O Globo
Já imaginou se Bolsonaro tivesse incluído
no SUS as sessões de descarrego das igrejas neopentecostais?
A oposição ao governo Bolsonaro passou três
intermináveis anos clamando pelo respeito à ciência:
vacinação, distanciamento social, uso de máscaras — tudo o que a Organização
Mundial da Saúde recomendava no combate à pandemia de Covid-19. E,
naturalmente, combatendo os tratamentos inócuos, cujas estrelas eram a
cloroquina, a hidroxicloroquina e a ivermectina, coadjuvadas por azitromicina,
bromexina, nitazoxanida, anticoagulantes (e os suplementos de zinco fazendo
figuração).
Felizmente houve a vacinação em massa — e esses medicamentos voltaram a ser usados apenas para o indicado nas bulas: malária, lúpus, pulga, carrapato, bronquite, faringite, amebíase, diarreia etc. Em 2022, os opositores do negacionismo científico ganharam as eleições.
Então a ciência venceu, certo? Errado. Ela
era só uma aliada de ocasião. À Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares no SUS — que já contemplava (graças aos paladinos da ciência...)
dança de roda, constelação familiar, autocura e imposição de mãos para o
restabelecimento do equilíbrio do campo energético e transmissão de energia
vital —, veio se juntar a ozonioterapia, recentemente autorizada pelo
presidente Lula. Se as primeiras não fazem mal — a não ser aos cofres públicos
—, essa última enfrenta resistência da Associação Médica Brasileira e do
Conselho Federal de Medicina.
Não bastasse, foram reconhecidas as
“manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e
as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras,
barracões, casas de religião etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura
complementares”. Já imaginou se Bolsonaro tivesse incluído no SUS as sessões de
descarrego das igrejas neopentecostais? A reação “pró-ciência” teria sido
ensurdecedora.
Achando pouco misturar ciência e religião,
a Resolução 715, de 20 de julho de 2023, do Conselho Nacional de Saúde, vai
mais longe. Tomada de lirismo piegas (“Para novos amanhãs, é necessário
construir novas manhãs”), investe contra “a lógica ultraneoliberal derrotada
nas eleições de 2022”, fala em “fortalecer o Estado Democrático de Direito”,
enfrentar o patriarcado, garantir os “direitos reprodutivos das mulheres,
meninas e pessoas que podem gestar”, combater as “desigualdades estruturais e
históricas”, atuar “na defesa da solidariedade e da equidade entre os povos e
com foco na cooperação Sul-Sul” e “revogar as regras fiscais que estabelecem
teto das despesas primárias”. Pelo jeito, a receita da boa saúde é ideologia na
veia.
No mesmo documento, há um ótimo argumento
para essa militância:
— A saúde não é viável sem democracia e sem
democracia não há saúde.
Tal doutrina, aparentemente, ainda não
valia no tempo da importação de médicos cubanos.
O que falta para o SUS — que está longe de
conseguir atender adequadamente às demandas essenciais da população — oferecer
pílulas de Frei Galvão, água benta, johrei e pajelança? Todos são recursos
terapêuticos de largo uso no país...
Alguém nos rogou a maldição de viver em
tempos interessantes, quando a ciência varia ao gosto do freguês. Podemos até
morrer de surto, de bala perdida ou de Covid-19, mas não de tédio.
2 comentários:
Perfeito
Tudo vale como complemento,o que não vale é afastar a ciência como Bolsonaro fazia,é bem diferente uma coisa da outra,oração,por exemplo,só faz bem.
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