Folha de S. Paulo
No país tem mais templos do que escolas e
hospitais, dá para confiar no povo?
O estarrecimento com a amplitude da intentona golpista não pode ser menor do que o da suspeita de esvaziamento da operação de socorro aos ianomâmis pelas forças, nem do fato de que os medicamentos foram achados numa fossa em Boa Vista. Estavam lá desde o governo passado. Esse grau de descompaixão, síndrome de sociopatia genocida, acrescenta-se aos elementos do reexame necessário para bem compreender o comportamento de uma larga fração do povo nacional de hoje. Um dado do Censo é sintomático: o país tem mais templos do que escolas e hospitais.
Povo, vale repetir, não é o mesmo que
população, mas uma ficção moderna, portanto, um conceito que, sob a égide da
ideologia republicana, sempre produziu efeitos políticos. No século passado,
San Tiago Dantas, chanceler e ministro da Fazenda do governo João Goulart,
figura relevante da esfera pública, sustentava que "o povo brasileiro era
melhor do que as elites". Um tempo em que opiniões diferentes não eram
pretexto para injúrias nem cancelamentos pessoais. Assim, João Mangabeira
discordava com metáfora jurídica: "O povo é uma massa falida".
Entretanto, nos anos 80, Lula se valia do otimismo da canção sertaneja
"Massa Falida" para mobilizar grevistas em portas de fábricas no ABC
paulista.
Hoje arrefece a ideia progressista de povo
como organização liberal das massas e, portanto, a crença na pressão popular
como força transformadora. Vale lembrar o movimento das eleições diretas nos estertores do regime militar, que
arregimentou multidões em comícios, mas foi reduzido à escolha indireta
Tancredo versus Maluf no Colégio Eleitoral. Diretas assustavam a casa-grande.
Já o badernaço de 2013 gerou inéditos refluxos políticos. Não era
"povo nacional" nas ruas, mas uma massa "dezembrista" (ao
modo da malta parisiense que apoiou o golpe de Luis Bonaparte em dezembro de
1851), explosiva, nada cívica. Desenhava-se um novo espírito de tempo, nada
estranho a quem conceba nação como "princípio espiritual". Entre nós,
a concreta espiritualidade nacional foi sempre construção de um ativismo
popular tido como festivo e cordial. Mas isso refluiu para as redes e para os
templos religiosos (excluam-se os cultos afros, que sempre estiveram à margem
da política), com o regressivo psiquismo da ultradireita.
No passado, movimentos minoritários europeus
tentaram construir, por cultura ou por princípio espiritual, Estados-nações
etnicamente homogêneos. O fundamento nacional assentaria num "povo"
particular, mesmo sem território. Pode ser esse agora o caso brasileiro, um
fundamentalismo bronco, egocêntrico e impiedoso, que não comporta a voz pública
de diferenças civilizatórias como a dos ianomâmis e outras. Mas parece sonhar
com uniformes. Afinal, dizia o cronista Antônio Maria, "homem ruim dorme batendo
continência".
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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