Regulamentação da reforma tributária é urgente para o país
O Globo
Projeto apresentado pelo governo, com todos
os senões, deve ser encarado como prioridade no Congresso
Com a aprovação da reforma
tributária no ano passado, criou-se enfim consenso no
Parlamento para pôr fim ao manicômio tributário brasileiro. Ficou acertado que
três impostos federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal
(ISS) serão unificados em dois novos: CBS (federal) e IBS (estadual e
municipal). A mudança reduzirá o tempo inacreditável gasto pelas empresas para
administrar o pagamento de tributos, acabará com a cumulatividade que mina a
competitividade brasileira e contribuirá para diminuir o altíssimo nível de
judicialização, a infinidade de regras, exceções e guerras fiscais, com a
consequente má alocação de investimentos na economia. Embora a emenda
constitucional promulgada em dezembro tenha defeitos — entre eles um sem-número
de exceções e regimes especiais ainda mantidos —, ela coloca o Brasil numa nova
realidade tributária.
O Executivo apresentou nesta semana o primeiro de três projetos de regulamentação, com propostas de regras para o novo sistema. Em mais de 300 páginas e 500 artigos, o texto demandará atenção redobrada dos congressistas. Ideias ruins anunciadas anteriormente, como exceções e isenções raramente justificáveis, foram mantidas. Há também indícios de voracidade arrecadatória, apesar de o governo insistir que a intenção é apenas regulatória.
Pelos cálculos da Fazenda, a soma das
alíquotas de CBS e IBS deverá ficar entre 25,7% e 27,3%, uma das mais altas do
mundo (a média entre países da OCDE é 18%). Um dos fatores a empurrá-la para
cima é a profusão de exceções. Quanto mais benefícios a setores específicos,
maior a conta de todos os demais. À primeira vista, parece fazer sentido
isentar alimentos da cesta básica, como propõe o governo. A experiência
internacional mostra, porém, que os produtores não costumam refletir a isenção
nos preços. Mesmo que os reduzissem, a isenção é injusta por beneficiar de
forma indiscriminada pobres e ricos. Mais eficaz seria cobrar os impostos de
todos, depois canalizar recursos a quem precisa de ajuda, nos moldes do
inovador programa de cashback previsto na própria proposta. Se aprovado,
famílias com renda per capita de até meio salário mínimo receberão de volta
impostos cobrados nas contas de gás, luz, água e esgoto.
Na lista de produtos alvos do Imposto
Seletivo, chamado de “imposto do pecado”, estão os suspeitos de sempre:
cigarros, bebidas alcoólicas e bebidas açucaradas. Uma ausência e uma inclusão
chamam a atenção. A proposta não menciona armas de fogo, artigo cuja compra
deveria ser desestimulada. Mas inclui minério de ferro, sem especificar o
motivo. A explicação provável é a intenção de reforçar a arrecadação (o minério
é o principal produto na pauta de exportações brasileira).
Outro problema exige correção. Do jeito que
está, o texto dá margem a uma interpretação descabida para o recebimento de
créditos tributários do IBS e CBS. Uma empresa só poderá exercer o direito se
todos os seus fornecedores estiverem em dia com o Fisco. Ora, o governo não
pode forçar um empreendedor a ser fiscal de quem compra insumos, papel que cabe
à Receita Federal.
Com todos os senões e reparos que possam ser
feitos, a regulamentação da reforma tributária é uma necessidade urgente para
modernizar a economia brasileira. Os parlamentares têm o dever de encarar como
prioridade o projeto do governo, fazer os reparos necessários e aprová-lo
quanto antes.
Câmara tem de rejeitar projeto de
regionalização de normas sobre armas
O Globo
Projeto aprovado na CCJ dificulta controle de
armamentos, necessário ao sucesso no combate à violência
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da
Câmara prejudica o combate à violência com
o projeto que permite aos estados e ao Distrito Federal legislar sobre a posse
e o porte de armas. A proposta, da oposicionista Caroline de Toni (PL-SC),
presidente da CCJ, criaria inconsistências entre as legislações estaduais e
dificultaria o controle de armamentos, necessário ao êxito de qualquer política
de segurança pública.
Se aprovada, quem fosse impedido de comprar
armas e munições no próprio estado poderia viajar para abastecer seu arsenal.
Ainda que o projeto estabeleça que o registro estadual seja integrado ao
sistema do Ministério da Justiça e restrinja compra a nascidos no próprio
estado, é evidente a brecha aberta ao aumento da circulação de armas. O
movimento dos legisladores deveria ir na direção contrária: criar mais
restrições ao armamentismo, banalizado no governo Jair
Bolsonaro.
Logo no início do governo, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva reverteu várias medidas armamentistas de Bolsonaro. Vetou
o acesso a armas de grosso calibre, restringiu a duas aquelas que o cidadão
pode adquirir e limitou a compra de munição a 50 projéteis por ano. Mas
armamentos comprados legalmente continuam com seus donos. Estima-se haver 1
milhão de armas em poder da população.
A experiência com a supervisão do comércio de
armas tem sido negativa. Cabia apenas ao Exército emitir registro para
Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), mesmo assim foram
descobertas irregularidades. Um levantamento do Tribunal de Contas da União
(TCU) com informações de 2019 a 2022 revela que o Exército emitiu licenças para
condenados por tráfico de drogas e homicídio, além de alvos de mandados de
prisão não cumpridos. É comum armas compradas legalmente por CACs irem parar
nas mãos do crime organizado.
Pode-se imaginar o que aconteceria com a
permissão para as assembleias legislativas legislarem sobre armas. Seria
praticamente impossível controlar a pulverização dos registros de armas e
munições pela Federação, segundo afirma o secretário de Segurança Pública do
Ministério da Justiça, Mario Sarrubbo. Ele defende, com razão, que o trabalho
continue centralizado na União. É com essa intenção que os CACs, no ano que
vem, passarão a ser fiscalizados pela PF.
O plenário da Câmara precisa rejeitar o
Projeto de Lei aprovado na CCJ para evitar a banalização do uso de armas no
país. Trata-se de medida fundamental para evitar descontrole ainda maior da
violência que tanto tem atemorizado a população brasileira.
Veto dos EUA ao TikTok afronta livre
expressão
Folha de S. Paulo
Bandeira da segurança é desfraldada para
sustentar censura; Justiça decidirá sobre sacrifício de valor caro à democracia
Joe Biden mirou
a China,
conforme as justificativas oficiais, ao sancionar a lei que pode banir dos
Estados Unidos a plataforma de mídia social TikTok. O que de mais
evidente o mandatário atingiu, no entanto, foi a liberdade de expressão.
O texto que uniu democratas e republicanos
nas duas Casas do Congresso estipula que a companhia responsável pelo
aplicativo, a chinesa ByteDance, precisará se desfazer dele num prazo de 270
dias prorrogáveis por mais três meses.
Terá de vendê-lo a um controlador originário
de país que não seja hostil aos EUA. Do contrário, o acesso ao serviço será
bloqueado.
A censura —é disso, afinal, que se trata—
será aplicada a uma rede utilizada por algo entre 150 milhões e 170 milhões de
americanos, numa população estimada em 335 milhões. Segundo pesquisa do
Instituto Reuters, essa é a principal
fonte de notícias para 20% dos jovens de 18 a 24 anos no país.
A venda determinada arbitrariamente tende a
ser difícil de se concretizar na vida real, e não apenas em razão dos valores
potencialmente relacionados a uma empresa que teve receita de US$ 16 bilhões
nos EUA no ano passado. Mais importante, a ditadura chinesa impõe e imporá
obstáculos a um negócio desse quilate.
Em meio à disputa geopolítica e econômica
entre as duas grandes potências e em ano eleitoral, a bandeira da segurança
nacional foi desfraldada para dar impulso ao projeto aprovado em questão de
dias pelo Legislativo —e que, de quebra, poderá favorecer as concorrentes
americanas do TikTok.
Argumentou-se que a ByteDance poderia manipular
informação e compartilhar dados sobre usuários americanos com Pequim,
o que a empresa nega fazer. Biden e seus sucessores poderão aplicar as mesmas
medidas a outros aplicativos de países tidos como hostis.
Referência global na adoção ampla e robusta
do princípio da liberdade de expressão, os EUA dão um exemplo draconiano e
perigoso no debate delicado e necessário da regulação das redes sociais. O
TikTok já está banido da Índia há
quatro anos, também sob o argumento da segurança nacional, que pode encontrar
eco na Europa.
A questão não está encerrada, de todo modo,
porque a plataforma indica que recorrerá à Justiça americana —na qual já obteve
vitória, em 2020, contra sanções então impostas por Donald Trump e depois
revogadas por Biden.
Será proveitoso examinar se as alegações do
mundo político a respeito da empresa chinesa justificam o sacrifício de valor
tão caro à democracia que orgulha o país.
Susp em prática
Folha de S. Paulo
Criado em 2018, sistema nacional e integrado
de segurança precisa sair do papel
Em vez de defender a
introdução do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) na Constituição,
o ministro Ricardo
Lewandowski, da Justiça, deveria se esforçar para colocar o modelo
em prática. Afinal, o chamado SUS da Segurança foi criado em 2018, pela lei
13.675, mas até hoje não saiu do papel
Ao instituir a Política Nacional de Segurança
Pública e Defesa Social, o Susp determina a articulação dos órgãos da Federação
que atuam no setor, padronização de estruturas e tecnologia, capacitação
continuada e qualificada, participação social e outras medidas hoje longe de
implementadas.
Está previsto, também, o aprimoramento da
investigação de crimes hediondos e homicídios, de fato precária num país onde
se esclareceram somente 1 em cada 3 assassinatos entre 2015 e 2021, de acordo
com levantamento da ONG Instituto Sou da Paz.
O diploma requer ainda o fortalecimento de
mecanismos de controle, como ouvidorias, além de transparência e integração de
informações, notadamente sobre armas e drogas —hoje, por exemplo, o Exército
demonstra descontrole sobre dados de armas furtadas.
O próprio policial também é objeto da norma.
Em janeiro de 2023, o governo sancionou mudanças na lei do Susp para incluir
políticas de saúde mental e de prevenção de suicídio para agentes de segurança.
Falta, contudo, que os estados executem as ações previstas.
Trata-se de tema fundamental. Por trás de
demandas corporativistas que norteiam a nova lei orgânica das polícias, está a
necessidade de valorizar o trabalho policial.
A segurança pública tem ocupado posição cada
vez mais relevante no rol de preocupações da população brasileira. Na maior
metrópole do país, 23% dos
paulistanos consideram que ela é o maior problema urbano. Estima-se
que o tema, apesar de estar mais atrelado a competências estaduais e federal,
será fundamental nas eleições municipais deste ano.
Cabe aos governos instituírem e coordenarem
políticas públicas baseadas em evidências, integradas, contínuas e de longo
prazo, sem se deixarem levar por populismo imediatista e eleitoreiro. O
Planalto poderia começar por reduzir a lista de pendências do Susp, em vez de
tentar reinventar a roda que nem sequer começou a girar.
A nova batalha da reforma tributária
O Estado de S. Paulo
Com a alíquota de referência do novo imposto
sobre bens e serviços enfim divulgada, parlamentares terão de ter ainda mais
cuidado para impedir um aumento da carga tributária
O governo finalmente enviou ao Congresso o
primeiro dos três projetos de lei que regulamentarão a reforma tributária sobre
o consumo, promulgada no ano passado. Com a apresentação das regras gerais
sobre o funcionamento dos impostos que incidirão sobre bens e serviços, o
contribuinte finalmente saberá quanto, efetivamente, paga em impostos por cada
item que adquire, tarefa impossível dado o cipoal de normas que caracterizam o
atual sistema tributário.
Muitas das críticas que a iniciativa tem
recebido são descabidas, a começar pela alíquota final do novo Imposto sobre
Valor Agregado (IVA). Da forma como o governo elaborou a proposta, ela ficará
entre 25,7% e 27,3%, com média de 26,5%, o que renderia ao Brasil uma das
alíquotas mais altas entre os países que adotam o modelo do IVA.
Ora, em primeiro lugar, a carga tributária
sobre bens e serviços atual já é, em média, de 34,4%, considerando impostos
federais, estaduais e municipais. A diferença é que o novo sistema vai
proporcionar a recuperação de créditos ao longo da cadeia, o fim das cobranças
“por dentro” e a não cumulatividade de impostos, fundamental para garantir
competitividade à indústria nacional.
Tampouco são justas as reclamações sobre o
tamanho do texto, que soma 360 páginas e 499 artigos. Uma mudança tão profunda
quanto a proposta da reforma tributária aprovada pelo Congresso no ano passado
não poderia ter um resultado diferente, considerando a necessidade de
regulamentar os novos tributos e os regimes específicos para diversos setores
econômicos.
Algo a ser elogiado é a reduzida lista de
itens da cesta básica que terão direito à isenção de impostos federais. Pela
proposta do governo, serão apenas 15 produtos – arroz, feijão, leite, café e
açúcar, entre outros – que refletem o consumo dos mais pobres. Outros itens
terão desconto de 60% no valor dos tributos, como carnes, peixes, massas e
sucos.
Fato é que não há motivo razoável para manter
a isenção da lista atual, com mais 700 produtos, entre eles bacalhau, salmão e
nozes. A forma de devolução dos impostos pagos pelas famílias de baixa renda,
por meio de descontos automáticos nas faturas de água, esgoto e energia
elétrica, é uma medida acertada, que coloca o foco nos mais necessitados e
desestimula furtos e ligações clandestinas.
Há, no entanto, muitos temas com potencial de
gerar controvérsias e travar as discussões no Congresso. Um dos principais é o
Imposto Seletivo, que incidirá sobre itens supostamente danosos à saúde e
emissores de poluentes. Segundo propôs o governo, o tributo incidirá sobre
cigarros, bebidas alcoólicas, refrigerantes, embarcações, aeronaves, veículos e
bens minerais extraídos. O Executivo terá trabalho para manter a lista intacta,
uma vez que muitos desses setores são conhecidos pelas excelentes relações que
mantêm com os parlamentares.
Há pouco tempo para discutir a reforma no
Congresso, e o governo terá de reforçar sua articulação política para garantir
sua aprovação ainda neste ano, encurtado em razão das eleições municipais.
Embora a proposta entre em vigor apenas em 2033, o período de transição será
iniciado em 2026. Em 2025, no entanto, será preciso estabelecer normas
infralegais que dependem deste e de outros dois projetos, ainda a serem
enviados, que tratarão dos fundos regionais e do comitê gestor do Imposto sobre
Bens e Serviços (IBS), a ser administrado por Estados e municípios.
Agora que a alíquota de referência do novo
imposto foi finalmente divulgada, deputados e senadores terão de ter ainda mais
cuidado na análise do texto. Como a reforma é neutra sob o ponto de vista
arrecadatório, qualquer benesse adicional para um segmento específico, como a
inclusão de novos alimentos na lista de itens isentos da cesta básica,
aumentará o imposto pago pelos demais.
A diferença é que, na fase atual, o custo
político dessas decisões recairá sobre os parlamentares, e não mais sobre o
governo. Será um verdadeiro teste de fogo ao discurso oficial do Legislativo,
que se diz contrário a qualquer medida de aumento de impostos.
O ‘tarjetón’ de Maduro
O Estado de S. Paulo
Lula festeja ‘normalidade’ de uma eleição em
que tudo é feito para dar a vitória a Maduro, o que mostra sua pequenez moral
diante de gente que sabe distinguir uma ditadura quando vê uma
No café da manhã que teve recentemente com
jornalistas, o presidente Lula da Silva classificou de “extraordinária” a
decisão da oposição da Venezuela de se unir em torno de um candidato único para
disputar a eleição presidencial contra o ditador Nicolás Maduro. Lula parece
considerar que a suposta união da oposição em torno de uma candidatura é um
sinal de normalidade política. “Vai ter eleições, eu acho que vai ter
acompanhamento internacional sobre as eleições. É interesse de muita gente
querer acompanhar”, festejou Lula. E ele acrescentou, candidamente: “E se o
Brasil for convidado (como observador), o Brasil participará do acompanhamento
dessas eleições na perspectiva de que, quando terminar essas eleições, as
pessoas voltem à normalidade. Ou seja, quem ganhou toma posse e governa; quem
perdeu se prepara para outras eleições, como eu me preparei depois de três
derrotas aqui no Brasil”.
É preciso ser muito ingênuo, coisa que Lula
não é, para acreditar que as assim chamadas “eleições” na Venezuela são
normais, isto é, que “quem ganhou toma posse e governa” e “quem perdeu se
prepara para outras eleições”. Numa ditadura, caso da Venezuela, as eleições
são meramente protocolares, cuja serventia é apenas dar ares de legitimidade
democrática à manutenção do ditador no poder. Ou seja, já se sabe de antemão
que Maduro será “reeleito”.
Por esse motivo, ninguém na oposição
venezuelana realmente acredita que seja capaz de ganhar as eleições nem, muito
menos, que Maduro, se por um cataclismo fosse derrotado, entregaria
pacificamente o poder. Para resumir, a oposição não ganhará a eleição porque
democracia não há: os principais candidatos oposicionistas ou estão presos ou
foram impedidos de concorrer; não há imprensa livre nem Judiciário
independente; e o governo chantageia os eleitores pobres (quase a totalidade da
população) ameaçando retirar benefícios sociais caso não apoiem Maduro, isso
quando não manda suas milícias simplesmente aterrorizá-los.
Ou seja, mesmo sendo ditador, Maduro não dá
nenhuma sopa para o azar. Até mesmo a cédula de voto é feita para assegurar que
não haverá surpresas sobre o resultado da eleição de julho. Chamada de
“tarjetón”, por seu tamanho descomunal, a cédula apresenta a foto de Maduro
nada menos que 13 vezes, contra apenas uma do tal candidato único da oposição.
O próprio tirano, ao apresentar a cédula, fez blague: “Maduro tem 13 fotos.
Hegemonia. Candidato único. Ditadura”.
Ainda assim, a oposição vai participar da
campanha, e tudo indica que o fará não porque tenha qualquer esperança de
sucesso, mas como forma de ganhar palanque para denunciar a ditadura chavista.
Desse modo, a tal candidatura unificada da oposição é, na prática, uma
“anticandidatura”.
Isso requer coragem, a mesma que teve Ulysses
Guimarães, aqui no Brasil, ao apresentar-se como “anticandidato” à sucessão do
presidente-general Emílio Médici, em 1974. Como se sabe, a eleição era restrita
a um Colégio Eleitoral quase totalmente dominado pelo regime militar, que
apenas referendava o nome ungido pelos generais. Ulysses, claro, não tinha a
menor chance, mas não entrou na disputa para ganhar, e sim para ter algum
espaço para denunciar o regime.
Um discurso memorável selaria a
anticandidatura: “Não é o candidato que vai recorrer o país. É o anticandidato,
para denunciar a antieleição imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5
(Ato Institucional n.º 5, a norma mais repressiva da ditadura), submete o
Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo
habeas corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e
das empresas pela escuta clandestina e torna inaudíveis as vozes discordantes”.
E concluiu: “A inviabilidade da candidatura oposicionista testemunhará perante
a nação e perante o mundo que o sistema não é democrático”.
É, portanto, de estatura moral que se trata.
Nesse ponto, Lula é um anão perto de Ulysses e dos opositores venezuelanos –
que sabem distinguir muito bem uma ditadura quando estão diante de uma.
Vício centralizador
O Estado de S. Paulo
Ministro quer mais poder à União na
segurança, mas mudar Constituição não garante resultado
O ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e
Segurança Pública) defendeu a revisão do modelo de segurança pública previsto
na Constituição, sugerindo maior centralização no Poder Executivo para a
definição de políticas e diretrizes nacionais na área. Ele quer atribuir à
União um “planejamento nacional de caráter compulsório para os demais órgãos de
segurança” e defende a constitucionalização do Sistema Único de Segurança
Pública (Susp), criado no governo de Michel Temer para servir como uma espécie
de SUS da Segurança. Abandonado no mandato de Bolsonaro e nomeado como
prioridade na gestão de Lula da Silva, o Susp, por ora, está malparado. Para o
ministro, o modelo instituído em 1988 é incompatível com os desafios trazidos
pelo crime organizado e, portanto, exige mudança constitucional, a fim de
evitar, por exemplo, a compartimentação das forças policiais.
Convém separar aí o que é um diagnóstico
correto do que pode resultar numa prescrição equivocada. O ministro acerta ao
pregar uma atualização das forças de segurança contra o modus operandi do crime
organizado, cujos tentáculos se dão em escala local, regional, nacional e
internacional. Seu diagnóstico é também uma forma de reconhecer o quão atrasado
está o governo federal ao lidar com a segurança pública – uma atribuição dos
governos estaduais, mas um terreno onde falta à União exercer seu papel de coordenação
nacional – e mais ainda no combate ao crime organizado. Não raro, especialistas
enxergam um governo perdido no assunto, da gestão histriônica de Flávio Dino à
discrição de Lewandowski.
Há mais, porém. O risco na pregação do
ministro é a adesão a duas tentações especialmente praticadas por governos
lulopetistas. A primeira é o vício da centralização federativa: a crença
inabalável que planejamentos nacionais, concebidos em Brasília e submetidos às
unidades da Federação, trarão eficiência, disciplina e bons resultados Brasil
afora. Não vão. Ainda que se reconheça a importância de diretrizes e premissas
nacionais, um país tão diverso requer adaptações e trabalho autônomo conforme
as realidades locais e regionais – e mais ainda na segurança, setor cuja
administração a Constituição sabiamente reserva aos governos estaduais.
O segundo vício tem a ver com a Constituição.
São históricas tanto a presunção de que basta enunciar leis para que os
problemas nacionais sejam resolvidos quanto a frequência com que alterações
constitucionais são propostas no País, o que ajuda a tornar a Constituição uma
peça sob constante emenda e retalho. Para dar vida prática ao Susp, por
exemplo, basta cumprir a lei que o criou e o regulamentou. Também não é preciso
emendar a Constituição para que o governo federal assuma seu protagonismo de
coordenação, respeitando – como acontece na Saúde e na Educação – as funções e
a autonomia federativa dos Estados. Da mesma forma, não há a necessidade de
constitucionalizar a atuação pactuada e coordenada das forças federais e
estaduais no enfrentamento do crime organizado.
Ademais, com as flagrantes dificuldades de
articulação do governo, o risco adicional é usar as naturais barreiras de votos
no Congresso para justificar a inação e a inépcia federal.
Congresso precisa evitar novas isenções na
reforma tributária
Valor Econômico
Parlamentares deveriam trabalhar para que não
haja proliferação dos regimes especiais ou o inchaço dos que estão na proposta
do Executivo
O sistema tributário nacional foi injusto,
regresssivo, difícil de operar, oneroso para se cumprir e repleto de lacunas
que levaram ao maior número de recursos judiciais imaginável. Chegou a hora da
verdade para ele. O Executivo apresentou na quarta ao Congresso as linhas
gerais do que serão o Imposto sobre Bens e Serviços (agregando ISS e ICMS), a
cargo de Estados e municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços, federal,
unindo PIS e Cofins. Há ainda dois projetos normatizando o conselho que vai gerir
o CBS e projeto de lei ordinário delineando o Fundo Nacional de Desenvolvimento
Regional. Será um tarefa complexa, tecnicamente difícil e politicamente
delicada. Setores que se beneficiaram das distorções do sistema anterior
tentarão obter vantagens para si, e os que viram seus interesses contrariados
pela promulgação da Emenda Constitucional 132 buscarão na regulamentação
modificar as regras.
Será a primeira reforma tributária do país
feita em um regime democrático, e, após mais de três décadas de discussões e
frustrações, chegou-se a um texto razoavelmente equilibrado, que ataca
frontalmente as mazelas das regras em vigor. São 499 artigos, 24 anexos e 360
páginas, guiados por uma lógica que percorre todas suas partes. A missão que
cabe ao Congresso agora é impedir que as emendas de todo tipo - mais de uma
dezena de projetos surgiram já antes da apresentação da proposta oficial -
desfigurem e desequilibrem o projeto original sem, no entanto, deixar de
acolher aprimoramentos possíveis que serão feitos.
A espinha dorsal da reforma não pode ser
quebrada. Ela prevê o fim da cumulatividade dos impostos, com os setores em
cada etapa do processo produtivo ou de serviços se creditando de impostos pagos
no estágio anterior, a mudança da tributação da origem para o destino e a
desoneração de investimentos e exportações. Para aparar as arestas políticas e
tornar a reforma viável no Congresso, foi estabelecido que as mudanças não
alterarão a carga tributária vigente, embora possa subir para determinados
segmentos e cair em outros. A grande disputa de interesses econômicos começa
aí.
O Executivo reduziu o desenho da cesta básica
nacional, com 15 itens que terão alíquota zero nos dois impostos, o federal e o
estadual. Mesmo retirando as dezenas de itens que tinham isenção - como salmão
e foie gras - a política ainda não é focada nas camadas mais pobres. O ideal
seria criar o sistema de cashback também para os itens básicos. Outra cesta de
14 produtos terá desconto de 60% da alíquota integral, na qual estão incluídos
carnes, peixes e crustáceos, além de óleos vegetais (exceto soja, isento).
Vários produtos que antes tinham isenção pagarão agora alíquota cheia, o que
desagrada à Frente Parlamentar da Agropecuária, que quer incluir mais produtos
com alíquota zero e é contra o cashback nos produtos que têm isenção de 60% da
alíquota.
O Imposto Seletivo, criado para desestimular
o uso de produtos prejudiciais à saúde e meio ambiente, tem potencial para
atrair tentativas de mudanças. Na categoria entraram veículos, aeronaves,
embarcações, bebidas alcoólicas e açucaradas, cigarros, petróleo, gás - e
também o minério de ferro, não muito explicado, mas de enorme potencial
arrecadador. O governo comete sério equívoco ao não incluir armas de fogo,
altamente nocivas, como objeto desse imposto. Alimentos ultraprocessados em
geral, mesmo com a discussão sobre os danos à saúde, ficaram fora, mas as
bebidas açucaradas foram contempladas, para revolta do setor.
As exceções criadas pelos regimes especiais
foram mais longe do que o pretendido pelos idealizadores da reforma, mas mesmo
assim, se permanecerem como estão, ainda são toleráveis. O governo estimava uma
carga tributária final em torno de 21%, mas os acréscimos feitos pelo Congresso
elevarão a média final. Os lobbies tendem a atuar para incluir mais setores
nesses regimes ou tentar criar novos regimes especiais. Um dos alvos pode ser o
setor de serviços, que terá redução de 30% da alíquota para 18 categorias
profissionais, entre elas advogados, arquitetos, engenheiros e economistas.
Quanto mais setores da economia forem
incluídos em regimes especiais, maior será a carga de impostos resultante. O
governo estima que do jeito que foi apresentado, o projeto tem alíquotas de
25,7% a 27,3%, com média de 26,5%. É uma das maiores cargas tributárias do
mundo, mas, ainda assim, reflete apenas aquilo que consumidores e empresas já
pagam no sistema vigente. O Congresso deve trabalhar para que não haja
proliferação dos regimes especiais ou o inchaço dos que estão na proposta do
Executivo.
Não está definida em detalhes a tramitação.
Há a proposta na Câmara de dois ou mais relatores, quando o ideal poderia ser
um, com a visão de conjunto do rumo das discussões e a pertinência das várias
emendas com o espírito que inspirou o projeto de lei complementar.
A reforma corre riscos, mas o exemplo dado pelo Congresso ao aprovar a emenda constitucional em dezembro indica que pode chegar a um final feliz. Apesar do mau momento por que passam as propostas do governo Lula no Congresso, os presidentes das Casas pretendem deixar como seu legado a mais importante reforma em décadas.
Meio ambiente e os direitos humanos
Correio Braziliense
Até esta sexta-feira, os manifestantes
protestam contra o Marco Temporal, que dificulta a demarcação de novas terras
indígenas, garantindo maior segurança jurídica aos produtores rurais
Muitos brasileiros desconhecem o chamado
Acordo de Escazú, nome de origem indígena, considerado o primeiro tratado
ambiental da América Latina e do Caribe. Em sua terceira edição, a reunião da
COP3 Escazú termina nesta sexta-feira (26), em Santiago, no Chile, com algumas
diretrizes, mas também com muitas dúvidas.
Entre outras funções, o Escazú visa garantir
a implementação dos direitos de acesso à informação, participação pública e
justiça ambiental, bem como o direito de ativistas e defensores dos direitos
humanos de viver em um ambiente saudável. No entanto, a implementação e a
participação ativa dos estados e cidadãos nesse processo ainda estão em
construção, dizem especialistas.
Desde segunda-feira, milhares de indígenas de
todas as regiões brasileiras participam de uma mobilização no Distrito Federal.
Na terça, uma marcha até o Congresso Nacional marcou a participação dos grupos
que lotaram o plenário da Câmara dos Deputados. Até esta sexta-feira, os
manifestantes protestam contra o Marco Temporal, que dificulta a demarcação de
novas terras indígenas, garantindo maior segurança jurídica aos produtores
rurais.
Tirando por base as mortes dos ambientalistas
Dom Phillips e Bruno Pereira, que tiveram repercussão mundial, há menos de dois
anos, o Brasil amarga o título de segundo país mais letal do mundo para
ativistas dos direitos humanos. Perde somente para a Colômbia.
Somente em 2022, foram 34 mortes de
defensores brasileiros do meio ambiente de um total de 177 em todo o mundo,
segundo a ONG Global Witness. Países latino-americanos concentraram 88% dos
assassinatos desses indivíduos. Segundo o levantamento, mais de 85% dos
assassinatos no período ocorreram na Amazônia, sendo a maior parte das vítimas
indígenas ou negros.
Ainda assim, apesar de sua relevância e de
ter sido assinado pelo Brasil em 2018, o Acordo de Escazú ainda não foi
ratificado pelo país. Está parado há 11 meses na Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aguardando aprovação.
Até agora, 16 países signatários tiveram seus acordos ratificados e parte
dessas nações está em fase de implantação de políticas que garantam a vida e o
exercício da cidadania por parte dos ambientalistas.
A impunidade é a principal característica que envolve os chamados "crimes de mando". A Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que, desde 1985, foram registrados 1.536 assassinatos no campo, dos quais apenas 47 foram a julgamento. Desse total, 39 mandantes e 139 executores foram condenados, o que acende um alerta de que a disputa por terras e a falta de fiscalização seguem imperando no país, colocando em risco a vida de comunidades minoritárias, como indígenas e quilombolas.
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