sexta-feira, 26 de abril de 2024

José de Souza Martins - Éramos felizes e não sabíamos

Valor Econômico

Antes das redes sociais, nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana

Na entrega do anteprojeto do novo Código Civil ao Congresso Nacional, o ministro Alexandre de Moraes referiu-se a variadas transformações ocorridas na sociedade brasileira, novos tipos de contratualidade social, que o tornam necessário. Ressaltou “a questão de costumes, novas relações familiares, novas modalidades de se tratar das questões do direito de família e sucessões, a tecnologia, a inteligência artificial, novas formas de responsabilidade civil”.

Ele poderia ter arrolado muitas outras modalidades de relacionamento que expressam a realidade atualizada do país e sofreram câmbios significativos. Aos olhos dos mais antigos, bloqueados no meio do caminho das mudanças, a sociedade está tomada por crescentes anomalias, até mesmo inaceitáveis para muitos.

Uma ideologia repressiva e punitiva, de cada vez mais numerosas pessoas, já domina a formação de partidos e de bancadas partidárias nas casas do Congresso; domina novas “religiões” e até mesmo disfarça religiões em partidos políticos, o que viola a Constituição e as leis. Um conjunto extenso de metamorfoses sociais tornou a sociedade brasileira disfuncional e patológica.

As redes sociais tornaram-se não só poderosos instrumentos de difusão cultural e de democratização do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, diluíram e mistificaram a consciência crítica e reveladora dessas graves anomalias e transformações. O anormal passou a fazer parte da normalidade. A anomalia passou a ser concebida como um direito em nome do direito à liberdade de opção, mesmo que antissocial. O que motivava estranheza e repulsa tornou-se ódio, base ideológica de um programa de mudança para não mudar.

Sociedades atrasadas mudam relativamente depressa por impulso de fatores invisíveis. As causas da mudança eficaz que nos move mais rapidamente nem mesmo estão aqui. E as que estão aqui só muito lentamente se transformam em motivação e fator das mudanças sociais e políticas que carecemos. Estamos sempre em atraso com nossos carecimentos.

O desenvolvimento das tecnologias das redes sociais e a rapidez de sua disseminação são acompanhados pelo dedo indicador, mas não o são pelo cérebro, pela cultura e pela consciência. Esse descompasso abriu caminho para o poder de manipulação das consciências, à qual chegam os aproveitadores dessa fragilidade muito mais depressa do que o bom senso.

A criminalidade econômica, a política e a religiosa acrescentam-se rapidamente ao elenco de criminalidades que já ameaçavam as sociedades antes das redes sociais. O crime se moderniza antes da modernização da Justiça e o elenco de criminosos se dilata.

Há também as categorias sociais que não só não mudaram como radicalizaram suas antiquadas concepções de vida e dos valores que lhes são referências. Temos saudade do que nunca fomos, queremos voltar para onde nunca estivemos.

É o caso dos militares, cuja organização é estamental, de um passado que nunca teve um lá adiante atualizado à luz das mudanças sofridas pela sociedade, como se não fizessem parte dela. São movidos por carências suas e não da sociedade.

Já na ditadura militar, mas também recentemente, no bolsonarismo, deram evidentes indicações de grande dificuldade para aceitar e reconhecer as significativas mudanças sociais e políticas que iam na direção até mesmo de uma nova concepção de democracia. Socializados para fazer a guerra contra uma sociedade de inimigos imaginários, têm agido no sentido de reduzir a sociedade brasileira aos limites de uma cultura autoritária de quartel.

Também querem a volta a um passado que não houve, os grupos que encontraram nas religiões antidemocráticas e não só fundamentalistas mais do que um refúgio contra as tentações de satanás, uma fortaleza da mentalidade de guerra que os motiva. São os de religiões antirreligiosas de enquadramento dos pobres de espírito, que nas religiões do poder se sentem seguros contra as crescentes incertezas do mundo. Insurgem-se contra a necessidade de modernização das mentalidades.

Antes das redes sociais éramos felizes não porque delas não carecíamos. Nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana. Havia uma consciência clara do que era ser gente e do que não o era.

Não sabíamos que éramos felizes porque nos bastava a esperança do que éramos. Hoje achamos que somos felizes com o mundo fantasioso das redes sociais, mas já não sabemos o que somos. Elas desumanizaram o nosso mundo e o liquefizeram. Usurparam-nos a consciência da esperança. Trocaram nossa consciência possível por uma consciência meramente provável, o destino de todos como um mero e cinzento talvez.

 

 

 

Um comentário:

Ivaldo Ogata disse...

Muito esclarecedor. Tínhamos necessidades tão claras e objetivas. Vamos compartilhar essa lucidez para lembrarmos quem éramos e quem podemos voltar a ser.