O Globo
O discurso de Barroso corrobora a noção
popular de uma elite dirigente corrompida que, violando o pacto republicano,
existiria exclusivamente em função dos próprios interesses.
Escrevi outro dia sobre quão ridículo é
pretender dar conselhos a um presidente da República. O mesmo serve à pretensão
de aconselhar ministro do Supremo. A cousa deixa de ser apenas ridícula quando
o aconselhamento consiste na forma de expressão única ante a impossibilidade —
afetiva — de criticar objetivamente.
Ministros do Supremo têm de falar menos — e
se abster de eventos políticos e empresariais — não porque assim evitarão
alimentar os inimigos da democracia; mas porque, pervertidos em debatedores e
palestrantes, aviltam o signo de comedimento que fundamenta o papel que
deveriam cumprir na República.
Aviltam a República. Papo reto.
A fala de Luís Roberto Barroso no congresso
da UNE — a do “nós derrotamos o bolsonarismo” — é deletéria não porque ofereça
carne a teorias da conspiração. Hipótese em que teríamos mero equívoco tático.
(O bolsonarismo não precisa de fatos para barbarizar.) É nociva porque mais uma
num conjunto de posturas que subsidia, na sociedade não radicalizada, a
percepção da Corte constitucional não como o Poder que faz a balança, mas como
corporação interferente e desequilibradora.
Convém sair da bolha e cair na real. O discurso de Barroso — sobretudo a presença num ato de militância política — corrobora a noção popular de uma elite dirigente corrompida que, violando o pacto republicano, existiria exclusivamente em função dos próprios interesses.
A indignação corrente deriva da mobilização
bolsonarista-oportunista; o que levanta questão desagradável: sobre se
estaremos, os democratas, autorizando, em função de agendas e outras
conveniências, que ministros do Supremo se comportem como agentes políticos e
se esparramem autoritariamente.
Participam de eventos assim com frequência.
Quando nos incomodaremos? (Só quando for André Mendonça?)
Não há justificativa para juiz tomar lugar
em ato político-partidário. A fala será o de menos. Não pode, porém, ficar sem
análise. Produto de alguém que se sente parte daquele movimento. Oração de
pertencimento. A manifestação de Barroso foi exaltação magoada de indivíduo
que, se compreendendo integrante, era então inesperadamente excluído, vítima de
vaias e palavras de ordem contra decisões recentes suas. O ministro reagiu à
rejeição.
Onde foi parar a contenção?
Barroso é integrante do STF e só. (E
muito.) Sua existência pública pertence absolutamente ao Supremo — e às
limitações próprias à condição de ministro do Supremo. Essas limitações não
podem surpreender. E, se amolam, deveriam ensejar reflexão sobre largar a toga
e concorrer a cargo eletivo. Papo reto.
Por que ministros de tribunal
constitucional ficam à vontade a ponto mesmo de, de repente, um deles estar no
palanque da UNE? Sob que grau de império — ou delírio — sentem-se confortáveis
para esbanjar a força política de uma influência que é propriedade de um lugar
de autocontenção?
Talvez estejam contaminados pelas
evidências, donde a convicção de protegidos, de o Supremo ser Poder acima dos
demais, que se alarga para invadir prerrogativas alheias; o que ocorre,
progressivamente, por meio de gestos monocráticos — daí, especulo, o sentimento
de onipotência. Uma explicação para por que ministros do STF se tornaram
desinibidos debatedores públicos e palestrantes internacionais.
Seria uma etapa natural, própria ao glamour
togado, depois de normalizados como protagonistas de acomodações em Brasília,
que transitam de convescote em convescote e participam de arranjos
parlamentares, formuladores — legisladores mesmo — de soluções a impasses
políticos; não tardando até que aplicassem a musculatura institucional em
escaramuças e lobismos para que apadrinhado fulano ou beltrano seja o escolhido
para essa ou aquela cadeira.
Não é normal.
Barroso anda menos pelas rodinhas da
capital, mas não deixa de se valer das expectativas projetadas por um STF que
se expande. Nunca escondeu ser um construtor — transformador — a partir da Constituição.
Uma compreensão progressista da função de ministro do Supremo, que ora se
desdobraria naturalmente em o intérprete criativo da Lei dar vazão ao militante
político.
A onipotência sempre se acerca da ilha da
fantasia.
Há outra explicação, complementar. Estão
trabalhando pouco. Como tribunal, pouquíssimo. Nos últimos anos, o STF se
converteu, em parte como decorrência da pandemia, muito mais ante a ascensão do
sete peles, em palanque — blindado — para canetadas individuais; esvaziado de
seu caráter impessoal encarnado nas reuniões plenárias.
Há quanto o que prevalece, desde o Supremo,
é a alternância entre a atividade de seus ministros nos bastidores, em jantares
com alcolumbres e outros pachecos, a distribuição de liminares corporativistas
ou partidárias e as gestões xandônicas sobre os inquéritos infinitos que
salvarão a democracia?
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