O Lula de 2023 tem muito a aprender com o Lula de 2003
O Globo
Duas décadas representaram enorme retrocesso
na visão do presidente sobre a disciplina fiscal
Era previsível — e foi previsto aqui mesmo no
GLOBO, entre tantos outros lugares — que as metas traçadas pelo governo na
apresentação do novo arcabouço fiscal se revelariam impraticáveis. Cumpri-las
dependeria daquilo que infelizmente se tornou anátema nas rodas políticas de
Brasília: cortar gastos. Mesmo assim, elas foram reiteradas repetidas vezes
pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad — em particular o compromisso de
zerar o déficit em 2024, enviado pelo Executivo ao Congresso na Lei de
Diretrizes Orçamentárias. Todos confiaram que, depois do descontrole
orçamentário promovido pela PEC da Transição, haveria ao menos grande esforço
para reequilibrar as contas
públicas. Intenções contam.
Até que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva torpedeou a meta do ano que vem no final de um café da manhã com jornalistas: “Eu sei da disposição do Haddad, sei da vontade do Haddad, sei da minha disposição. (…) [Mas] nós dificilmente chegaremos à meta zero. (…) Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que é? De 0,25%, o que é? Nada. Absolutamente nada. Vamos tomar a decisão correta e vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil”. Desde então, o governo se engalfinha em torno do novo compromisso que apresentará à sociedade.
Metas fiscais estão longe de ser
“absolutamente nada”, como quer Lula.
É por meio delas que o governo informa à sociedade e ao mercado como lidará com
as finanças do Estado. Pelos cálculos do Tesouro Nacional, equilibrar as contas
no ano que vem significaria que a dívida pública voltaria a cair em 2025,
depois de alcançar 76% do PIB (ela era de 51% em 2013, atingiu o pico de 87% em
2020 e voltará a subir neste ano).
Se um país gasta mais do que arrecada, sem a
perspectiva de equilíbrio, o governo semeia desconfiança na própria solvência,
principal pilar da estabilidade monetária. Com menos confiança, o Estado
precisa pagar juros mais altos a quem lhe empresta dinheiro, alimentando ainda
mais a dívida. A alternativa é a incúria fiscal com inflação galopante, como
ocorre na Venezuela, na Argentina e, antes do Plano Real, ocorria no Brasil.
Quem paga o maior preço em ambos os casos — juros mais altos ou mais inflação —
são os mais pobres. Eles é que mais sofrem com a retração da economia trazida
pela necessidade do governo de pagar mais pelos empréstimos que contrai. Eles é
que mais sofrem com o descontrole dos preços por não disporem de meios de
preservar o poder de compra do pouco que ganham.
Essa é a realidade. E Lula deveria conhecê-la
perfeitamente. Pelo menos a conhecia em 2003, quando assumiu seu primeiro
mandato. A confiança depositada pelos agentes econômicos em um novo governo
Lula durante a campanha do ano passado derivou em boa parte da experiência e da
memória daquele presidente que, na campanha de 2002, assinou a Carta ao Povo
Brasileiro afirmando: “Vamos preservar o superávit primário quanto for
necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na
capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. Simples, cristalino — e
sensato.
Não ficou nas palavras. Ao assumir em 2003,
Lula imediatamente elevou a meta de superávit primário de 3,75% para 4,25% do
PIB. No final daquele ano, o resultado foi de 2,3%, acima dos 2,2% alcançados
em 2002 e de toda a série histórica até então. No ano seguinte, o governo Lula
alcançou 2,7%, recorde até hoje. A inflação, que vinha subindo e chegara a
12,5% em 2002, foi derrubada a 5,7% em 2005, graças a juros catapultados a
26,5% no início do governo. Tudo isso com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda
e Henrique Meirelles no Banco Central, sob as bênçãos de Lula. A busca pelo
equilíbrio fiscal em nada impediu o governo de promover programas sociais
importantes: Bolsa Família, Prouni, cotas raciais, Luz para Todos, só para
citar alguns.
Em algum momento, porém, Lula mudou de ideia
sobre a responsabilidade fiscal. A deterioração nas contas públicas começa em
2006, segundo dados da Instituição Fiscal Independente (IFI). Descontando do
superávit convencional as componentes cíclicas (como flutuações geradas pelo
preço de commodities) e não recorrentes (como receitas de leilões ou despesas
emergenciais), o resultado primário estrutural caiu de 2,2% do PIB em 2003 para
menos de 1% em 2007. Entrou no vermelho em 2010, quando o fim da bonança econômica
deixou de mascarar as contas. Embora a situação fiscal brasileira não tenha
gerado um cenário catastrófico como noutros países, desde então jamais voltou
ao patamar do início do primeiro governo Lula.
Lula passou a nutrir desdém cada vez maior
pela responsabilidade fiscal. “Por que as pessoas são levadas a sofrer por
conta de garantir a tal da estabilidade fiscal nesse país? Por que toda hora
falam que é preciso cortar gasto, é preciso fazer superávit, é preciso fazer
teto de gasto? Por que o povo pobre não está na planilha da discussão da
macroeconomia?”, perguntava em novembro, pouco depois de eleito — antes
afirmava que suas práticas econômicas anteriores falavam por ele. Em 2003, Lula
jamais cometeria erro tão primário quanto achar que os pobres perdem com a
disciplina fiscal. Em 2023, mal finge aceitá-la e na primeira oportunidade
lança pelos ares a primeira meta que ele mesmo se impôs. Depois de duas décadas
de retrocesso, o Lula de 2023 teria muito a aprender com o Lula de 2003.
BC mantém ritmo de corte, mas continuidade
corre riscos
Valor Econômico
Pelo cenário de hoje, ao fim do ciclo de
aperto monetário, a Selic será de 8,5% só em 2026, com uma taxa real de 5,5%
O Banco Central seguirá com o processo de
redução de juros, ao ritmo de 0,5 ponto percentual, pelo menos por mais duas
reuniões. O Comitê de Política Monetária não mudou sua avaliação sobre os
riscos fiscais, após o presidente Lula ter descartado a necessidade de
perseguir a meta de déficit zero em 2024 e abrir o caminho para mudá-la. Apenas
repetiu termos de seu comunicado anterior, reafirmando “a importância da firme
persecução” das metas já estabelecidas. A evolução do cenário de referência do
BC indica, porém, problemas à frente com o ritmo de corte dos juros e uma taxa
ainda contracionista ao fim do ciclo.
Ao manter o ritmo de ajuste, o BC agiu com
base no progresso relevante na queda da inflação. Tanto em seu cenário de
referência quanto nas projeções do boletim Focus, o IPCA do ano corrente
situa-se agora abaixo do teto da meta de 3,25%, algo que há um par de meses
parecia impossível. Mas o BC ressalva que as medidas de inflação subjacentes
(que olham o núcleo e desconsideram preços de produtos mais voláteis) se situam
acima da meta de inflação, sem indicar que elas continuam a recuar.
As projeções do IPCA no cenário de referência
do BC e do boletim Focus são praticamente iguais para 2023, mas se afastam nos
dois exercícios seguintes, como ocorrera no comunicado anterior. Entretanto, a
estimativa do cenário de referência do BC piorou marginalmente para 2024 e 2025
- foram de 3,5% e 3,1% no comunicado anterior para 3,6% e 3,2% -, o que emite
um sinal de alerta. A projeção subiu mesmo considerando que os juros projetados
são mais altos: 9,25% (antes 9%) em 2024 e 8,75% (antes 8,5%) em 2025. Isso
sugere que o ritmo de cortes pode arrefecer, ou que ele pode ser interrompido
antes do que se prevê. Pelo cenário de hoje, ao fim do ciclo de aperto
monetário, a Selic será de 8,5% só em 2026, com uma taxa real de 5,5% -
considerando-se o juro neutro de 4%, ela ainda será significativamente
contracionista.
Houve uma mudança para pior na avaliação do
cenário externo, que passou do “incerto” para “adverso”, motivado
principalmente pelo aumento das taxas de longo prazo nos Estados Unidos, pela
resistência à baixa dos núcleos de inflação em diversos países e por “novas
tensões geopolíticas”. O Copom acrescentou “cautela” à atenção prescrita em sua
avaliação anterior. Mesmo assim, não houve mudança no balanço de riscos. A
persistência de pressões inflacionárias e a possibilidade de que a economia
brasileira esteja crescendo próximo ou acima de seu potencial, impulsionando a
inflação de serviços, puxariam o IPCA para cima. Para baixo atuariam uma
desaceleração global maior do que a prevista e um aperto monetário sincronizado
cujos efeitos sejam mais fortes do que o esperado.
Os juros de longo prazo mais altos nos EUA,
com o aperto das condições financeiras, foram também ressaltados no mesmo dia
na entrevista de Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, logo após o
banco central americano decidir manter, pelo segundo mês consecutivo, a taxa de
juros entre 5,25% e 5,5%. O Fed não descarta, porém, um aperto adicional no
futuro. O Fed tem um problema sério: a economia disparou no terceiro trimestre
e cresceu 4,9%, mesmo com os maiores juros em 22 anos. Powell indicou que ainda
assim agirá com cautela porque se move no terreno delicado de uma transição
incerta, na qual a inflação tem caído, mas os efeitos da rápida e forte carga
de aperto monetário ainda não mostraram plenamente seus efeitos. “Não estamos
confiantes que com a atual instância monetária conseguiremos levar a inflação a
2%, nem estamos confiantes de que não conseguiremos”, resumiu Powell.
O Fed quer levar a economia a operar por um
período abaixo de seu potencial de longo prazo, mas isso ainda não está perto
de ocorrer. Powell acha que as condições financeiras estão mais apertadas, com
a alta expressiva dos titulos do Tesouro de longo prazo, a valorização do
dólar, aumento dos spreads de crédito (diferença entre o custo de captação e o
juro cobrado do tomador final) e outros indicadores, e que se elas se
mantiverem assim por algum tempo fariam o mesmo trabalho que uma alta de juro
de 0,4 ponto percentual decidida pelo banco. Até o fim do ano passado, o Fed
temia estar realizando uma política menos restritiva do que deveria, e
sinalizava sua preferência por pecar por excesso do que por timidez na execução
monetária. Hoje o risco está mais balanceado entre as duas atitudes, afirmou
Powell.
O consumo americano é forte e o mercado de
trabalho continua aquecido, embora um pouco menos do que antes. Cálculos da
Oxford Economics indicam que a proporção entre a oferta de emprego e o número
de candidatos aptos a preenchê-la, que já foi de 2, situa-se em 1,5. A economia
deve esfriar no fim do ano, mas mesmo que nada crescesse, o PIB seria de 2,1%.
O Fed aguarda, primeiro, que os efeitos defasados da alta dos juros produzam as consequências esperadas, atingindo um ponto em que não haja mais dúvidas de que a inflação ruma para os 2%. A partir daí, decidirá por quanto tempo sua política restritiva se manterá - suas últimas indicações são de que durará mais tempo que o previsto. O mundo, o Brasil incluído, acompanha os desdobramentos.
Sufocar as milícias
Folha de S. Paulo
Deve-se focar em quem dá sustentação
econômica aos grupos que se espalham pelo RJ
Invasão de terrenos sob ameaça, expulsão de
moradores, construções sem licença ambiental e até achaque a vendedores de gelo
usado nas praias: estes são alguns dos efeitos colaterais severos da expansão
das milícias no Rio de Janeiro. Entre 2006 e 2021, cresceram em 387,3% as
regiões sob o domínio de grupos paramilitares no estado.
Áreas de milícia lideram os registros de
crime de esbulho possessório —a tomada, com violência ou grave ameaça, de
imóvel ou terreno alheio. Entre janeiro
de 2019 a dezembro de 2022, foram 430 casos, segundo levantamento
publicado na série Milícias do RJ, desta Folha, que percorreu por dois
meses 60 áreas da zona oeste do Rio e da Baixada Fluminense.
Com origem em grupos de extermínio compostos
por agentes de segurança e ex-policiais há mais de 70 anos, as milícias se
infiltraram no comando de regiões inteiras, no narcotráfico e no próprio
Estado, provando a ineficácia da política teatral de operações pontuais.
A tomada agressiva de territórios revela,
aliás, ponto nevrálgico desses grupos: a sustentação financeira. Investigar
origens do dinheiro por meio de inteligência preventiva e sufocar as fontes de
renda dos milicianos deveriam estar no centro da estratégia. Não estão.
A história da violência no Rio pode ser
recontada a partir de políticas falhas, do policiamento comunitário
desestruturado como das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) —apesar de seus
resultados positivos no início— a operações com alta letalidade policial e de
resultados pontuais, sem reverter o controle dos territórios.
Desde o início de outubro, o governo federal
deslocou ao estado mais de 500 agentes da Força Nacional e da Polícia
Rodoviária Federal. Embora policiamento ostensivo seja relevante, seria mais
eficaz focar nas lideranças e nos agentes intermediários que constroem a
sustentação política e econômica desses grupos.
Na última quarta, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) anunciou
medidas para enfrentar a crise na segurança pública no Rio.
Investigação financeira, ações de inteligência e articulação entre polícias
estão entre as ações previstas, o que é bem-vindo, embora pouco esteja
detalhado até o momento.
A proposta de um decreto para a Garantia de
Lei e da Ordem (GLO) específica para portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de
São Paulo é mais duvidosa: de um lado, compromete a imagem da Polícia Federal,
que passaria a responder a militares, e, de outro, não afeta o domínio
territorial das milícias.
Há muitas ideias para o Rio de Janeiro. Fazer com que funcionem exige mais inteligência e planejamento do que ações de alta visibilidade, mas de pouco efeito prático.
Emendas da desigualdade
Folha de S. Paulo
Parlamentares perpetuam distorção no SUS ao
alocarem verbas sem critérios técnicos
Um dos elementos que confirmam o aumento do
poder político do Congresso Nacional nos últimos anos é o peso
relativo das emendas parlamentares na distribuição dos gastos discricionários
da União, notadamente na área da saúde.
Segundo amplo levantamento do Grupo de
Institutos, Fundações e Empresas (Gife), 47% desse tipo de despesa para o setor
em 2022 foi direcionada por congressistas.
O orçamento do Ministério da Saúde é composto
por gastos obrigatórios —para programas já consolidados, que não dependem da
vontade dos gestores— e os discricionários, usados para implantar de fato a
política pública da pasta, com inovações que visam melhorar acesso e qualidade
dos serviços.
Logo, causa espécie que quase metade desse
montante seja alocado por parlamentares, que tendem a seguir critérios
políticos, como agradar seus redutos eleitorais. Para o SUS, isso é temerário.
Os números escancaram o vínculo clientelista.
De um total de R$ 47,9 bilhões em emendas para a saúde entre 2018 e 2022, os
municípios receberam R$ 46,3 bilhões (96,6%). Mais preocupante, só R$ 8,9
bilhões foram aplicados em obras, aquisição de material permanente e
investimentos.
Ou seja, a verba tem sido usada para bancar
despesas correntes dos municípios, em vez de ampliar o atendimento das redes,
criando uma relação de dependência entre prefeituras e emendas, sem grandes
benefícios para a população.
Outro problema é a ausência de balizas
técnicas. Ainda segundo a pesquisa do Gife, os municípios com menos de 70% de
cobertura da Atenção Básica (o mais baixo índice) receberam quatro vezes menos
valores per capita do que aqueles com cobertura completa.
Cidades com poucos recursos para a saúde
levaram em média 59% menos verbas do que as mais ricas; e lugares com índices
baixos de mortes prematuras por doenças crônicas não transmissíveis receberam,
em média, 62% mais
dinheiro público do que aqueles que têm dificuldade nesse indicador.
Já que um dos maiores problemas do SUS é a
desigualdade regional, é inaceitável que emendas sejam usadas como moeda de
troca política em vez de beneficiar a população que mais precisa.
Se parlamentares se recusam a agir com a responsabilidade que o cargo exige, urge a criação de mecanismos que ao menos imponham critérios técnicos na alocação das vultosas verbas das emedas.
Uma GLO que é a cara deste governo
O Estado de S. Paulo
Em nova avacalhação com o País, Lula e Dino editam medida populista, de curto prazo, sabidamente ineficaz e que atribui a militares tarefa que não lhes cabe. Não tem como dar certo
Parece até piada de mau gosto, mas é apenas o
governo Lula atuando. Para combater o tráfico de drogas e de armas, o
presidente Lula da Silva assinou na quarta-feira passada um decreto instituindo
uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos Portos de Santos, do Rio
de Janeiro e de Itaguaí e nos Aeroportos do Galeão e de Guarulhos até maio de
2024, com a participação de 3.700 militares.
Segurança pública é coisa séria. Exige
conhecimento do problema, planejamento, responsabilidade e respeito às
competências institucionais e às habilidades funcionais dos diversos órgãos de
Estado. Mas o presidente Lula da Silva parece preferir outro tipo de medida,
baseada exclusivamente em cálculo político-eleitoral. Sem enfrentar as causas,
simula alguma proatividade e, para piorar, ainda envolve os militares. É pedir,
por decreto, para dar errado.
A GLO de Lula é uma demonstração perfeita das
razões pelas quais a situação da segurança pública no País está do jeito que
está. Ninguém quer resolver as causas do problema. Ninguém quer olhar para além
de seus interesses políticos imediatos. É tudo uma grande farsa, como fica
evidente pelo próprio período da GLO: de 6 de novembro de 2023 até 3 de maio de
2024. O combate ao crime organizado dura seis meses? É assim que o governo
federal encara a gravidade do problema: algo que pode ser enfrentado com uma força-tarefa
de seis meses em três portos e dois aeroportos?
Mas a GLO de Lula não é apenas inútil.
Envolver as Forças Armadas na segurança pública é um equívoco institucional e
funcional, que causa sérios danos ao País. Os militares não têm essa atribuição
institucional nem foram treinados para isso. Colocar os militares para combater
o crime organizado é uma resposta amadora, completamente antiprofissional. Para
piorar, a medida transmite uma mensagem errada à população, como se coubesse a
militares cuidar da segurança pública.
É uma verdadeira lástima que, depois de
quatro anos de bolsonarismo – com o Palácio do Planalto fazendo todas as
confusões possíveis com as Forças Armadas –, o governo que lhe sucedeu insista
em atribuir aos militares um papel na vida do País que eles não têm. O completo
fracasso da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro em 2018 não foi
suficiente?
Não há avanço possível na segurança pública enquanto se pensar que decreto de GLO pode servir para combater a criminalidade. Precisamente por ser uma situação gravíssima, há urgência de medidas adequadas, planejadas e responsáveis. Não há nenhuma urgência para repetir os erros de sempre – ou para iludir a população com ações extravagantes que nem sequer tocam as causas do problema.
A responsabilidade pela GLO é do presidente
Lula da Silva, que reitera uma vez mais sua estatura moral e cívica. Diante de
um problema gravíssimo, que afeta direitos fundamentais da população, ele opta
por uma solução populista e sabidamente ineficaz. É um simulacro de governo.
Fingindo preocupar-se com a população, ocupa-se apenas de si mesmo.
Mas, nessa história de GLO, há um outro
personagem, o sr. Flávio Dino, que sai inteiramente desmoralizado. Ao ser
conivente com o tal decreto, o ministro da Justiça e da Segurança Pública
descumpriu suas duas principais atribuições: zelar pelo cumprimento da
Constituição no âmbito da administração federal e prover políticas de segurança
pública responsáveis. A excepcionalíssima Garantia da Lei e da Ordem pelas
Forças Armadas, prevista no art. 142 da Constituição, não tem nenhuma relação
com colocar militar em portos e aeroportos para combater o crime organizado. É
esse o ministro cotado para o Supremo?
Com a nova GLO, não são apenas os atos de
Lula que ficam se parecendo com os de Bolsonaro, ao envolver os militares em
missão que não lhes cabe. Também os ministros de Lula ganham uma estranha
similaridade com os do governo anterior, ao cultivarem não a lei da República,
mas uma outra lei, definida assim pelo antigo ministro da Saúde Eduardo
Pazuello: “Um manda e o outro obedece”. Os resultados são bem conhecidos.
Sonhos de um Estado confessional e iliberal
O Estado de S. Paulo
PL proibindo o casamento homoafetivo é
exemplo de como grupos ideologicamente motivados querem usar instituições
jurídicas e parlamentares para impor convicções pessoais
A aprovação pela Comissão de Previdência,
Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados de
um projeto de lei (PL) que proíbe o casamento homoafetivo suscitou grande – e
natural – indignação. Para piorar, foi uma vitória folgada: 12 votos contra 5.
Ainda há dúvidas sobre a viabilidade da proposta. Tudo indica que, mais do que
uma lei com esse teor, o objetivo é gerar barulho e engajamento nas redes
sociais. É possível, portanto, que o projeto seja apenas mais uma das disfuncionalidades
da política contemporânea. Em vez de enfrentar problemas reais, ela é usada
para suscitar divisões na sociedade.
No entanto, mesmo que não seja aprovado no
plenário da Câmara, o projeto de lei proibindo o casamento homoafetivo é
representativo de uma mentalidade que vem se tornando habitual em diversos
grupos ideologicamente motivados. Trata-se da pretensão de usar o Estado – por
meio do Legislativo ou do Judiciário – para impor à coletividade ideias e
convicções pessoais sobre a vida, o mundo e a sociedade.
Nesse anseio, observa-se uma grande confusão
sobre o Estado e a própria democracia. As eleições e o sistema representativo
não são mecanismos para que as concepções morais, religiosas ou culturais da
maioria da população sejam impostas a toda a sociedade. Da mesma forma, o
controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal (STF) não é um
mecanismo para que as concepções morais, religiosas ou culturais de uma maioria
sejam impostas a toda a sociedade.
Tudo isso parece óbvio em um Estado
Democrático de Direito, que não vem ditar como as pessoas devem viver ou como
devem educar seus filhos, por exemplo. O Estado não é um fiscal da moral e dos
bons costumes, tampouco uma espécie de grande guia sobre o bem e a virtude. Seu
dever é prover um ethos de paz e de liberdade. E é daí que decorre a
legitimidade do Estado para determinar alguns limites aplicáveis a todos os
cidadãos. Por exemplo, os limites da lei penal.
Parece haver, no entanto, grupos políticos
completamente indiferentes ao âmbito próprio de atuação do Estado. Cada um
deseja fazer com que suas ideias pessoais sejam encampadas pelo poder público.
Isso é nítido na pretensão de proibir o casamento homoafetivo. Convictos de que
a relação matrimonial deve se dar entre um homem e uma mulher, determinados
grupos sociais querem que a lei estabeleça uma espécie de monopólio de sua
específica concepção de casamento para toda a população. Tratase de uma
interferência da esfera privada sobre o âmbito público, como meio de interferir
na esfera privada dos demais cidadãos.
Nos casos de motivação ou influência
religiosa, essa tentativa de interferência é facilmente identificada e
denunciada, uma vez que ela viola abertamente o caráter laico do Estado, que
deve atuar por razões públicas, e não por argumentos religiosos. No entanto, a
laicidade do poder estatal pode também ser desrespeitada por interferências
baseadas em concepções culturais ou filosóficas não generalizáveis a toda a
população. Por exemplo, o STF não pode basear suas decisões em determinada
ideia de moral, seja ela religiosa ou ateia.
Eis, por assim dizer, o outro lado do
problema. Se nos últimos anos grupos religiosos têm tentado usar o Congresso
para impor suas concepções de mundo a todos os demais, um fenômeno similar,
apenas com sinais trocados, é visto no Judiciário, com grupos progressistas
tentando impor suas pautas, isto é, sua visão de mundo, a toda a população, por
meio de decisões do STF. Dois exemplos recentes: a ação pedindo que a Corte
determine quando começa a vida apta a ser protegida pela lei penal e a ação
postulando um novo marco legal para as drogas.
A pauta de costumes não está apenas no
Legislativo. Também o Judiciário é chamado cada vez mais para se pronunciar
sobre costumes, para dizer o que é certo e virtuoso. Tanto um caso como o outro
são incompatíveis com a liberdade própria de um Estado Democrático de Direito,
que deve respeitar os âmbitos social e individual.
Acordo natimorto
O Estado de S. Paulo
Anulação das primárias da oposição na
Venezuela confirma má-fé e oportunismo do regime chavista
Durou exatos 13 dias o compromisso do regime
de Nicolás Maduro com a oposição e os Estados Unidos de realizar eleições
presidenciais “competitivas” em 2024. No último dia 30, para surpresa de
ninguém, o assim chamado “Tribunal Supremo de Justiça” do país, totalmente
controlado pelo regime chavista, suspendeu “todos os efeitos” das primárias
eleitorais de 22 de outubro. Em paralelo, o Ministério Público pôs em ação seu
aparato persecutório contra os integrantes da comissão organizadora do pleito.
Acreditar que os benefícios econômicos da reabertura do mercado americano ao
petróleo, gás e ouro venezuelanos seriam suficientes para o governo autoritário
manter-se fiel à sua promessa só fazia sentido na esfera da ingenuidade – ou do
pragmatismo de Washington em fechar os olhos e defender seu interesse de curto
prazo.
O acordo firmado em Barbados, com
intermediação do governo Lula da Silva, nasceu morto no último dia 17. O
reconhecimento de Caracas a termos que poriam sob ameaça a sobrevivência do
regime chavista só pode ser explicado pela má-fé e pelo oportunismo, diante da
necessidade de os EUA fortalecerem suas reservas estratégicas de petróleo e
gás. Nunca interessou a Nicolás Maduro o respeito a princípios básicos e caros
à democracia. Menos ainda qualquer brecha para o desmonte de uma estrutura
institucional corrupta e viciada, na qual o poder do Executivo, sob o amparo de
braços armados e da servilidade do Legislativo e do Judiciário, se tornou
inquestionável e praticamente absoluto.
A decisão do tal Tribunal Supremo, por si só,
não surpreende. A rigor, anula a legitimidade da escolha da imensa maioria dos
2,5 milhões de eleitores nas primárias pela candidatura da ex-deputada María
Corina Machado para o Palácio Miraflores. Perseguida pela cúpula chavista,
assim como os demais nomes fortes da oposição, María Corina fora proibida em
julho passado de disputar cargos públicos por 15 anos pela Controladoria-Geral
da República – outro órgão a serviço de Maduro. A corte fez valer a impugnação.
Igualmente grave foi o anúncio da
ProcuradoriaGeral de abrir investigações por “usurpação das funções eleitorais
e de identidade, organização criminosa e lavagem de dinheiro” contra os
integrantes da Comissão Nacional das Primárias. Formada por partidos de
oposição, a comissão tomara para si a organização do pleito por uma razão
inequívoca: a flagrante negligência e indisposição do Conselho Nacional
Eleitoral (CNE), dominado pelo chavismo, para convocar e realizar as primárias.
Esperar por alguma iniciativa do conselho, no final das contas, poria sob risco
qualquer candidatura da oposição em 2024. Confrontá-lo deu no que deu.
Como se vê há mais de duas décadas, a Venezuela chavista mata, na origem, qualquer possibilidade de contestação, nas urnas e nas ruas, ao regime que, como todo projeto autoritário, se supõe eterno. Clamar a Caracas pelo cumprimento do que assinou em Barbados é tão singelo como crer que o acordo seria um primeiro passo para a redemocratização da Venezuela. Pura perda de tempo.
Brasil precisa focar na solução de problemas
Correio Braziliense
O Brasil precisa parar de fabricar crises
artificiais que interessam apenas a políticos e especuladores do mercado
financeiro, que lucram com o aumento das incertezas
O Brasil precisa parar de fabricar crises
artificiais que interessam apenas a políticos e especuladores do mercado
financeiro, que lucram com o aumento das incertezas. O mercado que reagiu mal a
esse ou àquele fato, dois dias depois, registrou máximas e mostra o real se
valorizando. Nos últimos dias, deu-se a entender que há um ruído entre o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
quando, na verdade, os discursos de um e de outro confirmam que há hoje uma
preocupação com as contas públicas e com o equilíbrio das mesmas. Parece que
preferimos focar na árvore e nos esquecermos da floresta, e esse imediatismo
não contribui para a resolução de forma efetiva dos problemas que existem no
Brasil.
A cantilena em torno da meta de zerar o
deficit público no próximo ano mostra um rigor que não foi adotado no caso do
parâmetro estipulado para a inflação. A meta de inflação não foi cumprida nos
últimos dois anos, o índice de preços estourou a meta e nem por isso houve uma
crise de confiança no país. Da mesma forma, a alteração da meta de zero para
0,5% não será o fim do mundo, desde que o governo não abra mão de perseguir o
equilíbrio fiscal, que é o que o ministro e o presidente têm mostrado, a despeito
de afirmações de que há divergências entre eles.
Basta recuperar os fatos. Há um bom tempo,
todo o mercado vem afirmando, assim como disse mais de uma vez a ministra do
Planejamento, Simone Tebet, que alcançar o deficit zero no próximo ano será
muito difícil. O presidente Lula apenas confirmou que será muito difícil zerar
o deficit no próximo ano. Foi a gota d'água para especuladores colocarem água
na fervura e ver nisso uma divergência do ministro com o presidente. Mas o
próprio ministro informou que mostrou o problema a Lula e que, após reunião com
ele, o presidente manifestou sua preocupação. Haddad não cravou o deficit zero,
mas garantiu, mais de uma vez, que, enquanto for ministro, perseguirá o
equilíbrio das contas públicas, assim como Lula garantiu aos parlamentares que
não será criada nenhuma despesa nova.
Até agora, está mantido o compromisso do
governo federal com o equilíbrio das contas públicas, e a incerteza vem da
indefinição. O melhor a fazer é extirpar incertezas e, se houver mudança, que
se faça logo e se defina um patamar entre 0,25% e 0,50% para que os agentes
econômicos acomodem suas expectativas. O governo insiste em medidas de elevação
de receita para não ter que cortar investimentos em obras e programas sociais,
mas não dá nenhum sinal que possa cortar outras despesas ou buscar uma maior eficiência
no gasto público para cortar desperdícios e desvios.
O importante é que se busquem soluções, mais do que apontar "falsos" problemas, porque o Brasil está em um momento favorável, como constatou Robin Brooks, economista-chefe do Instituto Internacional de Finanças, ao afirmar que o país está a caminho de se tornar a Suíça da América Latina, assim como a presidente do Conselho de Administração do Santander, Ana Botín, indicou a possibilidade de entrarmos em um ciclo virtuoso que não é visto há anos. A mesma visão têm empresários brasileiros do setor de infraestrutura. A sociedade brasileira precisa parar de fabricar crises e focar na solução dos seus problemas estruturais para efetivamente aproveitar a janela de oportunidades que economistas e banqueiros estrangeiros estão vendo para o país.
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