Folha de S. Paulo
Notas mais altas sairão das duas bandas
polarizadas
Na reta final do primeiro ano do
governo Lula 3,
começam a florescer no jardim das expectativas as sementes do pleito
municipal de 2024. Ao se retirar da paisagem política nos fins do ano
passado para passar uma temporada
na Flórida, o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) sinalizava seu ocaso após a desastrada administração
—que teve como ápice a malfadada política para enfrentar a pandemia de
Covid-19. De Luiz Inácio Lula da Silva (PT), esperava-se o descortino de uma
era de harmonia e paz, abençoada pela união dos brasileiros e sacramentada pelo
refrão governista de "reconstrução nacional".
Hoje, a inferência que se extrai é a de que o Brasil continua dividido. As duas bandas —a bolsonarista e a lulopetista— incrementam suas divergências, ferindo-se na arena expressiva das redes tecnológicas. Os dois protagonistas principais se engalfinham, com acusações recíprocas. Bolsonaro faz visitas a correligionários, e Lula prepara-se para iniciar um périplo pelos estados após uma série de viagens internacionais para recuperar a força da identidade brasileira, então desmoralizada.
As ações do Executivo em curso no Congresso
Nacional, com atendimento ao pleito parlamentar por recursos e cargos na
administração federal, mostram que Lula pavimenta, desde já, a estrada
eleitoral. E até deve contabilizar o sucesso
do programa de traslado de brasileiros e parentes da Faixa de Gaza. Um
êxito. Bolsonaro, por sua vez, vai impulsionar o aríete de
"destruição" do governo, avocando sua dubiedade na política
econômica, com Lula e Haddad defendendo posições diferentes para o déficit zero
do PIB em 2024 e denunciando as falas
do presidente contra Israel na guerra contra o Hamas.
Emerge dessa guerra de narrativas a hipótese
de que a campanha
eleitoral de outubro do próximo ano será intensamente polarizada. Ou,
em outros termos, federalizada. O plano federal dará o tom, e as tubas de
ressonância das duas bandas deverão "canibalizar" o plano municipal.
Claro, as propostas para melhoria na estrutura da saúde, na construção de
casas, nos equipamentos da educação, na seara dos alimentos baratos, na
locomoção urbana, na segurança pública, entre outras áreas, deverão lubrificar
as campanhas, mas as notas
mais altas sairão dos grupos polarizados.
O eleitorado observa a cena política com mais
atenção. O afastamento, com restrições, que mantém em relação aos seus
representantes, tende a dar lugar a uma aproximação, abrindo os sistemas
cognitivos para uma percepção mais acurada de figurantes e candidaturas. O país
avança, de maneira lenta e gradual, no terreno da racionalidade.
O populismo, claro, ainda deve ganhar algumas
pitadas, aqui e ali, principalmente nas comunidade dos longínquos rincões, mas
a teia de médias e grandes cidades será exposta a temas do momento,
principalmente nos núcleos de defesa de valores da família. Aí podemos
distinguir o contraponto entre as abordagens conservadoras e progressistas, com
clara divisão de pontos de vista.
Estaremos sujeitos às promessas mirabolantes?
Sim. Mas certamente cairão no poço do deboche social, como a promessa de
campanha de Antônio
Luvizaro ao governo do estado da Guanabara, nos idos de 1960:
"Carros novos só podem entrar no centro pelos túneis novos; carros velhos
entram nos bairros distantes pelos túneis velhos. Essa é minha proposta para o
trânsito, uma solução rápida, prática e barata".
O fato é que o Brasil de final de ano já
respira ares eleitorais, a mostrar que eleição de dois em dois anos é um
atraso. No DNA de nossa política corre sangue patrimonialista, o que aponta
para a figura do Estado como ente que deve abrigar a todos em seu seio por meio
de empregos, espaços e poder. É o Estado como vaca leiteira. A cidadania é
ocupada pela "estadania", como nos ensina o acadêmico de saudosa
memória José
Murilo de Carvalho.
*Jornalista, escritor, professor titular
aposentado da USP e consultor político
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