sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O tumulto do déficit zero

Que tal nos arriscarmos na compreensão do processo macroeconômico de formação da renda, lucros e receita do Estado?

A semana foi ilustrada por reações dos mercados e de seus economistas às palavras do presidente Lula. No proscênio das indignações e desconfianças brilhava um conhecido personagem da tragicomédia econômica, o “déficit zero”.  Manchetes, editoriais e comentários na mídia corporativa destilaram críticas contundentes.

As expectativas dos mercados financeiros passam a se orientar por suposições acerca da evolução da “crise financeira do Estado”. Nos próximos meses, é preciso acompanhar a avaliação dos detentores e gestores da riqueza sobre os rumos da política fiscal e do endividamento público. Há sinais de que os senhores da finança já desconfiam da trajetória do déficit fiscal e da dívida pública.

Apoiado no linguista John Austin, Christian Marazzi, em seu livro Capital e Linguagem, cuida das marchas e contramarchas da finança dos últimos 30 anos. Marazzi sublinha a natureza performativa da linguagem do dinheiro e dos mercados financeiros. Performativo quer dizer que a linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve, muito menos “analisa”, um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente formas de compreensão que geram as irrealidades do “real”. O poder das ideias são as ideias do poder.

Para escapar às (in?)certezas do poder, seria conveniente buscar as dúvidas e contestações daqueles que ousaram e ousam pensar “fora da caixinha”. Para começar, vamos nos arriscar na compreensão do processo “macroeconômico” de formação da renda, dos lucros e da receita fiscal do Estado. Consideremos a questão de forma simplificada: empresas, famílias e governo rea­lizam gastos de consumo e de investimento. Nesse momento de “confiança”, empresas, famílias e governo estão incorrendo em “déficit” financiado pelos bancos e por outros intermediários financeiros. O aumento do gasto promove o crescimento da renda. Assim, a evolução da renda das empresas, famílias e governos “gastadores” permite a geração de um “superávit”. Superávit expresso na acumulação de lucros empresariais, no aumento da poupança familiar e, no caso dos governos, no superávit fiscal.

Parênteses: o economista austríaco Joseph Schumpeter, autor do clássico Teoria do Desenvolvimento Capitalista, atribuiu o desenvolvimento econômico ao papel sistêmico de duas personificações estratégicas: o banqueiro que administra o sistema de crédito adianta dinheiro novo para outro protagonista crucial, o empresário inovador. O crédito e a inovação rompem o fluxo circular, ou seja, o estado da economia que reproduz simplesmente o que existe.

O fluxo de lucros e a poupança, privada e pública, cuidam de garantir o serviço e a estabilidade do valor das dívidas e dos custos financeiros. As poupanças decorrentes do novo fluxo de renda vão abastecer os bancos e o mercado de capitais, que se arriscaram em adiantar o crédito (criação de moeda) para viabilizar os gastos de investimento e de consumo.

O aumento do investimento, do consumo e do endividamento enseja a hierarquização dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade conforme os preços, à vista e futuros, estabelecidos diariamente nos mercados secundários. Isto significa que a economia deve gerar “déficit” e liquidez no presente para que as dívidas (novas e já existentes), assim como os direitos de propriedade, possam ser “precificadas” conforme o estado de convenções prevalecente. Os bons resultados do presente aplacam o medo do futuro.

A economia monetária (e necessariamente financeira) em que prevalecem as relações de débito e crédito pode ser concebida como grande painel de balanços inter-relacionados. As decisões privadas e públicas de gasto apoiadas no adiantamento de liquidez são variá­veis cruciais. A disposição de bancos de prover liquidez a empresas, famílias e governos promove a geração do fluxo de renda agregada da economia. Sobre a renda já criada (salários, lucros e demais rendimentos) incidem as decisões de poupar que modificam a distribuição dos estoques de direitos sobre a riqueza e, portanto, a situação patrimonial dos protagonistas.

Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação risco/rendimento dos ativos sucumbem diante do medo do futuro. A obscuridade total paralisa as decisões e nega os novos fluxos de gastos. Em tais circunstâncias, a tentativa de redução do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio patrimonial é uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico, mas danosa para o conjunto da economia, pois leva necessariamente à ulterior deterioração dos balanços. É o paradoxo da “desalavancagem”.

A lógica é simples: João não vende. Se não vende, não compra de José, que, por sua vez, não encomenda os produtos de Mário. Mário deixa de produzir e dispensa seus operários. Os trabalhadores, despojados dos salários, não compram de João. João reduz ainda mais suas compras de José. Nessa embalada da contração do circuito mercantil, a economia afunda e o dinheiro some.

Diante da expectativa da continuidade da queda das vendas e dos preços dos bens, o dinheiro torna-se “escasso” e a turma corre desesperadamente atrás da grana. Diriam os economistas: sobe o valor presente de uma determinada soma de dinheiro. Ou seja, eleva-se o rendimento esperado da posse da riqueza sob a forma líquida. Como foi dito, precipitam-se as expectativas de uma queda cumulativa de vendas e preços, de uma interrupção de pagamentos e de crise aguda do sistema bancário. A cambulhada pega duro nos ativos financeiros distribuídos entre bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de pensão e fundos de hedge, ameaçando as poupanças de ricos, pobres e remediados.

Diante da fuga desatinada para a liquidez e para a segurança, tornam-se inevitáveis o desequilíbrio fiscal, a ampliação do espectro de ativos privados a serem absorvidos pelo balanço do Banco Central e o crescimento do débito público na composição dos patrimônios privados. Resta torcer para que essas “formas grosseiras” impeçam o avanço do credit crunch, o aprofundamento da deflação de ativos e a queda da produção e do emprego.

Em período de baixo crescimento, o gasto público impede a queda acelerada da produção

Nas recessões que afetam as economias capitalistas periodicamente, tanto os problemas relativos à geração de lucro, renda, e emprego quanto os patrimoniais (assim como o grau de endividamento e o risco das posições ativas e passivas) têm origem nas variações dos fluxos do gasto privado de consumo e de investimento. Tais flutuações provocam movimentos de ajuste na composição e no rendimento dos ativos que podem agravar o declínio do gasto produtivo. Mas esses movimentos cíclicos apresentam sensibilidade à atuação das políticas anticíclicas que se destinam a defender os fluxos de produção, os preços dos ativos e a validade das dívidas mediante a sustentação da liquidez dos mercados e o lucro das empresas.

Keynes procurou demonstrar que, em uma situação de ruptura do estado convencional de expectativas, torna-se aguda a contradição entre o enriquecimento privado e a criação da nova riqueza para a sociedade (crescimento das inversões em capital real). A crise leva ao limite o impulso de enriquecimento privado, ao ponto de torná-lo antissocial, devido à preferência pela liquidez que impõe a paralisia ao investimento e ao consumo, isto é, à formação da renda e ao emprego. Numa conjuntura de redução do investimento e do consumo privados, as empresas e os consumidores buscam desesperadamente reduzir o endividamento e aumentar as reservas monetárias.

Em uma economia que atravessa período de baixo crescimento e incertezas, diante de antecipações pessimistas do setor privado, o gasto do governo consegue impedir a queda ­acelerada da produção e evitar o agravamento da deflação de ativos. •

*Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.

 

2 comentários:

EdsonLuiz disse...

■Para toda solução em economia são usadas ferramentas de várias escolas ; nunca as propostas de uma única escola são aplicadas solitariamente à solução de problemas econômicos.

▪O keinesianismo recomendado por Luiz Gonzaga Belluzzo é ferramenta da economia cuja aplicação para casos como o da crise no Brasil é fundamental ao ser aplicada junto com outras ferramentas. Mas para que as ferramentas do keinesianismo sirvam como solução o Estado precisa estar com políticas econômicas saneadoras já implementadas e monstrando resultados positivos, coisa que no Brasil não está.

■Não estando o Estado saneado do ponto de vista econômico, a aplicação do keinesianismo não só apenas não serve de solução para as crises como tende a agravá--las e isso não seria recomendado nem pelo próprio Keynes

▪Muitas vezes, para tornar o Estado saudável é necessário primeiro o uso de soluções com ênfase nas ferramentas neoliberais.

Claro que as restrições recomendadas por neoclássicos causam apertos nas famílias e no Estado. Por causa destes apertos, durante a implementação das soluções é necessário arbitar as perdas para que os mais fracos, que são os que mais precisam do Estado não sejam os únicos ou os mais sacrificados.

Assim, para que o Estado seja colocado em condições de fazer expansão monetária para debelar crises este Estado precisa primeiro ser saneado. Se o Estado for usado para a solução da crise sem estar em condições de fazê-lo, o problema será agravado.

■Veja-se exatamente o caso do Brasil, na quase inviabilização do Estado entre 2007e2016 (o início da inviabilização econômica começou já antes de 2007) ::
▪As coisas na economia brasileira vinham sendo arrumadas no Governo Fernando Henrique e o Brasil sendo preparado para ter superávit e crescer.
▪Lula, em seu primeiro mandato, adotou e deu continuidade às políticas do governo Fernando Henrique e a tendência a ter a economia saneada e o Brasil crescer avançou. Mas ao mesmo tempo, para acelerar o crescimento os governos Lula expandiram gastos fora do que os fundamentos da economia aconselhava, principalmente a partir do segundo mandato de Lula.

▪Claro que com o Estado expandindo gastos os resultados imediatos que aparecem são muito bons, só que são artificiais.
▪Se o Estado estiver saneado quando fizer a expansão dos gastos, a crise será superada e vai haver uma retomada da economia ; mas se o próprio Estado estiver desequilibrado no momento em que fizer expansão de gastos a crise vai explodir.

■Foi o que aconteceu quando Lula promoveu gastos fora dos fundamentos de nossa economia. A crise fermentada por Lula eclodiu nos governos Dilma e nós estamos vivendo esta crise até hoje.

O keinesianismo que Luiz Gonzaga Belluzzo está propondo é muito bom, so que o keinesianismo tem que ser aplicado junto com outras ferramentas de economia e só pode entrar com o keinesianismo quando uma política saneadoras estiver em curso e apresentando resultados positivos medidos.

Edson Luiz Pianca.

ADEMAR AMANCIO disse...

Sim.