Rio carece de nova estratégia para segurança
O Globo
Governo tem procurado agir, mas medidas
adotadas não têm sido suficientes contra crime organizado
A urgência de o Rio adotar uma nova política
de segurança pública ficou evidente na noite de segunda-feira. Depois da morte
de um miliciano em confronto com agentes da Polícia Civil no
bairro de Santa Cruz, Zona Oeste da capital, pelo menos 35
ônibus, um trem e quatro caminhões foram incendiados. A tensão
atingiu sete bairros, onde moram mais de 1 milhão. Escolas fecharam. A
população sofreu para chegar em casa.
Outubro já havia trazido más notícias. No último dia 5, quatro criminosos executaram três médicos e feriram outro num quiosque da Barra da Tijuca. Menos de 24 horas após a execução, os assassinos foram encontrados mortos na Zona Oeste, provavelmente por ordem da facção a que pertenciam. Em todo o episódio, a polícia foi mera espectadora. Na última quinta-feira, equipes da Polícia Federal e do Ministério Público do Rio prenderam quatro agentes da Polícia Civil, sob a acusação de tráfico de drogas e corrupção.
A sucessão de reveses foi concomitante a duas
trocas sucessivas de comando na secretaria de Polícia Civil, promovidas pelo
governador Cláudio
Castro para atender a interesses da Assembleia Legislativa (Alerj).
Desde que Castro assumiu o governo em 2020, o estado anunciou a compra de 21
mil câmeras portáteis, a construção de um centro de treinamento e a inauguração
da Agência Central de Inteligência da Polícia Civil. Ao mesmo tempo, o governo
criou uma força-tarefa contra as milícias e colheu frutos: afirma ter prendido
mais de 1.500 milicianos, apreendido produtos ilegais e fechado fábricas,
depósitos clandestinos e centrais de pirataria.
O resultado dessas políticas, porém, tem
ficado aquém do desejado. Castro manteve a separação entre as secretarias das
polícias Civil e Militar estabelecida pelo antecessor. Embora o governo afirme
que ambas trabalham em coordenação, a realidade tem sido outra. Pelos dados
oficiais, entre janeiro e setembro deste ano, as mortes violentas cresceram
15,2% na capital na comparação com o mesmo período do ano passado, ante queda
de 1,9% no estado. Na região que foi foco dos ataques desta semana, elas
subiram 83,3%. É verdade que houve queda nas mortes por intervenção da polícia
na capital (10,5%), mesmo assim elas ainda respondem por quase 27% do total.
Operações contra lideranças da milícia ou
do tráfico são vitais em qualquer planejamento contra o crime organizado e
estarão sempre suscetíveis a reações. Mas as investidas contra o comando do
crime precisam fazer parte de uma estratégia com começo, meio e fim. As
autoridades devem estar prontas para fazer frente a represálias.
Sem planejamento, as ações serão inócuas. A
estrutura criminosa se mantém inabalada, e o líder morto é logo substituído por
outro. Em vez de enfraquecer a milícia, operações a esmo expõem sua força. É
certo que o governador tem procurado agir, mas as medidas adotadas têm sido
insuficientes. O estado precisa de uma política de segurança pública com maior
integração entre as polícias Civil e Militar. O planejamento deve incluir
objetivos, como reocupação do território ou estrangulamento financeiro das quadrilhas.
É um trabalho difícil, mas a cada dia mais necessário.
Retorno de indicações políticas na Petrobras
representa retrocesso
O Globo
Mudança no estatuto deteriora a governança da
estatal ao tornar postos de comando objeto de barganha
Não surpreende a reação negativa do mercado à
comunicação da Petrobras de
que retirará de seu estatuto barreiras contra nomeações políticas de diretores
e conselheiros. Em questão de horas, a empresa perdeu quase 7% do valor de
mercado, ou mais de R$ 32 bilhões. A mudança, segundo a empresa, se deve à
necessidade de adequação à liminar do ministro Ricardo
Lewandowski que considerou inconstitucionais exigências
estabelecidas pela Lei das Estatais. É um argumento difícil de aceitar. A
medida piora a governança da Petrobras, permitindo que seus postos de comando
voltem a ser objeto de barganha política.
Promulgada em 2016, na esteira da descoberta
de um esquema de corrupção sem paralelo com eixo na Petrobras, a Lei das
Estatais estabeleceu diversas regras para disciplinar a governança das empresas
públicas e evitar escândalos comparáveis. Passou a exigir dos indicados à
diretoria um tempo mínimo de experiência em cargo relevante em companhia do
mesmo ramo e outros requisitos usuais para a alta gerência no setor privado.
Também impôs quarentena de três anos para a nomeação de dirigentes partidários
ou responsáveis por campanhas eleitorais a postos de comando.
O PT e
outros partidos — entre eles o PCdoB, cujo pedido de liminar foi feito numa
Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela legenda contra a Lei das
Estatais — jamais apoiaram o estabelecimento de regras de mercado para balizar
a indicação de dirigentes nas empresas públicas. A tentativa de emendar a lei
para facilitar as indicações políticas não prosperou no Congresso (está parada
no Senado). Mas a liminar de Lewandowski resolveu o problema para os políticos.
Com ela, o Planalto pôde abrigar indicados na presidência de órgãos públicos e
passou a distribuir ministros pelos conselhos de empresas públicas. Agora, a
Petrobras abriu também a oportunidade de indicações políticas à diretoria.
No auge do “petrolão”, recursos de projetos
superfaturados aprovados pela Petrobras financiavam o pagamento de propinas. A
própria empresa reconheceu desvios de R$ 6,2 bilhões em seu balanço. Eles só
ocorreram porque os diretores eram, com o beneplácito de Brasília, apadrinhados
pelos políticos de diferentes partidos que se beneficiavam dessas propinas. O
desmonte da Operação Lava-Jato tem ensejado recuo em vários mecanismos de
combate à corrupção, como constatou na semana passada relatório da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O plenário do Supremo Tribunal
Federal tem o dever de analisar a liminar de Lewandowski quanto antes para
evitar que, com o enfraquecimento da Lei das Estatais, se consolide mais um
retrocesso.
Mudanças abrirão caminho a loteamento da
Petrobras
Valor Econômico
Como o passado mostra, em vez de ampliar sua
base, o governo estará contratando imensos problemas
O escândalo bilionário de corrupção na
Petrobras, no qual petistas e partidos do Centrão se uniram para desviar
recursos, trouxe de imediato reforços na legislação e nas instituições de
investigação e vigilância. A maré virou e os ventos revisionistas procuram
desfazer limites levantados para evitar repetições do petrolão. A lei das
estatais (a 13.303, de 30 de junho de 2016) disciplinou a escolha de diretores
e membros dos Conselhos das empresas públicas, mas um de seus pontos
principais, o da qualificação para ocupar cargos de direção, foi fulminada por
uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski antes de se aposentar. A Petrobras
informou ontem que pretende “atualizar” seu estatuto social para se adequar à
liminar.
O presidente Jair Bolsonaro já tinha feito
letra morta das vedações constantes da lei para fazer as indicações que bem
quisesse na estatal. A lei proíbe a indicação de ministros e secretários de
Estado, dirigentes estatutários de partidos políticos e titulares de mandato no
Poder Legislativo para os cargos. Ela acrescenta no rol dos impedimentos
pessoas que atuaram nos últimos 36 meses em estrutura decisória de partido
político ou em trabalho vinculado a campanhas eleitorais, além de pessoas que
possam ter ou tenham qualquer tipo de conflito de interesses com a companhia.
Bolsonaro atropelou a proibição e, entre outros, indicou Jonathas Assunção,
secretário executivo de Ciro Nogueira, líder do PP, e Ricardo Soriano, da
Procuradoria Geral da Fazenda, para o conselho da Petrobras.
O governo Lula fez a mesma coisa. Pietro Mendes e Efrain Cruz, secretários do Ministério de Minas e Energia, foram eleitos para o conselho e são agora objeto de questionamentos em processo da Comissão de Valores Mobiliários, que também instaurou outro para as indicações do governo anterior. Em ambos os casos, a forma de burlar a lei foi a mesma. As instâncias de governança da Petrobras apontaram a inconformidade das indicações com os preceitos legais. Como as recomendações dos comitês não são “mandatórias”, a assembleia com maioria governista as aprova. Os pareceres, no entanto, baseiam-se no fato de que a lei é mandatória e deveria ser cumprida.
Ávidos por cargos na estatal, o Centrão e o
PT embutiram um artigo em um projeto votado nos últimos dias de 2022, que
aumentava os limites de publicidade e patrocínio das empresas públicas. Nele
foi reduzido de 36 meses para 30 dias o período mínimo para que dirigentes de
partidos políticos ou os que trabalharam em campanha eleitoral pudessem assumir
cargos de direção nas estatais.
O Senado, entretanto, não aceitou a manobra e
não votou o projeto, que, no entanto, recebeu decisão liminar monocrática do
ministro Ricardo Lewandowski em ação do PCdoB. Ele considerou os limites
impostos a parlamentares e líderes partidários “desarrazoados,
desproporcionais”, além de consistirem em “discriminação odiosa e
injustificável”, e derrubou-os.
A toda indicação imposta de Bolsonaro e Lula
para a Petrobras, argumentava-se que para atendê-las seria preciso mudar o
estatuto social da empresa. Isto não aconteceu, e a lei é que foi, pelo menos
provisoriamente, emasculada. Agora a Petrobras se propõe a concluir a obra e
submeter à próxima assembleia três mudanças no estatuto: o fim das vedações
para ocupação de cargos de direção e conselho, a revisão da política de
indicação de membros da alta administração e do conselho fiscal e a criação de
uma reserva de remuneração de capital. Todas desagradaram aos investidores, e a
estatal perdeu em um dia R$ 32,3 bilhões em valor de mercado.
O esclarecimento da Petrobras ao fim do dia
não esclareceu nada. “O objetivo é tão somente manter o Estatuto Social da
Petrobras atualizado, quaisquer que venham a ser as decisões judiciais sobre o
tema”, registra a nota. Como liminar, por definição, é uma decisão temporária,
que requer confirmação por sentença de mérito, ou a estatal transformará seu
estatuto em obra em progresso ou, o que é provável, prepara-se para trazer para
seu centro decisório indicações partidárias que atendam mais a conveniências políticas
do governo do que a necessidades de gestão da companhia.
O momento em que a Petrobras toma a iniciativa é delicado para o governo. A protelação da distribuição de cargos da administração exigidos pelo Centrão está atrasando votações de interesse do governo no Congresso. Ao mudar o estatuto da Petrobras e mostrar-se disposto a abrir cargos de direção para políticos na companhia, eles serão objeto imediato de cobiça do centrão fisiológico. Foi para atender ao PP e a Severino Cavalcanti, presidente da Câmara filiado ao PP (como Arthur Lira), que Paulo Roberto Costa foi indicado diretor de Abastecimento. Costa foi um dos primeiros delatores da Lava-Jato e revelou em detalhes a extensa rede de corrupção na estatal. O PT jamais admitiu ter participado do esquema de pilhagem da estatal e pode até considerar a barganha política por cargos na Petrobras adequada a seus interesses. Como o passado mostra, em vez de ampliar a base governista, estará contratando imensos problemas.
Rio em chamas
Folha de S. Paulo
Caos é prova da falência da política de
segurança das autoridades fluminenses
Ao menos 35 ônibus, um trem e veículos de
passeio foram incendiados na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro na segunda
(23), resultando
em um dos dias mais caóticos na história do estado.
Seja pela ampla extensão geográfica dos
ataques ou pelo prejuízo causado às empresas, na casa dos R$ 38 milhões, além
do dano inestimável à população mais pobre, os atos de terror marcam, a fogo, o
fracasso da política de combate ao crime organizado fluminense.
O caos na capital ocorreu em resposta à morte
de um dos líderes da maior milícia do estado, Matheus da Silva Rezende, o
Faustão, atingido por tiros durante confronto entre criminosos e agentes
policiais na comunidade Três Pontes. Considerado o número dois da organização
criminosa, Faustão era sobrinho do atual líder, Luís Antônio da Silva Braga, o
Zinho.
Apesar do episódio sem precedentes, milícias
já dominam parcela do estado a partir de forte crescimento na última década.
Em 16 anos, estes grupos armados, e com
profunda relação com o Estado, cresceram 387% em áreas sob seu domínio,
totalizando 256,3 km², segundo dados do Instituto Fogo Cruzado com o Grupo de
Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense. São
64 Copacabanas nas mãos dos milicianos.
O investimento em combate primordialmente
ostensivo a esses grupos ignora sua complexidade e penetração estatal, como
ficou demonstrado nesta semana.
Diante de conflitos territoriais violentos do
tráfico, em especial entre 2016 e 2018, milícias aproveitaram a oportunidade
para angariar espaço no Rio de Janeiro, com expansão territorial, inserção nas
forças políticas e armadas do estado e penetração no mercado ilegal de drogas,
hoje operado muitas vezes em parceria com traficantes.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio
Castro (PL), parece
resumir a questão a uma política de caça a bandidos, como se o gelo
do crescimento das milícias pudesse ser facilmente enxugado sem o
desmantelamento, com monitoramento preventivo, do controle territorial destas
facções.
Igualmente é ingênuo supor que apenas o plano
federal de envio de homens, viaturas e blindados da Força Nacional —sem metas
claras— vá gerar resultados diferentes em relação ao passado.
Hoje, o estado fluminense é marcado, de um
lado, pelo investimento em enfrentamento armado seletivo, em vez de
inteligência. De outro, pela tolerância com o crescimento das milícias.
Oferecer soluções fáceis para a questão não é somente ineficiente, mas leviano.
Para que funcione a política de segurança
pública no Rio de Janeiro, ela primeiro precisa existir.
Mais controle
Folha de S. Paulo
Deve-se melhorar coleta de dados e
fiscalização para dirimir fraudes com Fundeb
Os indícios de fraudes no uso de recursos do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (Fundeb) apurados por esta Folha revelam a
necessidade de se criar mecanismos mais robustos de fiscalização e controle
dessa fonte de recursos.
A reportagem verificou que, em 108 cidades do
país, houve
inflação expressiva no número de matriculados no Ensino de Jovens e Adultos
(EJA) —modalidade destinada à população com 15 anos ou mais de
idade que não teve acesso ou interrompeu os estudos antes de concluir a
educação básica.
Esses municípios tiveram, em média, um
crescimento de 14,4% de matrículas no EJA entre 2021 e 2022. Contudo, segundo o
Censo Escolar, a inserção de novos alunos no programa durante o mesmo período
teve queda de 6,3% no país.
Em Santa Quitéria do Maranhão (MA), por
exemplo, o número de matriculados no EJA saltou de cerca de 500 em 2020 para
mais de 6 mil em 2022, o que representa 23,2% da população da cidade —enquanto
as médias brasileiras são de 498 e 1,6%, respectivamente.
Os dados apontam para a possibilidade de que
prefeituras tenham inflado artificialmente seus dados para conseguir mais
recursos do Fundeb, que os distribui de acordo com a quantidade e o tipo de
matrículas em estados e municípios. Estima-se que, se a média fosse similar à
nacional, elas teriam recebido cerca de R$1,2 bilhão a menos de verba pública.
A maioria das 108 cidades consta no Mapa de
Risco do Ministério da Educação, que lista 520 com indícios de problemas nas
informações repassadas ao Censo Escolar. O MEC disse que denúncias são
investigadas, mas que não é responsável por fiscalizar municípios.
A educação
básica no Brasil já sofre com disparidade crônica no direcionamento de verbas,
com US$ 3.583 de gasto por aluno (a média da OCDE é de US$ 10.949), enquanto no
ensino superior é de US$ 14.735 (US$ 14.839 na OCDE). Fraudes contribuem ainda
mais para aumentar distorções e desigualdades na alocação de recursos escassos
em área sensível.
É preciso incrementar a base de dados nacional, agilidade na identificação de discrepâncias e no acionamento dos órgãos de controle nas três esferas de poder, como o Ministério Público e a Controladoria Geral da União. É o mínimo para tapar ao menos esse vazamento de dinheiro público.
O Rio de joelhos
O Estado de S. Paulo
Não foi da noite pra o dia que as milícias
acumularam o poder de parar a cidade quando lhes dá na veneta. Isso é
decorrência de anos de promiscuidade entre criminosos e agentes do Estado
A morte do miliciano Matheus da Silva
Resende, vulgo “Teteus”, parou o Rio de Janeiro no fim da tarde de
segunda-feira passada. Como isso foi possível, é dever do governador Cláudio
Castro explicar. Em represália à operação da Polícia Civil que culminou na
morte do criminoso, o segundo na hierarquia de uma das milícias mais poderosas
do Estado, seus comparsas atearam fogo a ao menos 35 ônibus, deixando milhares
de cariocas a pé e em pânico na volta do trabalho. Ademais, o bloqueio de vias
públicas deu um nó no trânsito da capital fluminense, violando o direito de ir
e vir inclusive de quem estava a quilômetros da zona oeste da cidade, epicentro
dos atos que Castro classificou como “terroristas”.
Se essa desabrida afronta ao poder estatal e
a violência praticada contra gente inocente a bordo dos ônibus ou não podem ser
classificadas como terrorismo, o Ministério Público e o Poder Judiciário vão
dizer. O fato é que, seja qual for a tipificação dos crimes, os cariocas vivem
aterrorizados com essa guerra por domínio territorial que há décadas tem
formado zonas de exclusão no Rio, como se fossem enclaves dos quais não se
entra ou sai sem a anuência dos barões do crime organizado – sejam eles das milícias
ou do tráfico de drogas, quando não das “narcomilícias”.
Não poderia haver evidência mais cabal de que
o Rio está de joelhos diante do crime organizado do que o inferno em que se
transformou a vida dos cariocas naquele dia, e simplesmente porque um bandido
morreu em confronto com a polícia. A declaração de Cláudio Castro, à guisa de
justificativa, de que o serviço de inteligência da polícia não anteviu os
ataques dos milicianos porque “não foram ações coordenadas” só ilumina esse
quadro lamentável de absoluta falência do Estado para exercer uma de suas
atribuições fundamentais, detentor que é do monopólio da violência.
Um dos sinais mais fortes da falência do
poder público é o fato de que menos de 2% do território da cidade do Rio está
fora do domínio do tráfico ou das milícias, segundo o Grupo de Estudos de Novos
Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Isso não apenas coloca em
risco a vida dos cidadãos, mas também macula a imagem do Brasil no cenário
internacional, minando a percepção de segurança e comprometendo investimentos.
A bem da verdade, em se tratando do Rio, é
pertinente refletir: está-se diante de incompetência propriamente dita, isto é,
de incapacidade do Estado para agir, ou, é forçoso dizer, de leniência, quando
não cumplicidade entre setores do Estado e as organizações criminosas? Afinal,
reação de bandidos a investidas da polícia contra seus negócios sempre houve. O
que parece ser novo, no caso em tela, é a escala inaudita dessa resposta da
milícia à operação da Polícia Civil que acabou por eliminar um dos seus.
Não é desarrazoado pensar que houve algum
ruído nessa espécie de pacto de convivência entre alguns agentes do Estado e a
milícia a que pertencia o tal de “Teteus”. Pois é disso que se trata, de um
mutualismo pernicioso que faz dos cariocas reféns da promiscuidade entre
criminosos e agentes públicos que, em tese, deveriam combatê-los. Não é por
acaso que, na origem da formação das milícias, estão justamente servidores do
Estado – policiais e bombeiros – que, exatamente como faz a Cosa Nostra
siciliana, se organizaram para “proteger” a população contra traficantes e
outros tipos de delinquentes – e cobrando caro pelo “serviço”.
Ora, um bando com o poder de parar uma das
capitais mais importantes do País, cuja paisagem é a imagem mais representativa
do Brasil no exterior, não nasce da noite para o dia nem tampouco prospera nos
negócios ilegais sem contar com a cumplicidade de agentes públicos. Esse
acúmulo de poder do crime organizado – seja o tráfico de drogas, sejam as
milícias – decorre de um processo de degradação do poder estatal que vem de
décadas. Esse problema não será superado até que, entre outras medidas,
policiais voltem a ser policiais, e bandidos voltem a ser bandidos. Hoje, os
cariocas são incapazes de fazer essa necessária distinção.
O bom combate à corrupção
O Estado de S. Paulo
Relatório da OCDE critica a decisão de
Toffoli que anulou as provas da Lava Jato, mas é preciso apontar também os
vários erros do Ministério Público e da polícia que levam à nulidade
No dia 19 de outubro, a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um relatório no qual
reconhece diversos avanços do Brasil no combate à corrupção, mas também indica
algumas preocupações da entidade quanto às perspectivas futuras. Em concreto,
menciona o risco de um retrocesso com a decisão do ministro Dias Toffoli, do
Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou as provas decorrentes do acordo de
leniência da Odebrecht no âmbito da Operação Lava Jato.
A decisão de Dias Toffoli tem diversos
equívocos e foi severamente criticada por este jornal (ver o editorial O dever
do STF de respeitar o cidadão, 10/9/2023). Em um momento em que o País precisa
de estabilidade e segurança jurídica, um ministro do STF se pôs a fazer
revisionismo histórico, lançando as piores suspeitas sobre a Corte
constitucional, como se fosse órgão instável, parcial e submisso aos ventos
políticos de ocasião.
De toda forma, é equivocado atribuir as
dificuldades na prevenção e punição da corrupção no País exclusivamente ao
Supremo ou à legislação brasileira, excluindo dessa responsabilidade o
Ministério Público e a polícia. Segundo uma visão que se tornou bastante
frequente, o problema estaria no Judiciário e na lei – leia-se, no Congresso –,
que não deixam o Ministério Público e a polícia atuarem como desejariam.
Haveria excessivas amarras legais, que precisariam ser removidas ou
simplesmente desconsideradas.
Mencionando processos em que a Justiça
reconheceu a prescrição de crimes de corrupção, a OCDE critica os prazos
prescricionais previstos na lei brasileira. Segundo o Código Penal, a
prescrição é regulada pelo máximo da pena privativa de liberdade estabelecido
para cada crime. Por exemplo, um crime prescreve em 20 anos se o máximo da sua
pena for superior a 12 anos de prisão; e em 16 anos se a pena máxima for
superior a 8 anos. O menor prazo prescricional é de 3 anos, nos casos de pena
prevista inferior a um ano.
Como se vê, não são prazos pequenos. Quando
um crime prescreve – isto é, quando em razão do decurso de tempo, o Estado
perde o direito de punir determinado crime –, a responsabilidade não é da lei,
e sim de quem não realizou seu trabalho a tempo, dentro do prazo que a
legislação prevê.
A prescrição é uma garantia do cidadão, uma
vez que limita o poder do Estado. E também é estímulo para que os órgãos
públicos funcionem adequadamente. Para prevenir e punir com eficiência a
criminalidade, em vez de permitir que o Estado investigue e puna supostos
crimes cometidos há 40 anos, o caminho é estimular que os crimes sejam
investigados e punidos o mais rápido possível, sem atrasos desnecessários.
Em diversas situações, o STF proferiu
decisões que geraram insegurança e instabilidade na jurisprudência. Tudo isso é
extremamente prejudicial ao País e merece contundente reprovação. No entanto, é
preciso reconhecer que, em muitas outras situações, a Corte agiu bem ao
assegurar o respeito à Constituição e às leis brasileiras. O combate eficiente
contra a corrupção não significa aplaudir ou ser condescendente com tudo o que
o Ministério Público ou a polícia fazem.
No Estado Democrático de Direito, a lei é o
critério. Se os órgãos públicos não agem dentro da legalidade, cabe ao
Judiciário assegurar o cumprimento da lei. Nessas hipóteses, infelizmente
bastante frequentes, o problema não foi causado pela Justiça – reconhecendo,
por exemplo, uma nulidade processual –, e sim por quem gerou a nulidade com a
atuação fora da lei.
A entrada do Brasil na OCDE é um objetivo que
merece ser buscado seriamente, uma vez que pode trazer muitos benefícios ao
País. No entanto, isso não significa abdicar da soberania nacional,
condescender com práticas que violam a legislação brasileira ou ignorar as
diferenças existentes nos sistemas jurídicos.
Não basta reclamar do STF e do Congresso. O
necessário avanço na prevenção e punição da corrupção deve se dar também por
uma melhora no trabalho do Ministério Público e da polícia, no sentido de plena
aderência ao que a Constituição e a lei dispõem.
Hora da prudência
O Estado de S. Paulo
Na Argentina, o presidente Lula não deve
confundir seus desejos pessoais com questões de Estado
Pode ser lida como natural a expressão de
entusiasmo de expoentes do governo Lula da Silva, entre os quais o próprio,
diante dos resultados do primeiro turno das eleições presidenciais na
Argentina. O pleito do último dia 22 trouxe alívio no Palácio do Planalto ao
indicar o favoritismo do atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa,
na disputa do segundo turno de novembro contra o candidato “antissistema”
Javier Milei. O jogo ainda indefinido, entretanto, requer do Brasil a contenção
de ânimos e de iniciativas que possam ser consideradas, no país vizinho, como
intervenções em seu processo eleitoral. A bem do interesse nacional, convém
preservar o diálogo com o vencedor, seja qual for sua identidade
políticoideológica.
No primeiro turno, setores políticos
antagônicos do Brasil imiscuíram-se em diferentes graus, como se a eleição, do
lado de lá da fronteira, replicasse automaticamente a polarização do lado de
cá. A caravana de apoio de parlamentares direitistas brasileiros a Milei,
liderada pelo notório deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), foi uma expressão
dessa desajustada visão transnacional da disputa argentina. A presença na
campanha de Massa de especialistas em marketing político, que no passado
prestaram seus serviços ao PT, igualmente gerou ruídos. Ao ser conhecido o
resultado de domingo, ministros de Lula ultrapassaram o limite da cautela nas
redes sociais.
Além da camaradagem com o peronismo, o
governo Lula tem um rol de motivos para torcer pela vitória de Massa. Uma parte
deles coincide com o interesse nacional, uma vez que o adversário do peronista,
não por acaso apelidado de “El Loco”, defende a saída da Argentina do Mercosul,
vê como problema o comércio bilateral e trata o Brasil como tão “comunista”
quanto a China. Mais graves, na perspectiva brasileira, são suas propostas de
governo para a correção do rumo da economia do país. Mesmo abrandadas na campanha,
as promessas de Milei de dolarização total, de implosão do Banco Central e de
ajuste fiscal extremo sinalizam para um colapso nunca antes visto em um país
calejado no caos econômico.
Faz-se necessário ponderar que a firme
relação Brasil-Argentina foi construída a partir de elos de confiança que
encerraram uma corrida nuclear nos anos 1980. Da construção do Mercosul, com
compromissos que vão muito além da integração comercial, ao enfrentamento de
crises locais e internacionais, ambos os países sobrepuseram juntos a paz, a
democracia e a integração como valores inalienáveis. Ao Brasil, interessa uma
Argentina sustentável do ponto de vista econômico e socialmente justa. A
recíproca é verdadeira do outro lado – salvo na retórica de Milei.
O cenário de incertezas na Argentina até 19 de novembro exige ponderação do Brasil, mesmo ao custo do atraso de medidas para a desobstrução do comércio bilateral e outras emergências. Qualquer suspeita de interferência do Executivo e da oposição no processo eleitoral argentino, mesmo inconsistente, resultará em potencial prejuízo às relações. A razão demanda prudência neste momento e, sobretudo, a preservação dos laços Brasil-Argentina.
É preciso conter o crime organizado com
inteligência
Correio Braziliense
O Brasil tem de encarar a questão da
segurança pública como prioridade, assim como a educação e a saúde, sob pena de
termos cidadãos educados e saudáveis, mas reféns da violência
Os atos praticados na Zona Oeste do Rio de
Janeiro são uma afronta não só ao governo do estado como também a todo o
Brasil. Há anos, o país assiste, passivamente, ao aumento da violência no lugar
que já abrigou a sede do governo brasileiro e que é o cartão-postal do Brasil
no mundo, seja por suas belezas naturais, por seus carnavais que se candidatam
à maior festa do mundo ou pela Garota de Ipanema, a bela canção de Antônio
Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, que ganhou mais de 500 versões em todo o
mundo. Basta. Não é mais possível que, depois do que ocorreu segunda-feira, se
busque as mesmas soluções que foram ineficientes até agora. O Brasil precisa
encarar a questão da segurança pública como prioridade, assim como a educação e
a saúde, sob pena de termos cidadãos educados e saudáveis, mas reféns da
violência.
No Rio de Janeiro, apesar da intervenção
federal entre 2018 e 2019, exatamente para combater o crime organizado, não se
chegou a uma proposta para equacionar o problema das milícias, que surgiram
como grupos paramilitares criados em comunidades, com o argumento de oferecer
segurança e combater o tráfico de drogas. O que pareceu ser um
"remédio", aceito passivamente pelas autoridades e por moradores,
sendo que estes estão sempre acuados e no meio do tiroteio. Um levantamento
feito pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal
Fluminense (UFF), as milícias formam o maior grupo criminoso do estado, com um
aumento de 387% nas áreas sob domínio de grupos paramilitares, entre 2006 e
2021.
Hoje, o domínio desses grupos ilegais
corresponde a 256km², o que equivale, praticamente, à metade do território do
crime organizado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que chega a 510km².
Nada menos do que 4,4 milhões de cidadãos vivem em áreas controladas por
milicianos ou traficantes no Rio de Janeiro. Na prática, operando quase que
"livremente", milicianos e traficantes estão juntos em muitos locais,
formando o que é chamado de "narcomilícias".
Com a omissão do poder constituído, que
muitas vezes é integrado por criminosos, esses bandidos agem quase que
impunemente, e apenas reagem de forma terrorista — afronta ao estado e temor
nas pessoas — quando veem seus interesses contrariados. A reação à morte de
Matheus da Silva Rezende, o Faustão, bandido acusado de mais de 20 homicídios,
levou à queima de 35 ônibus e um trem, causando um prejuízo de mais de R$ 35
milhões, deixando milhares de trabalhadores sem transporte, alunos sem aula e
obrigando o comércio a fechar as portas.
O governador do Rio de Janeiro, Claudio
Castro, anunciou a prisão de 12 pessoas que teriam colocado fogo nos veículos.
Seis delas foram soltas. É uma resposta pequena e insignificante do poder
público estadual. De ataque em ataque, o Rio vai se transformando em um campo
de guerra e os governos vão se esforçando em adotar medidas que não atacam de
frente o problema do crime organizado. No meio político, volta-se a discutir a
criação do Ministério da Segurança Pública, como se a existência de uma
estrutura isolada fosse suficiente para resolver o problema da violência.
Mais do que burocracias é preciso modernizar
a legislação criminal para endurecer as penas, modernizar e rever a estrutura
carcerária brasileira, que com raras e honrosas exceções ressocializa detentos,
e combater o fluxo financeiro dessas organizações, para sufocá-las e ter uma
forma de usar esse dinheiro da atividade criminosa na reparação de prejuízos
causados pelos atos terroristas que promovem. É preciso mais do que discursos e
estruturas burocráticas, é preciso inteligência para tornar efetivas as ações
contra o crime organizado.
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