quarta-feira, 17 de abril de 2024

Zeina Latif - Escolhas lá e cá

O Globo

Não existe almoço grátis. Essa frase popularizada pelo economista Milton Friedman se encaixa bem às restrições enfrentadas nas decisões econômicas. Ocorre que, especialmente na política, o que mais se busca é o almoço grátis, já que a fatura de erros de política econômica muitas vezes tarda ou não fica suficientemente clara para eleitores.

Um exemplo clássico são os limites para desequilíbrios fiscais sistemáticos e o persistente aumento da dívida pública (como proporção do PIB). Cedo ou tarde surgem os efeitos colaterais, na forma de inflação e juros mais elevados, e menor crescimento. Como resultado, a trajetória da dívida acelera ainda mais, podendo levar a cenários extremos (como calotes e o descontrole inflacionário).

Não há um número mágico a partir do qual o endividamento público torna-se perigoso. Depende da avaliação dos agentes econômicos quanto à capacidade e ao compromisso do governo de fazer o ajuste fiscal e reverter a alta da dívida – quanto maior a diferença entre a taxa de juros que incide na dívida e a taxa de crescimento do país, maior o esforço necessário. Assim, a tentação para muitos governantes é de empurrar o problema com a barriga enquanto tentam convencer os agentes econômicos da seriedade de seus propósitos.

Países mais arrumados institucionalmente, que têm maior crescimento e/ou juros menores, têm maior espaço para se endividar. Mas até entre os países ricos o problema fiscal se tornou mais agudo, especialmente após o forte aumento de gastos na pandemia, com diferentes respostas dos países.

Em 2020, a zona do euro (ZE) ampliou seu déficit primário (exclui o pagamento de juros) em 6,5 pontos percentuais para 7,1% do PIB. Os EUA foram mais ousados, com alta de 8,4 pp, que fez o déficit atingir 14% do PIB, segundo o FMI. Como resultado, o salto na dívida pública bruta foi mais expressivo nos EUA. Não é coincidência que a inflação naquele país acelerou primeiro.

Desde a pandemia, o esforço fiscal da ZE tem sido maior, mesmo em meio às graves consequências do conflito Rússia-Ucrânia na economia. O déficit primário caiu para menos de 2%, contribuindo para a queda do endividamento.

O Conselho Europeu, que define a agenda política do bloco, defende a consolidação fiscal. Não visa apenas reforçar a sustentabilidade fiscal, mas também reconstruir reservas orçamentárias, necessárias frente aos desafios futuros, como transição energética, transformação digital e defesa.

A região sofreu mais o choque inflacionário da guerra (a inflação ao produtor chegou a 41% ao ano em meados de 2022 ante 18% nos EUA), mas conseguiu trazer a inflação ao consumidor para 2,4% ao ano (a meta do Banco Central Europeu é 2%), depois do pico de 10,6% em outubro de 2022. Isso com um menor sacrifício em termos de alta dos juros e com mais chances de cortá-los em breve.

Nos EUA, depois do desmonte de políticas de socorro da pandemia, o crescimento dos gastos segue forte, na esteira de vários programas governamentais, e o déficit primário está em 6% do PIB. A preocupação com o desequilíbrio fiscal está praticamente ausente no discurso do tesouro americano. Não surpreende a inflação mais teimosa (3,5%) adiando a perspectiva de relaxamento monetário pelo Fed.

Essas diferentes experiências deveriam ser alertas para o governo brasileiro, que insiste em desafiar a lei da gravidade.

Já não havia efetiva expectativa de ajuste fiscal – o anúncio do arcabouço fiscal e das metas primárias em 2023 não chegaram a produzir melhora nas projeções fiscais dos analistas. Agora, a sequência recente de más notícias revela a dificuldade do time econômico de defender a disciplina fiscal, e ainda mais de trazer a necessária agenda do controle dos gastos.

A má reação dos mercados à mudança das metas fiscais, logo após a medida oportunista para criar mais espaço para gastar este ano, pode revelar uma corrosão da credibilidade do time econômico. Ainda que fatores externos sejam combustível para azedar o humor de investidores, a maior reação aqui é importante alerta.

A mudança de percepção quanto ao compromisso fiscal do governo é mais uma dor de cabeça para o Banco Central, especialmente para seu futuro presidente, que lidará também com o desafio de construir sua própria reputação.

O caminho para 2026 está sendo construído, e o escolhido pelo governo pode parecer mais fácil, mas é mais arriscado.

 

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