O Globo
Ela é uma ideia revolucionária que, se bem
implementada, traz uma série de benefícios à população
Pode ser difícil explicar o que fez com que
a onda de protestos de junho de 2013 emergisse, mas não deveria ser difícil
entender o que os manifestantes queriam.
No banco de dados “Grafias de junho”, que reuniu o registro fotográfico de mais de 6 mil cartazes de 40 cidades brasileiras, o tema mais frequente é mobilidade urbana, como mostrou Roberto Andrés no excelente livro “A razão dos centavos” (Zahar, 2023). No dia 17 de junho de 2013, em São Paulo, o Datafolha perguntou a motivação dos manifestantes, e 56% disseram “protestar contra o aumento da passagem”. No dia 20 de junho, o Ibope entrevistou manifestantes em oito capitais e descobriu que o principal motivo dos protestos era a redução das tarifas de transporte (o segundo era a corrupção). Não era apenas pelos 20 centavos, mas era também, e era sobretudo, pelos 20 centavos.
Em julho de 2013, 59 dos 90 municípios com
mais de 200 mil habitantes tinham reduzido as tarifas de transporte para
responder aos protestos. Para 70% dos habitantes das grandes cidades, foi
ampliado o subsídio ao transporte público naquele ano. De lá para cá, porém, a
política para o transporte público foi oscilante, com algumas cidades ampliando
o subsídio, outras chegando a reduzi-lo.
A tarifa zero era, naquele ano de 2013, uma
espécie de utopia. Tinha sido testada apenas em cidades pequenas ou que tinham
receita extraordinária com royalties do petróleo. De lá para cá, uma revolução
silenciosa aconteceu. As experiências com tarifa zero passaram de 17 cidades em
2013 para quase 80 em 2023. Mais de 3 milhões de brasileiros já vivem sem
precisar pagar pelo transporte.
Com a redução drástica no uso do transporte
público depois da pandemia, muitas cidades adotaram a tarifa zero para tentar
reerguer o sistema. Apenas nos dois últimos anos, 39 a implementaram. O debate
sobre a gratuidade saiu das pequenas cidades para as grandes capitais. Em 2020,
o prefeito de Porto Alegre, do PSDB, propôs tarifa zero nos ônibus da cidade,
mas foi derrotado na votação na Câmara Municipal. Pelo menos quatro capitais
estudam hoje instaurá-la: Cuiabá, Fortaleza, Palmas e São Paulo.
A tarifa zero é uma ideia revolucionária
que, se bem implementada, traz uma série de benefícios à população. Em primeiro
lugar, retira a barreira de preço que dificulta o deslocamento urbano para os
mais pobres. Tomando o valor médio de R$ 6, apenas a ida e volta ao trabalho
pode custar mais de R$ 240 mensais, 18% do salário mínimo. É verdade que o
trabalhador registrado em carteira é beneficiado pelo vale-transporte, mas
metade da nossa força de trabalho é informal e não dispõe do benefício. A
tarifa zero não apenas facilitaria o deslocamento para o trabalho, mas também
os deslocamentos para educação, lazer e compras. Seria uma revolução os mais
pobres poderem transitar pela cidade sem barreiras econômicas.
Para quem tem um pouco mais de recursos, a
tarifa zero seria um enorme incentivo econômico que levaria usuários do
transporte particular para o transporte público, desafogando o trânsito e
tornando mais rápidos todos os deslocamentos. Por fim, do ponto de vista
ambiental, as mudanças reduziriam a emissão de gases de efeito estufa, já que o
carro particular é a principal fonte de emissão nas cidades.
A capital mais próxima de implementar a
tarifa zero é São Paulo. Hoje o sistema de ônibus da cidade custa cerca de R$
10 bilhões, e a Prefeitura já o subsidia com R$ 5 bilhões. Seguindo o caminho
de Porto Alegre, São Paulo quer que a contribuição das empresas para o
vale-transporte seja destinada a um fundo municipal de transportes que somaria
outros R$ 2,8 bilhões em subsídio. A economia com o fim do sistema de venda e
recebimento de bilhetes e a exploração de publicidade nos ônibus e terminais
gerariam outro R$ 1,2 bilhão, cobrindo 90% do custo atual. Mas, como a
gratuidade elevaria a demanda, seria preciso complementar o financiamento, seja
com recursos do Tesouro, seja com a municipalização da Cide, o imposto sobre a
gasolina — ideia defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quando
era prefeito. A conta fecha.
Muitas cidades grandes europeias estudam
hoje a tarifa zero pelos efeitos ambientais. Temos agora a rara oportunidade de
virar modelo de política pública para a Europa e para o mundo. Só precisamos
fazer bem feito — e com cuidado.
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