O Globo
Jair Bolsonaro começou a semana com uma bela
carta na manga: era alvo de um inquérito para averiguar se ele molestara uma
baleia. Sim, a mesma Polícia Federal que ficou notória por desbaratar esquemas
bilionários de corrupção e por acordar políticos e empresários corruptos ao
alvorecer — muitos já inocentados no desmanche da Lava-Jato, claro — se ocupa
agora em analisar se Bolsonaro violou o disposto na Lei 7.643, de 1987, que
impõe pena de dois a cinco anos de prisão, além de multa, para “molestamento intencional”
de cetáceos.
O fim da semana, no entanto, recolocou no proscênio a investigação essencial envolvendo o ex-presidente da República: a apuração da tentativa de golpe de Estado que teve como ápice o 8 de Janeiro, mas começou a ser tramada muito antes. Golpe de Estado que não ocorreu, antes de mais nada, porque a maioria do Alto-Comando das Forças Armadas, a começar pelos comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, se negou a colocar as tropas nas ruas.
É hora de a Justiça se debruçar sobre as
provas colhidas contra os golpistas e construir casos sólidos, sem se animar
com ventos momentâneos da sempre volátil opinião pública. Dentro do núcleo duro
de Bolsonaro, o ex-ministro Walter Braga Netto, seu candidato a vice, precisará
de muito mais que alegações persecutórias para se livrar das fartas provas que
surgem desde a transição. Não bastassem as reuniões com golpistas entre a
derrota eleitoral e a posse de Lula, a operação da última quinta-feira revelou
as intensas movimentações dele para “infernizar” a vida dos comandantes que
recusaram a aventura.
A questão central está no chefe, e os
próximos passos não serão triviais para a PF, o Ministério Público e o
Judiciário. A articulação de Bolsonaro contra as urnas e a mobilização de
subordinados para reagir contra a vitória de Lula são cristalinas. As provas
que emergiram da delação de Mauro Cid incluem até áudios que este gravou à
época dos eventos, afirmando que o então presidente havia manipulado o decreto
de golpe que previa a prisão de Alexandre de Moraes. Será a organização do que
já surgiu, somada aos atos dele no cargo e a uma eventual “bala de prata”, que
definirá a possibilidade de enquadrá-lo no artigo 359-L do Código Penal:
“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático
de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.
Não há crime mais grave.
“O passado é um prólogo.” A frase de
Shakespeare em “A tempestade” deveria estar na mesa de todos os que se
preocupam com o futuro de nossa democracia. Em abril de 2018, depois de
condenado em duas instâncias por ter recebido obras num tríplex como retribuição
pelo esquema na Petrobras, Lula foi preso e retirado da disputa eleitoral. Uma
semana depois da detenção, 54% da população dizia ao Datafolha que a
considerava justa, e 40% eram contrários. Quatro anos depois, a maioria da
população decidiu colocá-lo novamente no Planalto.
Na véspera de a PF bater na porta de sua casa
nesta semana, Bolsonaro lotou ruas de São Sebastião para fazer sua marcha
contra a injustiça no inquérito da baleia. A eventual denúncia e condenação
daquele que é hoje o segundo líder político mais popular do Brasil precisará se
basear em provas claras e compreensíveis para a parte da população que não é
aliada radical do ex-presidente, mas tampouco o vê como representação de todo
mal. Muitos dos quais votaram nele em 2018 e se afastaram em 2022.
É dever de quem quiser derrotar o
bolsonarismo se preocupar em entender o que angustia quem pensa em votar nele.
A ascensão de Bolsonaro envolveu uma babel de interesses que iam do militarismo
à defesa de valores conservadores, mas tinha como seu principal motor a revolta
com os bilionários esquemas de corrupção revelados pela Lava-Jato. Poucas
coisas podem ser tão úteis para o futuro do ex-presidente quanto ser visto como
alvo preferencial do mesmo Supremo Tribunal Federal que anula acordos de
leniência que obrigavam corruptos confessos a devolver bilhões de reais. A
estratégia de vitimização não é nada original, mas a História mostra que pode
valer a pena.
* Paulo Celso Pereira é editor executivo do
GLOBO
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