O Globo
Reparações históricas e desculpas oficiais
costumam vir na rabeira da própria História. E com frequência nada reparam
Na terça-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou a criação de um Monumento Nacional em memória do menino negro Emmett Till e de sua mãe, Mamie Till-Mobley. Na verdade, serão três os monumentos que evocarão o assassinato de Emmett, com requintes de selvageria, por supremacistas brancos nos idos de 1955. O primeiro será erguido na igreja de Chicago onde o garoto fora velado; o segundo, na ravina do Rio Tallahatchie, no Mississippi, onde encontraram seu corpo brutalizado; e um terceiro, certamente o mais significativo, na entrada do tribunal onde os matadores confessos, dois irmãos graúdos, foram rapidamente absolvidos por um júri branco.
À época, a mãe-coragem de Emmett obrigara o
país a encarar o que restara do filho: uma massa disforme e desumanizada
exposta em caixão aberto, sem retoques. Como já relatado
neste espaço, a atrocidade serviu de catalisador para o Movimento
pelos Direitos Civis que galvanizaria o país na década seguinte.
Passaram-se quase 70 anos. Desde então, 12
presidentes ocuparam a Casa Branca. Ainda assim, Biden achou necessário
explicar ao país o motivo de um memorial nacional para os dois corpos negros.
— Vivemos tempos em que se tenta banir
livros, enterrar a História — disse o presidente. — Por isso queremos deixar
bem claro e cristalino: embora a treva e o negacionismo possam esconder muita
coisa, não conseguem apagar nada. Não devemos aprender somente aquilo que
queremos saber. Devemos poder aprender o que é preciso saber.
Reparações históricas e desculpas oficiais
costumam vir na rabeira da própria História. E com frequência nada reparam.
Ainda assim, acabam compondo um retrato das feridas de cada nação. No caso
atual, a iniciativa de Biden não deve ser descartada como mero artifício
eleitoreiro visando ao pleito de 2024. Há também uma real preocupação com um
surto de apagamento histórico em curso na América profunda e retrógrada. Quando
governadores extremados como Ron DeSantis, da Flórida, ou Greg Abbott, do
Texas, ordenam escolas e bibliotecas públicas a varrer das estantes clássicos
da literatura negra e LGBTQIA+, um monumento nacional à coragem de Mamie Till
chega em boa hora.
Para a população negra dos Estados Unidos,
existe uma ferida coletiva que nenhuma reparação ainda conseguiu cicatrizar.
Ela tem nome extenso: Estudo Tuskegee de Sífilis Não Tratada no Homem Negro.
Trata-se do mais longo experimento não terapêutico em seres humanos da História
da medicina. Ele durou de 1932 até 1972 e teve como propósito estudar os
efeitos da sífilis em corpos negros. Por meio de concorridos convites
divulgados em igrejas e plantações de algodão, o Instituto de Saúde Pública da
época selecionou 600 homens, todos filhos ou netos de escravizados. A grande
maioria nunca tinha se consultado com médico. No grupo, 399 estavam
contaminados pela doença, e 201 eram sadios. Aos contaminados foi informado
apenas serem portadores de “sangue ruim”. Como o estudo visava à observação da
doença até o “ponto final” — a autópsia —, os doentes foram ficando cegos,
dementes e morreram sem conhecer a penicilina, que a partir dos anos 1940 se
tornou o tratamento de referência para sifilíticos. A família dos que morriam
recebia US$ 50 para cobrir o enterro. A pesquisa só foi interrompida em 1972,
quando o jornalismo da Associated Press revelou a história, levando o governo
americano a pagar US$ 10 milhões em acordo coletivo com os sobreviventes.
Oito deles, já quase nonagenários, estavam
no Salão Leste da Casa Branca em maio de 1997 quando o então presidente Bill
Clinton pediu desculpas públicas pelo horror cometido. Em discurso marcante,
falou em nome do povo americano:
— O que foi feito não pode ser desfeito. Mas
podemos acabar com o silêncio, parar de desviar do assunto. Podemos olhá-los de
frente para finalmente dizer que o que o governo dos Estados Unidos fez foi uma
ignomínia, e eu peço desculpas.
Ainda assim, passado menos de um ano, nova
barbárie experimental veio à luz, desta vez com cem meninos negros e hispânicos
de Nova York arrebanhados por três instituições de renome científico. Todos
eram irmãos caçulas de delinquentes juvenis e tinham idade entre 6 e 11 anos. O
estudo pretendia demonstrar a correlação entre determinados marcadores
biológicos e o comportamento violento em humanos. Para isso, aplicaram nas
crianças injeções intravenosas de fenfluramina, substância posteriormente
associada a danos à válvula mitral. Às mães que os levavam ao local do experimento
foi oferecida uma recompensada de US$ 125 .
Tudo isso e muito mais faz parte do pesado
histórico de abuso de corpos negros, até mesmo em nome da ciência. Não espanta,
portanto, a rejeição quase atávica à obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19
manifestada pela população negra em tempos recentes. A retirada de circulação
ou dificuldade de acesso a livros que narram essas vivências deveriam ser
impensáveis em 2023. É sinal de uma sociedade adoecida pelo medo de livros.
2 comentários:
Aos que fizeram uma leitura muito rápida deste artigo eu peço que, se puderem, voltem ao artigo para uma leitura mais atenta.
Os textos de Dorrit Harazim sempre valem muito a leitura.
Aqui, Harrazim fala de como uma mãe negra norteamericana escolheu expor a sua dor ao mundo quando velou seu filho brutalizado por supremacistas raciais.
A mãe precisava velar seu filho brutalizado ; ao mesmo tempo, precisava sensibilizar a comunidade quanto ao que a brutalidade pode causar a suas vítimas.
O corpo da criança violentada havia se transformado em uma massa disforme e estava com uma apresentação muito chocante. O mais comum nestas situações é camuflar o aspecto do corpo para causar menos abalo nos que comparecem ao velório em solidariedade à família e assim minorar a dor de todos à visão do morto.
Mas aquela mãe teve coragem de expor sua dor à participação de todos, causando uma comoção da comunidade diante da imagem daquela violência, comoção que não seria causada se o horror fosse escondido.
Quem ganhou com a coragem da mãe em expor a imagem de sua dor foi a luta da sociedade, ao ter a comunidade sensibilizada pelo absurdo da violência animalesca dos suprematistas.
Excelente e esclarecedor artigo.
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