sábado, 24 de junho de 2023

Eduardo Affonso - A chatice do mundo

O Globo

O ‘amor que não ousa dizer seu nome’ virou o ‘amor que não para de inventar nomes’

O presidente da França, Emmanuel Macron, tomou, de um gole só, uma garrafa de 330 ml de cerveja. Noutros tempos, a notícia seria tão relevante quanto “Caetano estaciona no Leblon”. Não na Era da Problematização Compulsória. Médicos criticaram a cena, afirmando que Macron deveria dar “exemplo de comportamento saudável”. Queriam que ele comemorasse a vitória do seu time, no vestiário de um estádio, com um copo (reciclável) de suco de couve, pepino, hortelã e água de coco? Uma deputada vislumbrou ali “masculinidade tóxica” — delírio análogo ao do personagem de Nélson Rodrigues que via degeneração dos costumes nas moças que tomavam Coca-Cola no gargalo.

A cada vestal a postos para apontar o pecado alheio, corresponde um resmungão que reage com igual intensidade e em sentido oposto, dizendo que o mundo está ficando muito chato. Não: está é cada vez mais interessante.

Depois de séculos de heteronormatividade (sendo considerados “normais” apenas os relacionamentos entre pessoas de sexos opostos), finalmente chegamos ao ponto em que a sociedade começa a se livrar da homofobia — e da transfobia. Como efeito colateral, ser simplesmente homo ou trans perde valor no mercado da transgressão.

Uma influenciadora vem a público se declarar demissexual (“pessoa que só desenvolve atração sexual por alguém após estabelecer uma conexão emocional profunda”). Mas não era isso o que se esperava de todo mundo, até a revolução sexual nos libertar da moral vitoriana e trazer a iluminação de que “amor é prosa, sexo é poesia”?

Para não ser só mais um na fila do pão, agora é preciso proclamar-se pansexual, ecossexual, sapiossexual ou adepto de suigenerissexualidades afins. O “amor que não ousa dizer seu nome” virou “o amor que não para de inventar nomes”.

Enquanto princípios como respeito às diferenças e preocupação com o bem comum ganham força, se enraizando na cultura e na política, fica mais acirrada a briga por um lugar sob os holofotes no ranking da ostentação moral.

— O que te comove? Milhares de pessoas morrem refugiadas todos os anos, fugindo de guerras, da miséria e em busca de uma vida melhor. Enquanto isso, bilionários mobilizam o mundo todo pra um resgate porque queriam ver de perto o navio do Titanic [sic] — questiona um ativista, ainda agarrado à “fase Cecília Meireles”, aquela do “ou isso ou aquilo”.

É possível se comover com o drama dos que fogem das guerras, da miséria — e do socialismo — sem precisar ignorar a dor de quaisquer outros seres humanos. Ou estaremos retomando a lógica perversa de haver algumas pessoas com mais dignidade do que outras, em função de sexo, etnia, idade, credo, grana ou convicções políticas.

Não, o mundo não está mais chato com o reconhecimento dos direitos das minorias, com as políticas de inclusão social ou com o elogio da diversidade. O mundo está é mais civilizado, mais solidário, mais tolerante e mais justo. E também mais vulnerável às pessoas chatas, que não se contentam com apenas chatear quem estiver ao lado. Querem aporrinhar o planeta. E construir mais um degrauzinho para si no pódio das virtudes.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo,adorei.