Folha de S. Paulo
Decisão de admitir a Ucrânia, sem fazê-lo
agora, eliminaria solução possível em equação diplomática
A Ucrânia ingressará "quando os
aliados concordarem e as condições permitirem", informou a Otan. "Uma
janela de oportunidade está sendo perdida, a fim de barganhar o ingresso da
Ucrânia em negociações com a Rússia", replicou um insatisfeito Zelenski. E
completou: "Incerteza é fraqueza".
Ninguém, nem mesmo a Ucrânia, esperava ingresso imediato. O artigo quinto do tratado da Aliança Atlântica define a obrigação de defesa mútua. Admitir a Ucrânia durante as hostilidades em curso implicaria o impensável: uma declaração de guerra da Otan à Rússia. Mas Zelenski pressionava por um prazo específico para o ingresso. A rejeição da Otan tem bons motivos.
A decisão de admitir a Ucrânia, sem fazê-lo
agora, eliminaria uma solução possível numa complexa equação diplomática.
Contudo, a solução temida por Zelenski —a neutralização da Ucrânia– já foi
expelida da esfera das opções realistas.
Depois de 500 dias de guerra, os EUA e seus
aliados não podem mais se dar ao luxo de negociar com a Rússia o estatuto
militar da Ucrânia. A nação ganhou no campo de batalha, em resistência heroica,
seu lugar na Otan. Fechar-lhe as portas da aliança, impondo à nação invadida uma
neutralidade abandonada até pela Finlândia e pela Suécia, desmoralizaria a
Otan. Na prática, significaria condená-la à "morte cerebral",
diagnosticada cedo demais pelo francês Macron.
A barganha que se desenha como hipótese
realista não é entre Otan e Rússia, mas entre Otan e Ucrânia. Num cenário em
que a contraofensiva ucraniana revele-se incapaz de assestar uma derrota
estratégica à Rússia, o ingresso na aliança funcionaria como argumento decisivo
para persuadir a Ucrânia a firmar um armistício baseado em concessões
territoriais. Zelenski sabe disso –e, justamente por saber, desvia-se do tema,
especulando sobre uma barganha inviável.
Ao longo da Guerra Fria, a URSS invadiu
duas nações que experimentavam o "socialismo de face humana": Hungria
(1956) e Tchecoslováquia (1968). Entretanto, a segurança oferecida pelo artigo
quinto preservou os países da Europa Ocidental.
Nas décadas do pós-guerra, sob o
guarda-chuva da Otan, as nações da parte mais afortunada da Europa
reconstruíram suas economias e aperfeiçoaram suas democracias. Neles, partidos
comunistas e social-democratas puderam disputar eleições livres, enquanto o
movimento sindical conquistava direitos sociais. Há, na barragem de imprecações
da esquerda contra a Otan, uma triste (e esclarecedora) ironia.
Desde 1999, a Otan expandiu-se para a
Europa centro-oriental, incorporando as nações do antigo bloco soviético. O
alargamento para leste não derivou primariamente de um projeto de poder dos
EUA, mas da busca por segurança de países que vivenciaram o impulso imperial da
URSS. Funcionou: a Rússia invadiu a Geórgia (2008) e a Ucrânia (2014 e 2022),
porém curvou-se à soberania dos novos integrantes da Otan, inclusive das
antigas repúblicas soviéticas do Báltico.
Na cúpula de Bucareste, em 2008, a pressão
da Ucrânia pela adesão à Otan não teve sucesso. Uma declaração vazia sobre a
futura admissão do país prenunciou o efetivo congelamento da pretensão
ucraniana. A Aliança Atlântica imaginava que uma perene ambiguidade serviria
para apaziguar Moscou. O veredicto retrospectivo, sempre fácil, evidencia o
equívoco.
O precedente alemão indica uma solução para
a Ucrânia. A Alemanha Ocidental foi admitida na Otan, em 1955, mediante o
compromisso de buscar a reunificação nacional exclusivamente pela via
diplomática. Na hipótese amarga de que um armistício cobre o preço de cessões
territoriais ucranianas, o ingresso na aliança protegeria a nação amputada de
uma renovada invasão russa, propiciando as condições para a reconstrução. Lula
e Celso Amorim recusam-se a entender uma lição histórica: no colar de países do
entorno da Rússia, a Otan é o outro nome da paz.
2 comentários:
Magnoli arrumou a maior confusão da sua vida!
Texto perfeito.
MAM
Pois é.
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