domingo, 3 de dezembro de 2023

Elio Gaspari - Fundo para pobres? Nem pensar

O Globo

MP que propõe bolsa para alunos de baixa renda concluírem estudos enfrenta resistência no governo

Discute-se a destinação de recursos para um fundo e o senador Meira de Vasconcelos intervém:

“Agora não é possível fazer mais, no estado em que se acha o orçamento.”

Volta-se a discutir a criação de um fundo, desta vez para incentivar a permanência de estudantes pobres no ensino médio, pois é lá que mora a maior taxa de evasão escolar. Os jovens teriam acesso a um pé de meia ao fim de cada ano, depois de terem sido aprovados.

A Medida Provisória que cria esse programa saiu na semana passada e já está debaixo de chumbo. Ectoplasmas da ekipekonômica reclamam da metodologia aplicada à despesa, e papeleiros chegam a falar em “contabilidade criativa”.

Tudo bem, mas a fala do senador Meira de Vasconcelos nada tem a ver com a MP patrocinada pelo MEC. Ela aconteceu em 1883, quando o visconde de Paranaguá tratava da necessidade de um reforço para o Fundo Emancipador dos Escravos. (Burlado, esse fundo pouco funcionou. Cinco anos depois a abolição libertou os escravizados, sem qualquer indenização.)

Meira de Vasconcelos havia governado Minas Gerais e batalhado pelo progresso da agricultura. Não integrava a tropa de choque escravagista. Sabia fazer contas e por isso protegia o orçamento. Só não percebia que estava na maior nação escravista do mundo, com os dias contados.

No tiroteio contra a MP ninguém tratou do alcance social da medida. Em 2010 ninguém falou contra a anabolização do Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies. Ele se destinava a custear as anuidades de estudantes das universidades privadas, sem fiador real e a juros baixos.

Em tese, foram dois fundos. Na vida real, o programa do MEC põe dinheiro no bolso de quem precisa e foi aprovado ao fim do ano letivo. Já o Fies punha dinheiro no bolso das faculdades privadas, que transferiram para a Viúva suas carteiras de inadimplentes.

O Fies fez a alegria dos papeleiros e deixou um calote de R$ 54 bilhões. O programa do MEC instituído pela MP do governo deve custar até R$ 20 bilhões e já se articula o seu encolhimento, como encolheu-se o Fundo de Emancipação dos Escravos. Afinal, Meira tinha alguma razão, pelo estado em que se encontrava o orçamento.

Numa crueldade dos deuses, o ministro da Educação ao tempo em que foi bombado o Fies era o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O debate em torno da criação do fundo de bolsas para alunos pobres do ensino médio começou da pior maneira possível.

A janela aberta pelo ministro da Educação, Camilo Santana, permite que a iniciativa privada entre na dança. Ela pode participar desse programa de bolsas patrocinando cinco, cinquenta ou quinhentos jovens nos municípios ou nos estados, com direito à divulgação publicitária de cada iniciativa.

A ‘anarcodiplomacia’ de Lula

Presidente eleito da Argentina, Javier Milei é classificado como um “anarcocapitalista”. Em Dubai, Lula lançou a sua “anarcodiplomacia” ao propor uma “governança global” para as questões ambientais. Algo como um superpoder mundial. Nas suas palavras:

“Nós precisamos ter uma governança global para ajudar a cuidar do planeta. Porque, se você toma uma decisão qualquer em benefício do mundo e ela tiver que ser votada internamente pelo seu Congresso Nacional, significa que ninguém vai cumprir.”

Se a Liga das Nações naufragou no século XX e a ONU não consegue impor suas decisões no XXI, Lula quer resolver o problema com uma nova governança. Ele, que condena de maneira geral a aplicação de sanções internacionais a países que desrespeitam direitos humanos, quer uma nova governança para a defesa de vegetais e contenção de gases.

O sol vai congelar antes que cidadãos americanos, russos ou chineses aceitem que uma instituição supranacional se meta nas suas vidas. Lula, por exemplo, não é um aliado do Tribunal Penal Internacional.

O “anarcodiplomata” defende soluções fantásticas, sabendo que são inviáveis.

Para um presidente que já defendeu votos secretos para ministros do Supremo Tribunal Federal, a proposta “anarcodiplomática” de Lula é ruim por inviável. Infelizmente, como as falas de Milei com seus cachorros, tem algo de ridículo.

Cadê a perícia do bate-boca de Roma?

Aquilo que em julho passado foi um episódio de maus modos da família Mantovani com o ministro do STF Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, transformou-se numa amostra dos labirintos jurídicos e processuais de Pindorama.

O caso é simples: Moraes sustenta que foi insultado pelos Mantovani e que Roberto, o chefe da família, deu um tapa no seu filho. A cena foi gravada pelo circuito interno do aeroporto e as imagens (sem som) foram mandadas ao Supremo Tribunal Federal.

Admitindo-se que os insultos verbais aconteceram, a questão iria ao tapa. O relatório italiano diz que um movimento de Mantovani tocou “levemente” os óculos do filho de Moraes. Um documento da Polícia Federal brasileira afirma que “aparentemente” houve o toque.

Havendo um vídeo, basta vê-lo para opinar. Como as coisas simples complicam-se no Judiciário de Pindorama, o ministro José Antonio Dias Toffoli, relator do processo no STF, colocou o vídeo sob sigilo. A defesa dos Mantovani e a Procuradoria-Geral da República (PGR) só podem vê-lo na sede do STF. Não podem copiá-lo.

Admitindo-se que um leigo pode tirar conclusões erradas ao ver o vídeo, a Polícia Federal dispõe de peritos capazes de dizer o que houve, o que não houve e o que não se pode dizer se houve. Até hoje esse serviço de peritagem não foi acionado.

No dia 30 de outubro, Toffoli determinou que fosse designado um perito “para acompanhar o acesso das partes” às imagens. O que significa “acompanhar o acesso”? Chamar o elevador?

A questão pode ser simplificada: basta solicitar um laudo pericial da PF. Trata-se de um serviço oficialmente reconhecido, com carreira definida nos quadros da instituição. Colocar um de seus servidores na condição de acompanhante de acesso é igualá-lo a um São Jorge de salão de sinuca.

Qualquer ministro do Supremo se consideraria insultado se um grosseirão o acusasse, num saguão de rodoviária, de deixar os peritos da PF longe de um vídeo que pede peritagem.

Henry Kissinger (1923-2023)

Henry Kissinger morreu aos 100 anos. Ele foi o primeiro em muitas coisas. Foi o primeiro professor de Harvard a se tornar um conselheiro de 12 presidentes americanos. Foi o primeiro alemão a se tornar secretário de Estado e foi o primeiro diplomata elevado à condição de celebridade pop.

Foi também o primeiro de sua espécie a conviver com a revelação dos segredos de sua diplomacia. Nisso, faltou-lhe sorte.

Num exemplo de jornalismo de alta qualidade, o repórter David Sanger dedicou-lhe um extenso obituário no “New York Times”, colocou cada pedra no seu lugar e encolheu-lhe o pedestal. Seu texto clama por alguém que o traduza para o português.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Simples e complexo assim.