domingo, 30 de julho de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Dois protagonistas e um vácuo político

Após três semanas sem publicação da coluna, permanecerei, neste artigo, próximo ao tema do último publicado antes do recesso (O jogo político e a institucionalidade dos poderes de governo, 09.07.23). Sigo aqui não apenas o fio daquela análise precedente, como pistas de outras análises que também sugerem estar havendo uma reconfiguração da dinâmica interna do sistema político, no que se refere a papéis que Legislativo e Executivo, assim como instituições e atores políticos diversos, vêm desempenhando, praticamente, na sua interação institucional. Tanto os dois poderes como partidos políticos e atores individuais que exercem responsabilidade institucional destacada têm atuado de modo a pôr em xeque a habitual lógica de coalizão parlamentar para fins de governo e a realçar o que, especulativamente, pode se entender como lógica de coligação eleitoral contínua, assentada em acordos pontuais instáveis.

Como possível explicação – ou ao menos interpretação – dessa inflexão nas condutas políticas de atores relevantes (que não vem de hoje, mas se intensificou e “normalizou” a partir das eleições de 2018), aparece o deslocamento das garantias de governabilidade do país de um circuito de relação institucional antes coordenado pelo Presidente da República para outro, controlado por maiorias parlamentares formadas com grande autonomia política perante governos. Enquanto a governabilidade (especialmente econômica) depende cada vez mais dessa coesão legislativa do que de uma interação fluente entre os poderes, as estratégias eleitorais de lideranças e partidos, ao se tornarem atividades permanentes e crescentemente prioritárias, para esses atores, passam a demandar recursos políticos e materiais provenientes de decisões de ambos os poderes, exigindo práticas de cooperação entre eles.  O orçamento público é o melhor exemplar dos laços que os atam.

Acrescentarei, a esse pano de fundo, uma reflexão sobre como análises de conjuntura podem/devem ser afetadas pela reconfiguração sistêmica. Essas análises, para manterem pés no chão, precisam lidar com o fato, a princípio insólito, da acentuação de poder pessoal nos dois poderes, em pleno processo de reinstitucionalização após a liquefação da política nos anos bolsonaristas. Falo, evidentemente, de um “duplo L” que pontifica na nova conjuntura. De um lado, o de Lira movimenta-se entre demandas pragmáticas (individuais e corporativas) dos seus pares, por prerrogativas e recursos públicos e pressões, também corporativas, de agentes do PIB, dispostos a rebaixar aquelas demandas. Nesse ir e vir, submete mais e mais o processo legislativo da Câmara a seus desígnios imperiais. O L de Lula, por sua vez, faz do terceiro governo do personagem uma sucessão de soluços entre compromissos com parâmetros de governabilidade ditados pelo Legislativo e requerimentos da arena plebiscitária, na qual seu poder pessoal se reproduz como pêndulo, conservando-se árbitro da conveniência de mostrar, a cada ocasião particular, uma das faces desse script. Nenhuma orientação nítida flui. Ao contrário da maioria coesa do Legislativo, para cuja lógica eleitoral governabilidade e palanque são subprodutos distintos da mesma política cartorial, Lula precisa usar o cartório, ritos institucionais e discurso plebiscitário consentido pelos ritos, como meios de manter salvo o seu cargo e ativo o seu palanque.

Na contramão dessa realidade complexa e opaca, rica em desdobramentos possíveis, mas não ainda suficientemente delineada, sobrevive, em análises de conjuntura, um raciocínio resiliente, inercial, que entende o governo do país como emanação de escolhas estratégicas do Presidente da República, enfatizando a dinâmica do Executivo como dínamo dos processos decisórios. Por esse ângulo já não se vê bem as coisas, mas ele segue mantido para analisar, por exemplo, o espectro da reforma ministerial. O objetivo desde sempre atribuído à aguardada reforma é o de ampliar e estruturar a base parlamentar governista para assegurar governabilidade através da aprovação de matérias de interesse do governo. Mas não está claro qual é a agenda de votações que se tem, afinal, em mira.

No plano da economia, há uma agenda do Legislativo composta das chamadas "reformas micro econômicas", oriundas do tempo do ex-ministro Paulo Guedes, com orientação pró-mercado. Nas atuais condições de temperatura e pressão vigentes naquele ambiente, elas serão feitas, não porque a composição ministerial seja essa ou aquela, mas porque é uma agenda que já tramita no Congresso e em torno da qual há, como havia no caso do arcabouço fiscal, consensos bem além dos marcos do antigo ou do novo governismo. Na ponta oposta à que se situa essa agenda de persuasão figura uma de embate, na qual pautas-bomba de costumes talvez não surjam com frequência, mas pode entrar, por exemplo, a reforma administrativa que agrada ao PIB e embaraça a relação do PT com parte de suas bases. Ministérios para o centrão podem arrefecer ânimos dispostos a jogar água nos palanques petistas.

O que não se conhece é a pauta do Executivo que a reforma ministerial viabilizaria. O ministro Haddad elevou um pouco o tom político, na semana passada, após a vitória nas mudanças das regras do CARF e avançou comentários sobre mudanças no Imposto de Renda, as quais seriam, do ponto de vista do governo, um complemento socialmente progressista da reforma tributária. Ecoa assim compromisso de campanha do Presidente. Pode ser uma pista sobre essa agenda ainda não explicitada? O ministro da Fazenda foi secundado hoje pelo Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, que aventou a possibilidade de cortes de despesa se o Congresso não aprovar aumento de receitas. Mais uma evidência de sintonia entre as duas pastas, mesmo num momento em que a ministra Simone Tebet foi alvejada por um torpedo político petista. Mas essa sintonia não revoga a falta de outra, entre essa pauta progressista insinuada pelo governo e as inclinações e compromissos existentes, num Congresso de centro-direita, com setores a princípio afetados, negativamente, pelas cogitações que Haddad anunciou. O certo é haver controvérsia. O duvidoso é se a articulação política do governo crê e aposta que, abrindo espaços ao centrão no ministério, obterá, de fato, votos parlamentares para converter a pregação em lei. Ou se essa pregação, assim como vários outros pontos de uma pauta à esquerda, tem como endereço não exatamente a consagração legislativa e sim a arena plebiscitária, que é a principal bússola política do presidente e um campo de teste obrigatório para um eventual candidato seu.

A simultaneidade constante e o paralelismo “funcional” entre as lógicas da governabilidade e da busca de popularidade subvertem calendários concebidos em etapas estanques e são a principal novidade que a reconfiguração sistêmica das relações entre os dois poderes governativos acrescenta à conjuntura política, afetando estratégias de líderes e de partidos. Traz possibilidades desses atores adotarem políticas de aliança distintas e também simultâneas e paralelas.

Uma consequência disso é a impropriedade de se pensar, por exemplo, a centro-direita, campo político hegemônico no Congresso e em vias de crescer no Executivo, como se fosse um bloco coeso, tendente a abarcar também o centro. A coesão é real no apoio à agenda de reformas econômicas e administrativas, mas nem de longe repete-se no plano da política interna aos poderes ou em pautas políticas setoriais.

Artur Lira tenta borrar as diferenças internas a esse grande campo para reinar sobre o conjunto dele e se apresentar, a interlocutores políticos e econômicos, como mais que seu representante, seu mentor. Já Lula, o que está fazendo há sete meses é, gradual e sistematicamente, optar por uma centro-direita mais à direita – a de Lira - em detrimento de outra, mais ao centro do espectro político. Em outras palavras, empoderando o centrão contra um centro alternativo ensaiado, no terreno do Legislativo, pelo MDB e PSD, dois partidos de protagonismo relevante no Senado e capazes de, unidos ao Republicanos e ao Podemos em bloco parlamentar na Câmara, criarem uma alternativa ao poder pessoal de Artur Lira. Esses dois partidos sofrem, no Executivo, um monitoramento ou mesmo bloqueio parcial de seus espaços políticos pela influência assimétrica do PT nesse âmbito.

Lira e Lula ajudam-se mutuamente ao procurarem realinhar o Republicanos, na contramão do governador de São Paulo. O argumento do governo é que com isso afasta aquele partido do bolsonarismo, com o qual Tarcísio de Freitas ainda teria laços operativos e simbólicos, no passado e no presente. Falacioso, primeiro, porque são raros os que, no contexto político paulista, poderiam, sem olhar para os lados, atirar a primeira pedra no atual governador. Falacioso também porque aquilo que de fato fazem é tentar empurrar Tarcísio de Freitas a uma guinada mais à direita para, na sequência, ser possível demonizá-lo com mais razão. E, principalmente, tentar cortar os elos do Republicanos com o PSD e o MDB pelo potencial que têm os três partidos juntos de constituírem, mais adiante - a depender dos rumos do governo, do seu desempenho eleitoral e das sucessões nas duas casas legislativas – uma aliança política mais perene e de maior organicidade. Poderes pessoais da dupla de atores aqui analisada não se dão bem com pares que não atuem estritamente dentro da lógica da política líquida que pontificou sem peias durante o governo de Bolsonaro.

A investida sobre o ministério do Planejamento, no episódio da escolha do novo presidente do IBGE, deve ser inserida nesse quadro mais geral. A fulanização do assunto pode servir a interesses políticos de distintos “lados”, mas não ajuda a entender melhor o que se passa. Do mesmo modo não ajuda à elucidação da cena comprar o hábil discurso minimizador da ministra pelo seu valor de face. Os caroços podem entalar quem não os avistar para mastigá-los bem, ou expeli-los, antes de deglutir o angu.

Em condições típicas de normalidade do que sempre foi o presidencialismo de coalizão cabe interpretar, sem dúvida, como uma óbvia e flagrante imprudência designar uma figura de trajetória politicamente polêmica como Marcio Pochmann para dirigir uma área tão sensível para políticas públicas, justamente numa hora em que o ambiente econômico melhora, com a adoção de soluções moderadas no Legislativo e de uma política de entendimento ao centro no Executivo, levada à frente sob a liderança do ministro da Fazenda, com a cooperação ativa da ministra do Planejamento. O fato gerador de uma quase crise política no governo tem até cheiro forte de provocação, sabotagem, quiçá de fogo amigo. Espantoso, pelos padrões convencionais de conduta que se espera do Presidente num sistema assim, Lula não proteger Haddad e sua importante aliada de tal risco numa hora dessa.

O maior problema seria a fricção política que essa indicação potencialmente traz para o trabalho da equipe econômica, que precisa de sossego e blindagem. Haddad e Tebet vêm tocando uma partitura comum, internamente ao governo e em entendimento fluente com a agenda e a liderança do Congresso. Essa agenda, por sua vez, parte de premissas e de diagnósticos bem distintos dos pontos de vista públicos de Pochmann. Seria o caso de querer fazer contraposição quando se tem plena noção do limite de governabilidade, no país da política real? É até possível e talvez até se deva, a partir de um governo com perfil de centro-esquerda que se elegeu com um discurso esquerdista, apesar do apoio de liberais, questionar, através de políticas públicas específicas, diagnósticos e premissas que sustentam a agenda coesa do Congresso. Mas fazer isso no IBGE, um órgão de importância para a política econômica e o de maior envergadura num ministério sistêmico, gerido por uma aliada liberal, seria brincar com fogo.

Todas essas convicções razoáveis sobre a imprudência do gesto político parecem relativizadas quando se considera o paralelismo entre governabilidade e estratégia eleitoral que Lula parece começar a crer que vigora no Brasil. Colocar no IBGE, como antes no BNDES, um contraponto à lógica política da área econômica do próprio governo não afetaria as condições de governabilidade política com que os ministros da área operam porque essa governabilidade depende não tanto do que  o presidente e vários outros ministros digam ou façam, desde que esses apitos não alterem a atitude dos ministros da área, de assimilação das premissas e da agenda de políticas que orienta a maioria legislativa. É improvável que o espaço dado ao centrão de Lira altere esses condicionantes estipulados pelo interlocutor que tem o maior poder de agenda. O que esses novos espaços farão é dar ao governo o nada a obstar dessa maioria à agitação e propaganda do presidente e seu governo em torno dos temas que são caros a seu discurso político. Os termômetros da eficácia desse acordo serão, de um lado, o centrão no ministério, de outro, a abstenção da maioria legislativa de lançar torpedos legais contra a pauta do palanque do presidente.

Em suma, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Lula poderá sempre dizer que não faz mais por causa do Congresso e do BC. Lira poderá continuar sendo o mandachuva que ajuda a reeleição de deputados. E ambos compartilharão o bônus de responsáveis pelo êxito de uma política econômica moderadamente liberal que, de resto, tranquilizará os agentes da economia. Se a economia não corresponder aos planos aí a equação toda fracassa e restará para o futuro o balanço sobre qual poder herdará a parte politicamente reversível do fracasso e qual deles ficará com o mico na mão.

Lira prepara-se para superintender a sua sucessão, antes, durante e depois dela ocorrer. Seu limite é o da continuidade institucional, um tempo que não se pode adivinhar. Lula prepara-se para enfrentar o centro e a centro-direita liberal juntos em 2026. Ou num confronto direto, se o bolsonarismo definhar, ou como uma terceira via, a incorporar por gravidade. Quer o centrão no seu palanque para "provar", mais uma vez, que ele e o PT são a única via para a democracia se salvar.

Se alguém disser que é cedo para falar de eleições é porque não está convencido de que o presidencialismo de coalizão se exauriu e acha que ele pode dar conta do recado das urnas ou é porque não quer que venha a público a notícia de que ele, de fato, se exauriu e a competição eleitoral entrou em moto contínuo, seguindo à deriva. Uns e outros têm suas razões, para crer ou dissimular. Compartilhei outras, que sugerem estar se formando um vácuo político em torno de duas personalidades espaçosas.

*Cientista político e professor da UFBa

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