tornar-se peçonhento, e é preciso matá-lo ainda
na casca ”. (Tradução de José Francisco Botelho para a tragédia de William
Shakespeare.)
Desde que o cineasta Ingmar Bergman usou a passagem de Shakespeare para se referir à ascensão do nazismo, o tema do ovo da serpente que precisa ser exterminado, ainda na casca, antes de se tornar peçonhento, se tornou lugar-comum da retórica antifascista. No Brasil, tem sido exaustivamente mobilizado por setores da esquerda para se referir a uma sequência causal imaginária que liga os protestos de junho de 2013 às manifestações anticorrupção; essas, por sua vez, ao impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula e à eleição de Jair Bolsonaro. O ovo da serpente que teria sido necessário exterminar são os milhões de jovens que saíram às ruas pedindo direitos sociais e o fim da corrupção em junho de 2013.
Essa alegada sequência causal confunde
contexto com causa e faz uma conexão amalucada, completamente desprovida de
evidências, insinuando que os futuros eleitores de Bolsonaro animavam os
protestos de junho de 2013.
Os protestos de junho de 2013, sobretudo os
da segunda quinzena, foram bastante estudados. Sabemos que os jovens que
estavam nas ruas não se identificavam com a direita, nem tinham qualquer
preferência partidária. A principal pauta reivindicada nos protestos eram a
redução das tarifas de transporte e a melhoria dos serviços públicos de saúde e
educação, uma pauta que não pode ser considerada de direita, muito menos de
extrema direita.
É verdade que, em junho, petistas foram
escorraçados de um protesto na Avenida Paulista, mas lideranças de direita
também foram. E, afinal de contas, o que os petistas imaginaram que aconteceria
ao aparecerem com bandeiras partidárias num protesto que gritava “sem partido”,
cuja pauta principal era lutar contra um aumento determinado por um prefeito do
PT?
Quando a onda gigante de protestos
arrefeceu, com a revogação dos aumentos nas tarifas no final de junho, a
insatisfação social permaneceu difusa e órfã. Nesse momento, grupos de direita
tentaram mobilizar a população, sem muito sucesso. Entre junho de 2013 e
novembro de 2014, nenhum grupo de direita conseguiu fazer uma mobilização
significativa. O pós-junho foi marcado por um impulso nas ocupações de sem-teto
em São Paulo, pela greve dos professores no Rio de Janeiro, pela constituição
da Assembleia Popular Horizontal em Belo Horizonte, pelo movimento em defesa do
Parque do Cocó em Fortaleza e pelos protestos contra as remoções para a
construção dos estádios da Copa do Mundo.
Em novembro de 2014, um ano e cinco meses depois
de junho de 2013, grupos de direita convocaram um protesto contra a reeleição
de Dilma Rousseff, e esse protesto impulsionou depois as manifestações
anticorrupção e anti-Dilma de 2015 e 2016, que levaram ao impeachment.
Não há muita coincidência entre quem
protestava em junho de 2013 e quem protestava contra Dilma em 2015 e 2016. Os
manifestantes de junho de 2013 eram jovens com menos de 30 anos, da classe
média baixa e da classe trabalhadora. Os manifestantes contra Dilma —e também
os que saíram em defesa da presidente Dilma —eram de idade e meia-idade, com
escolaridade superior e renda alta.
Mesmo os manifestantes anticorrupção não
adotaram uma identidade de direita até 2018, cinco anos depois de junho. Em
2015 e 2016, no auge dos protestos contra Dilma Rousseff, a maioria dos
manifestantes preferia se definir como “nada disso” quando questionada se se
identificava como direita, esquerda ou centro —cerca de 15% inclusive se
identificavam como de esquerda. Foi apenas em 2018, no contexto da campanha pela
eleição de Bolsonaro, que manifestantes convocados pelos grupos anticorrupção
adotaram majoritariamente as identidades de direita e de conservador.
Como se vê, muita coisa aconteceu entre
junho de 2013 e a eleição de Bolsonaro, e a conexão causal direta que liga as
duas coisas não passa de um delírio petista — irmão de outro delírio que é a
tese adotada por Lula, segundo a qual os protestos de junho de 2013 foram
promovidos pelo serviço secreto de Barack Obama. A tese do ovo da serpente é
uma explicação sem pé nem cabeça que atribui a ascensão de Bolsonaro à
mobilização popular por direitos e retira do PT qualquer tipo de
responsabilidade.
Um comentário:
O ovo da serpente continua presente.
Postar um comentário