O Globo
O ‘amor que não ousa dizer seu nome’ virou
o ‘amor que não para de inventar nomes’
O presidente da França, Emmanuel
Macron, tomou, de um gole só, uma garrafa de 330 ml de cerveja.
Noutros tempos, a notícia seria tão relevante quanto “Caetano estaciona no
Leblon”. Não na Era da Problematização Compulsória. Médicos criticaram a cena,
afirmando que Macron deveria dar “exemplo de comportamento saudável”. Queriam
que ele comemorasse a vitória do seu time, no vestiário de um estádio, com um
copo (reciclável) de suco de couve, pepino, hortelã e água de coco? Uma
deputada vislumbrou ali “masculinidade tóxica” — delírio análogo ao do personagem
de Nélson Rodrigues que via degeneração dos costumes nas moças que tomavam
Coca-Cola no gargalo.
A cada vestal a postos para apontar o pecado alheio, corresponde um resmungão que reage com igual intensidade e em sentido oposto, dizendo que o mundo está ficando muito chato. Não: está é cada vez mais interessante.
Depois de séculos de heteronormatividade
(sendo considerados “normais” apenas os relacionamentos entre pessoas de sexos
opostos), finalmente chegamos ao ponto em que a sociedade começa a se livrar da
homofobia — e da transfobia. Como efeito colateral, ser simplesmente homo ou
trans perde valor no mercado da transgressão.
Uma influenciadora vem a público se
declarar demissexual (“pessoa que só desenvolve atração sexual por alguém após
estabelecer uma conexão emocional profunda”). Mas não era isso o que se
esperava de todo mundo, até a revolução sexual nos libertar da moral vitoriana
e trazer a iluminação de que “amor é prosa, sexo é poesia”?
Para não ser só mais um na fila do pão,
agora é preciso proclamar-se pansexual, ecossexual, sapiossexual ou adepto de
suigenerissexualidades afins. O “amor que não ousa dizer seu nome” virou “o
amor que não para de inventar nomes”.
Enquanto princípios como respeito às
diferenças e preocupação com o bem comum ganham força, se enraizando na cultura
e na política, fica mais acirrada a briga por um lugar sob os holofotes no
ranking da ostentação moral.
— O que te comove? Milhares de pessoas
morrem refugiadas todos os anos, fugindo de guerras, da miséria e em busca de
uma vida melhor. Enquanto isso, bilionários mobilizam o mundo todo pra um
resgate porque queriam ver de perto o navio do Titanic [sic] — questiona um
ativista, ainda agarrado à “fase Cecília Meireles”, aquela do “ou isso ou
aquilo”.
É possível se comover com o drama dos que
fogem das guerras, da miséria — e do socialismo — sem precisar ignorar a dor de
quaisquer outros seres humanos. Ou estaremos retomando a lógica perversa de
haver algumas pessoas com mais dignidade do que outras, em função de sexo,
etnia, idade, credo, grana ou convicções políticas.
Não, o mundo não está mais chato com o reconhecimento dos direitos das minorias, com as políticas de inclusão social ou com o elogio da diversidade. O mundo está é mais civilizado, mais solidário, mais tolerante e mais justo. E também mais vulnerável às pessoas chatas, que não se contentam com apenas chatear quem estiver ao lado. Querem aporrinhar o planeta. E construir mais um degrauzinho para si no pódio das virtudes.
Um comentário:
Muito bom o artigo,adorei.
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