Folha de S. Paulo
O corpo exposto deixa ver na barriga o
rastro da febre coletiva que o elegeu
Apesar da difícil decifração, terá havido
algum sentido de marketing na exposição pública do torso nu do
ex-presidente, agora cabo eleitoral. Comparou-se o
gesto ao de Putin, mas este se exibiu em aparente boa forma
física e, mesmo assim, com um retoque de sombra que atenua a naturalidade
imediata da pele. O autocrata russo pretendia provavelmente evidenciar, com
certa discrição, marcas de saúde ou de sua alegada capacidade esportiva.
Supõe-se de bom tom político a prova pública da sanidade física de um governante.
O mesmo não acontece com a mental, em princípio levada oficialmente na flauta.
Dona Maria 1º, rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, louca
varrida, batia os braços como se fossem asas de galinha. Já Delfim Moreira,
oitavo presidente do Brasil e o único considerado clinicamente louco, era
manso, notório por comportamentos descosidos como vestir-se de fraque com
condecorações para solenidades que não existiam.
Na crônica subterrânea, a visibilidade do corpo é capaz de repercutir
fortemente sobre o imaginário coletivo em todas as épocas. São prolíficas as
narrativas sobre o que se chamou de "humanidade errante", ou seja, as
massas despejadas nas estradas europeias em consequência das grandes fomes nos
séculos 16 e 17 ou das epidemias devastadoras, como a cólera. A fome matava
mesmo, mas também a circulação de micróbios, que sinalizava populações de
corpos potencialmente virulentos. As febres respondiam pelo apodrecimento
rápido dos organismos.
Um corpo representado como público não é simplesmente orgânico, mas
biopolítico. Nas redes, o cabo eleitoral da ultradireita aparece sem
retoque, a carne nua e crua. A ausência de camisa sugere ao
observador insólita intimidade, o que suscita a obscenidade (do latim
"ob", "em frente", e "scena") como categoria
semiótica explicativa de uma imagem sem mediação ético-visual.
Não se aplica a ilustrações médicas, e sim àquelas destinadas no limite à
circulação íntima. O desvio costuma ser pornográfico.
Alheio a ideais atléticos ou à simetria
recomendável a padrões de saúde, o torso exposto deixa ver na barriga o rastro
da febre coletiva que o elegeu, assim como da virulência que se seguiu. A
imagem, desvio de marketing do espaço privado para o público, parece querer
exibir a cicatriz como marca sacrificial do corpo, acenando aos fundamentos
imaginários de toda comunidade.
Mas o público que
o constituiu, por sua vez constituído pelas redes sociais, é volátil
e voraz de objetos apetecíveis. É possível que esteja à espera de outros corpos
virulentos, porém, mais empáticos, distantes do que possa parecer um cadáver de
olhos abertos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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