Regulação das apostas não pode se limitar a taxação
O Globo
Cobrar impostos é importante, mas é preciso
também zelar pela credibilidade dos esportes
No fim do mês passado, o governo publicou
uma Medida Provisória para regulamentar as apostas esportivas
no Brasil, iniciativa necessária em vista da expansão significativa da
atividade no mundo inteiro, do vácuo jurídico existente no país e das inúmeras
fraudes que têm surgido afetando a credibilidade do esporte. Agora o Planalto
prepara uma estrutura para fiscalizar as novas regras.
O plano é
criar a Secretaria Nacional de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da
Fazenda. A equipe deverá reunir agentes da Polícia Federal (PF)
e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que passarão a
monitorar as empresas de apostas, conhecidas como bets. Pelo projeto, a nova estrutura,
criada por decreto, terá de 54 a 65 cargos e custo estimado de R$ 4 milhões ao
ano. Será dividida em quatro subsecretarias: credenciamento, monitoramento,
fiscalização e sanção.
Pelo que se desenha, fica claro que o governo está preocupado essencialmente com a arrecadação. Não que isso não seja importante. Sem dúvida, um dos motivos que exigem a regulamentação das apostas no Brasil é a necessidade de taxar as empresas que atuam num setor lucrativo com enorme potencial de crescimento. Nada mais justo que contribuam com o Estado. Boa parte do dinheiro arrecadado será destinada a rubricas importantes do Orçamento, como seguridade social, Ministério do Esporte, Fundo Nacional de Segurança Pública e educação básica, além de aos próprios clubes.
Pela estimativa do governo, a taxação das
empresas de apostas proporcionará arrecadação de cerca de R$ 2 bilhões em 2024,
e o valor poderá chegar a R$ 12 bilhões nos próximos anos. Segundo as regras
estabelecidas na MP, a alíquota será de 18% sobre a receita bruta. A licença de
operação custará R$ 30 milhões. O Ministério da Fazenda calcula que ao menos 70
empresas estejam interessadas em regularizar sua situação, número até modesto
considerando que cerca de 500 atuam no país.
Por mais importante que seja taxar essas
empresas num momento em que aumentar a receita será necessário para cumprir as
metas do arcabouço fiscal, a questão das apostas esportivas não pode ser
reduzida à arrecadação. Isso ficou evidente quando veio à tona no início do ano
o escândalo de manipulação de resultados para favorecer apostas fraudulentas.
Investigações da polícia e do Ministério Público de Goiás mostraram que
jogadores recebiam propina para cometer pênaltis e levar cartões em campeonatos
regionais e nacionais, de modo a gerar lucros para quadrilhas de apostadores.
Claro que será necessário fiscalizar se as
empresas cumprirão as obrigações previstas na regulamentação, mas é preciso
cuidar também da parte esportiva, pois os jogos — e tudo o que estiver ligado a
eles — são o objeto das apostas. O esquema revelado pelo MP de Goiás, mais
amplo do que se imaginava, afeta a credibilidade do futebol brasileiro. Por
isso federações, clubes, atletas, CBF e Ministério do Esporte também deveriam
se envolver no monitoramento. Se o torcedor perder a confiança nos campeonatos,
as apostas não farão mais sentido e, sem elas, não haverá arrecadação. Todos
perderão.
Trapalhada do governo paulista reflete
fantasia sobre educação digital
O Globo
Governador Tarcísio não teve opção e recuou
da decisão de abrir mão de material didático do MEC
Fez bem o governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, em recuar da intenção de desligar o estado do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), do MEC, usando apenas material próprio na
sala de aula. Há duas semanas o secretário da Educação,
Renato Feder, anunciara que todo o material didático no ciclo básico seria
próprio, apresentado em formato digital. Diante da gritaria, Tarcísio já se
comprometera a oferecer também apostilas impressas aos 3,5 milhões de alunos da
rede pública paulista. Agora, com uma liminar da Justiça suspendendo a saída do
PNLD, o recuo foi total.
O episódio expõe como o debate sobre
educação no Brasil está distante das salas de aula. A resistência de Feder aos
livros do MEC tem muito de ideológica — até em livros de matemática ou
clássicos literários os extremistas enxergam a sombra do “comunismo” — e pouco
de racional. A discussão sobre o formato em que o material didático é oferecido
não pode obscurecer o mais importante: seu conteúdo. Pesquisadores apontaram
diversos problemas no material digital do governo paulista. Ao mesmo tempo, a
rede municipal da cidade de São Paulo desde 2017 adota apostilas próprias com
os livros distribuídos pelo MEC. Bem usado, um formato complementa o outro.
A discussão também é contaminada pela
fantasia que vê o uso de ferramentas digitais na escola necessariamente como
avanço. A pandemia deveria ter deixado claros os limites da tecnologia. “A aula
digital remota não funcionou”, diz Alexandre Schneider, ex-secretário municipal
de Educação de São Paulo e pesquisador da FGV-SP. Houve atraso na
alfabetização, mesmo nas escolas privadas. O ensino remoto prejudicou tanto
mais ricos quanto mais pobres. Alunos de uma mesma série aprenderam menos na
pandemia do que com as aulas presenciais depois dela.
Em maio, a Suécia paralisou o projeto de
digitalização das aulas que deveria ser acelerado neste ano. A ministra da
Educação, Lotta Edholm, culpa o uso de telas em sala de aula pela queda no
nível de compreensão na leitura das crianças suecas no teste internacional de
alfabetização (Pirls, na sigla em inglês). O governo sueco decidiu investir €
105 milhões em dois anos na compra de livros didáticos.
A pesquisa Estudantes, Computadores e
Aprendizado: Fazendo a Conexão, da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), já mostrava em 2015 que vários países não
obtinham melhoras claras no rendimento dos alunos investindo em tecnologia nas
salas de aula. A OCDE aconselha que o básico em alfabetização e matemática seja
ensinado da forma tradicional. Isso facilita o uso de ferramentas digitais mais
à frente. “O fetiche da tecnologia termina atrapalhando seu uso”, diz
Schneider. “É preciso partir do que se quer ensinar para usar a tecnologia, e
não partir da tecnologia para definir o que fazer com os estudantes.” A regra
deveria ser exposta na parede do gabinete de cada secretário de Educação.
Folha de S. Paulo
Temores do mercado estão ligados a cenário
externo, mas contas do governo pesam
Houve melhora recente, sem dúvida, das
expectativas acerca da economia brasileira, em parte por decisões até aqui
responsáveis, em geral, do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —e que
felizmente não deram consequência à retórica imprudente do mandatário.
Mesmo assim, as últimas semanas revelaram
que o quadro ainda é delicado, como evidenciado pela sequência
inaudita de quedas da Bolsa de Valores, além de nova escalada das
cotações do dólar.
Nunca é seguro embasar qualquer prognóstico
em oscilações do mercado financeiro, para o bem ou para o mal. Deve-se apontar,
também, que parte expressiva da recente onda negativa vem do exterior.
Renovados temores de que os juros nos EUA poderão ter que subir ainda mais
contribuíram para a valorização da moeda americana.
A crescente evidência de que a China passa
por persistente desaceleração e riscos recessivos, além disso, sugere potencial
contágio para economias emergentes que se ancoraram no dinamismo chinês nas
últimas décadas.
Tais fatores são um lembrete de que não há
espaço para complacência ou descuido do governo na política econômica.
A divulgação da nova regra de controle das
contas públicas, em vias de aprovação final na Câmara dos Deputados, e a
permanência da meta de inflação em 3% para 2026 contribuíram para que o Banco
Central iniciasse um ciclo de cortes de juros, que deve se estender até o
próximo ano.
A atividade produtiva também surpreendeu
positivamente até agora. Ainda que muito do resultado esteja ancorado na
safra recorde, que expandiu o PIB do setor em 20% no primeiro trimestre,
por ora há desempenho razoável dos serviços e do comércio.
A contínua robustez do mercado de trabalho,
com bom incremento da renda e menor desemprego, é outro ponto positivo.
Entretanto os sinais preocupantes não advêm
apenas do exterior. Em particular, vai ficando claro que o governo terá grande
dificuldade em cumprir a meta de zerar o déficit fiscal em 2024.
A arrecadação de impostos e a economia dão
sinais de desaceleração. Diante da alta continuada das despesas, as projeções
para o crescimento da dívida pública devem voltar a piorar.
O problema é que a estratégia da equipe
econômica depende de uma exorbitante elevação da carga tributária, que por sua
vez se ancora em projetos de difícil tramitação no Congresso. Ruídos políticos
em torno dessa agenda já aparecem.
Será fundamental a aprovação já tardia da
regra fiscal e a elaboração de um projeto crível de Orçamento para 2024, que
precisa ser enviado ao Congresso neste mês.
Carbono em alta
Folha de S. Paulo
Brasil enfim cria proposta de mercado de
emissões, mas de implementação vagarosa
Com mais de dez anos de atraso, o governo
brasileiro dá largada na ideia de um mercado de emissões, um dos meios para
mitigar o aquecimento global. Na segunda (21), o tema entra na pauta do
Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, mas não será em foro
com 246 integrantes que se alinharão todos os detalhes.
O primeiro mercado de carbono em larga
escala foi o Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia, de 2005. A
partir do estabelecimento de um teto para emissões, grandes empresas que
produzirem menos gases do efeito estufa podem vender créditos para aquelas que
ultrapassam o limite.
Por aqui nunca prosperou o debate sobre tal
dispositivo, que estimula redução de emissões a partir de mecanismos de
mercado. Setores poluentes, como transportes e geração de energia por
combustíveis fósseis, faziam pressão contrária, e adeptos do estatismo
duvidavam da capacidade do setor privado de liderar a contenção.
Agora, há um
anteprojeto do Planalto. Parece chegar ao fim a inércia
palaciana que destacava a redução do desmatamento como única contribuição
brasileira no combate contra mudanças climáticas.
A proposta abarca só uma parcela das
emissões nacionais (o restante vem principalmente do agronegócio). Sem cortes
nos outros setores, mesmo a redução a zero da devastação florestal será
insuficiente para cumprir obrigações do Brasil no Acordo de Paris (2015).
Sair da prostração não garante o sentido de
urgência que a crise do clima impõe. O que se esboça na proposta do governo é
um mercado de carbono com implementação vagarosa e paulatina, três anos após
alinhavadas todas as regras.
Ora, a ciência climatológica projeta que o
planeta precisa reduzir emissões quase à metade até 2030.
A questão crucial restará na entidade
encarregada de operacionalizar e controlar o sistema de comércio de carbono.
Uma comissão com duas dezenas de ministros, como cogitado, não parece o órgão
mais propício para alocar emissões entre setores que lutarão para reduzir o
próprio ônus.
Uma
autoridade nacional para regular a questão climática pode ser boa ideia.
Até que se aprovem estrutura e recursos, porém, tempo precioso será
desperdiçado.
A atmosfera não tolera inação. Assim o demonstram eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes, a acossar as populações mais pobres da Terra.
O novo Aras, o velho Fouché
O Estado de S. Paulo
O procurador-geral da República não tem
nenhum pudor em mostrar-se servil ao governo de plantão. Ao contrário, faz
disso sua marca registrada, na expectativa de mais uma recondução
Em 2019, ao indicá-lo para chefiar a Procuradoria-Geral
da República (PGR), o presidente Jair Bolsonaro disse que Augusto Aras seria a
“rainha” no tabuleiro de xadrez de seu governo, ou seja, a peça mais poderosa
na defesa do “rei” e no ataque aos seus desafetos. Era uma afirmação
absolutamente equivocada, tendo em vista o papel institucional que cabe ao
procurador-geral da República desempenhar. Em vez de servir à ordem jurídica e
ao regime democrático, como determina a Constituição, o cargo mais alto do
Ministério Público iria servir a Jair Bolsonaro.
O fato é que, ao longo de três anos e meio
– de setembro de 2019 até o fim de 2022 –, Augusto Aras não se sentiu
constrangido com as palavras de Jair Bolsonaro. Ao contrário, fez delas o seu
lema. A PGR foi fiel escudeira do governo federal, mesmo diante dos casos mais
escabrosos – com destaque para as omissões na pandemia e os ataques à
democracia. Segundo o procurador-geral da República, não havia motivo para a
PGR atuar, pois tudo estava sempre dentro da mais plena normalidade
institucional.
A proteção de Augusto Aras a Jair Bolsonaro
não se baseou apenas em inação. Ele trabalhou ativamente para dificultar as
investigações do Ministério Público sobre as mobilizações golpistas,
extinguindo grupos de investigação e devolvendo a procuradores pedidos de
informações ao Exército e à polícia sobre acampamentos em quartéis.
A ferrenha atuação de Augusto Aras em favor
do bolsonarismo durou, no entanto, enquanto Jair Bolsonaro esteve no poder.
Bastou a mudança de presidente da República para que a PGR de Augusto Aras
inaugurasse uma nova compreensão do Direito e da realidade.
Em tese, essa alteração repentina de
posicionamento deveria gerar constrangimento. No caso de Augusto Aras, parece
que ele busca exatamente transmitir essa impressão. Quer deixar estampada sua
subserviência. Quer ser visto como o primeiro aliado do governante de plantão.
Quer ser o procurador-geral da República dos sonhos de todo presidente da
República.
Não há limites para a desfaçatez. O governo
Lula ajuizou no STF uma ação inteiramente absurda questionando a forma como foi
feita a privatização da Eletrobras. Pois bem, Augusto Aras pôs a PGR a serviço
de Lula e defendeu o aumento do poder de voto do governo na Eletrobras. Os
argumentos são esdrúxulos. “A União, até então controladora da empresa,
presenciou, de mãos atadas, os acionistas minoritários limitarem seu poder de
voto, em benefício exclusivo deles e em prejuízo exclusivo da União”, disse
Augusto Aras, numa inversão da história. Ressalte-se: o que o procurador-geral
da República questiona agora foi feito durante o governo Bolsonaro, quando ele
não viu nenhum problema.
São muitos os casos de mudança de posição
da PGR para agradar ao governo Lula. Neste ano, Augusto Aras passou a defender
a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos publicados pelos
usuários nas redes sociais; a postular a inconstitucionalidade da Lei das
Estatais; a questionar o indulto natalino concedido por Jair Bolsonaro, dizendo
que era excessivo e desproporcional; a defender a essencialidade da gasolina
para fins de incidência do ICMS.
O novo Aras, o do governo Lula, pediu
também que o STF obrigue o Congresso a regulamentar o direito do trabalhador
contra demissões arbitrárias ou sem justa causa. Em uma ação envolvendo o Marco
do Saneamento, disse que a Corte não deveria analisar o pedido contra o serviço
estatal sem licitação, bem ao gosto do governo federal. E, rejeitando suas
próprias declarações anteriores, criou uma “Comissão de Defesa da Democracia” –
vejam só – no dia 9 de janeiro.
Por ter servido a diferentes regimes,
transitando com extrema facilidade por diversas correntes ideológicas, o
político francês Joseph Fouché (17591820) entrou para a história como o
paradigma do oportunismo e da ausência de convicções na vida pública. Sua
escolha era sempre pelo lado vencedor. Na vida política, isso gera indignação.
No Ministério Público, é atestado de incompatibilidade com a função.
As relações perigosas de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
É espantosa a tranquilidade com que se
admite que Bolsonaro, enquanto presidente, tratou pessoalmente com um
reconhecido trambiqueiro sobre planos golpistas para desacreditar as urnas
O depoimento prestado por Walter Delgatti
Neto, vulgo “Vermelho”, à CPMI do 8 de Janeiro deve ser recebido com muita
cautela, tanto pela sociedade em geral como pelas autoridades – políticas,
policiais e judiciárias – incumbidas de investigar a tentativa de golpe de
Estado ocorrida no início do ano. As razões para o cuidado são elementares. Em
primeiro lugar, Delgatti muito disse à CPMI para implicar o ex-presidente Jair
Bolsonaro como líder de uma trama golpista, mas, a rigor, não provou suas
alegações mais graves. Além disso, o depoente é um criminoso condenado que está
preso, de modo que não pode ser descartada a possibilidade de que suas
gravíssimas acusações façam parte de uma estratégia para obtenção de algum tipo
de alívio penal. Tudo precisa ser muito bem apurado.
Dito isso, um fato restou incontestável a
partir do depoimento do tal “Vermelho” aos parlamentares. Bolsonaro, então
presidente da República, manteve diálogos com o autointitulado “hacker” e,
pior, abriu as portas do Palácio da Alvorada para receber o vigarista em café
da manhã no dia 10 de agosto de 2022, às vésperas, portanto, do início oficial
da campanha eleitoral. Por si só, a presença de um notório trambiqueiro na residência
oficial da Presidência é um escândalo sem precedentes. Trata-se de mais uma
evidência da degradação moral a que Bolsonaro submeteu o cargo que lhe fora
confiado pelos eleitores em 2018.
O próprio senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ),
presente na comissão, admitiu que o pai recebeu “Vermelho” no Alvorada. O
encontro, segundo o filho “01”, teria se prestado a “uma sondagem” para que o
“hacker” pudesse atuar “junto com aquele grupo das Forças Armadas” que estava
no TSE a mando de Bolsonaro para supostamente encontrar vulnerabilidades nas
urnas eletrônicas. Ou seja, “Vermelho” teria atuado como uma espécie de
consultor técnico, digamos assim, daqueles militares que integraram a comissão
especial designada pelo Ministério da Defesa para inspecionar o código-fonte
das urnas eletrônicas, como uma das partes da Comissão de Transparência das
Eleições formada pelo TSE.
Talvez o senador Flávio Bolsonaro não tenha
se dado conta da extrema gravidade do que admitiu perante o País, desde a sala
de sessões da CPMI do 8 de Janeiro. Ou talvez o dedicado filho de Bolsonaro
ache normal e aceitável que um presidente da República entabule negociações com
um fora da lei para ajudá-lo a alimentar suspeitas em relação à higidez do
sistema eleitoral brasileiro, o que configura evidente trama golpista. É
estarrecedor.
De acordo com o depoimento prestado à CPMI,
Delgatti teria sido encaminhado ao Ministério da Defesa pela primeira vez por
Jair Bolsonaro em pessoa, logo após aquele famigerado desjejum no Alvorada.
Outras quatro visitas aos militares teriam ocorrido. Fossem realmente sérios e
estivessem imbuídos de aferir, de fato, a segurança das urnas eletrônicas, os
militares que integraram a comissão especial eleitoral deveriam ter posto
Delgatti da porta para fora no primeiro encontro, se não ter lhe dado voz de
prisão.
Em nenhum momento no curso dessas
maquinações o interesse público esteve em alta conta, vale dizer, não havia uma
genuína iniciativa, nem de Bolsonaro nem dos militares que desonraram a farda
ao prestar-lhe vassalagem, de colaborar para que a confiança no sistema
eleitoral brasileiro, de resto atestado como seguro por instituições e países
insuspeitos, fosse compartilhada pelo maior número de cidadãos. Deu-se o exato
oposto. O objetivo era justamente criar ainda mais confusão no País – e por
meio de um rematado trapaceiro a quem teria sido pedido até que simulasse uma
“invasão” a uma urna fajuta em cima de um palanque com o objetivo de “provar” a
mentira de Bolsonaro segundo a qual as eleições no Brasil seriam suscetíveis à
fraude.
O País merece uma investigação extremamente
profissional dessas e de outras suspeitas gravíssimas que pairam sobre Jair
Bolsonaro e os que a ele podem ter se associado para subverter a democracia. O
peso das leis é o maior instrumento de defesa do Estado Democrático de Direito.
Precipício argentino
O Estado de S. Paulo
País vive caos provocado por
desvalorização, inflação, recessão e resultado das primárias
A Argentina vive a situação mais
representativa do derretimento de uma economia: a indefinição de preços. Do
valor da moeda nacional ao dos bens da cesta básica, as referências monetárias
diluíram-se de vez depois da desvalorização de 18% da cotação oficial do peso
anunciada pelo Banco Central no último dia 14. Da produção e importação de
insumos aos quiosques de doces e cigarros, passando pelos consumidores, a
economia foi abduzida pelo caos. Rumores surgidos no vácuo desse anúncio, há
tempos exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como correção essencial
e inevitável da taxa de câmbio, espraiaram ainda mais instabilidade no país e a
incerteza mundo afora sobre a real profundidade do abismo econômico argentino.
O caos completa-se com o cenário de queda
de 2,5% no PIB de 2023, de estimativa de taxa de inflação de 120% até dezembro,
de volume raso de reservas internacionais e de descumprimento da meta de
déficit primário das contas públicas. É certo que governos de diferentes
colorações ideológicas contribuíram para paralisar investimentos e
desestabilizar a economia nas últimas décadas. A “criatividade” refletiu-se nos
calotes da dívida pública, no estatismo, no descumprimento de objetivos
traçados e, mais recentemente, nas 16 taxas de câmbio existentes nesse país
onde cada espirro desata uma corrida ao dólar. O resultado mais triste desse
“esforço” está na presença de 40% dos argentinos na faixa de pobreza.
O país tem sido historicamente um celeiro
de fracassos econômicos, seja qual for o grau de populismo de seus governos. O
peronista Alberto Fernández não escapou a essa sina. Mas, por sorte, como
herdeiro de um acordo de US$ 45 bilhões com o FMI, seu governo foi forçado a
reprimir parte dos impulsos demagógicos para receber os recursos do Fundo – o
que gerou uma crise política com aliados de Cristina Kirchner. Pode-se imaginar
que o quadro seria bem pior sem isso.
Um dos compromissos devidos ao FMI era
justamente a correção cambial. A escolha do dia seguinte às eleições primárias
foi um erro do Banco Central e do ministro da Economia, Sergio Massa, candidato
peronista à Casa Rosada em outubro. Se adotada meses antes, estaria diluída. O
impacto da desvalorização abrupta, porém, somou-se ao da vitória nas urnas do
deputado de ultradireita, Javier Milei, nas eleições primárias de 13 de agosto.
Suas propostas de “dinamitar” o Banco Central, dolarizar a economia, bloquear o
comércio com a China e retirar o país do Mercosul tornaram-se motivo de pânico
dentro e fora das fronteiras do país.
A desorganização do varejo pela incerteza
sobre o valor da própria moeda, exposta em reportagem do Estadão, é péssimo
sinal, mas não chega a ser novidade na Argentina. A última vez deu-se no início
de 2002, quando a alternativa dos argentinos à falta de dinheiro na praça foi o
escambo. A gravidade é maior agora pela proximidade das eleições. O risco de a
economia do país cair para andares mais fundos e desconhecidos do precipício
está dado. Será preciso rapidez e seriedade para evitá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário