O Globo
Como o governo tentou dissimular suas reais intenções na gestão das contas públicas
Já não há como disfarçar. O esgarçamento do
quadro fiscal acabou tendo o desenlace que se temia. O relaxamento
da meta fiscal para 2025 foi a pá de cal que faltava. Foi
enterrada de vez a possibilidade de que o país ainda possa levar a sério o Novo
Arcabouço Fiscal.
Com o benefício da visão retrospectiva, pode-se dizer que, por meses, o Arcabouço funcionou como um biombo com o qual o governo tentou dissimular suas reais intenções na gestão das contas públicas. O presidente jamais escondeu de ninguém que, uma vez eleito, faria o possível para se livrar do Teto de Gastos. Mas, como isso exigiria extrair do Congresso uma emenda constitucional, seria preciso, pelo menos de início, manter as aparências.
O que o governo tinha em mente, de fato, era
poder atravessar o mandato presidencial sem nenhum esforço de geração de
superávits primários para fazer face ao pagamento de juros incidentes sobre a
dívida pública. Isso exigiria, claro, ano após ano, recorrer a endividamento
adicional em montante suficiente para pagar a totalidade da conta de juros.
Não faltou quem ponderasse que deixar isso
explícito, já de início, poderia pôr em risco a revogação do Teto de Gastos. E
que o mais prudente seria prometer algum esforço de geração de superávits
primários. No final de março do ano passado, ao anunciar o Novo Arcabouço
Fiscal, o governo comprometeu-se a manter o déficit primário em 0,5% do PIB em
2023, baixá-lo a zero em 2024 e convertê-lo em superávits de 0,5% do PIB, em
2025, e de 1% do PIB, em 2026.
Tais metas configuravam um esforço acumulado
de geração de superávits primários pífio, para dizer o mínimo: 1% do PIB ao
longo de quatro anos. Muito menos do que o requerido em um único ano para
manter a dívida estável como proporção do PIB. Mas o suficiente para convencer
o Congresso a revogar o Teto de Gastos e substituí-lo pelo Novo Arcabouço
Fiscal.
Não demorou muito, contudo, para que ficasse
claro que nem mesmo essas metas tão pífias o governo estava disposto a cumprir.
Na esteira da rápida deterioração da situação fiscal, a redução da meta de 2025
deverá ser seguida pelo relaxamento da meta de 2024.
Em vez do esforço acumulado de geração de
superávits primários de 1% do PIB, que lhe possibilitaria fazer face a uma
parcela irrisória dos juros incidentes sobre a dívida, tudo indica que o
governo deverá se permitir incorrer num déficit primário acumulado de mais de
4% do PIB ao longo do atual mandato presidencial.
Uma tremenda farra fiscal. Agora, sem
disfarces.
Os desdobramentos do descompromisso de Lula
da Silva com uma gestão fiscal responsável não ficarão limitados a seu mandato.
É até possível que, em 2026, seja eleito um presidente com a convicção e o
apoio parlamentar requeridos para repor o país no trilho da responsabilidade
fiscal. Mas, por enquanto, esse não parece ser o cenário mais provável.
Em meio à insana polarização política em que
o país está engolfado, não se pode descartar a possibilidade de que, na disputa
presidencial de 2026, o debate sobre política econômica volte a ser uma
reedição do deprimente torneio de populismo fiscal que se viu em 2022. É
difícil que um candidato de centro-direita consiga barrar a reeleição de Lula
sendo franco e explícito sobre o que precisa ser feito no front fiscal.
Ainda que, por vezes, pareça completamente
entregue ao autoengano, o que se convencionou chamar de “o mercado” percebeu,
afinal, que não será fácil resgatar o país do trem da alegria da
irresponsabilidade fiscal. Não é por outra razão que as taxas reais de juros
permanecem tão elevadas. E que incertezas que cercam decisões de investimento
continuam muito mais altas do que, a esta altura, poderiam ser.
Taxas reais de juros elevadas continuarão a
inviabilizar projetos promissores de investimento, a entravar o crescimento da
economia e a impor ao governo uma dinâmica da dívida pública especialmente
adversa. A conta da farra fiscal promete ser salgada.
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