segunda-feira, 22 de julho de 2024

Bruno Carazza - O pente fino e o faroeste fiscal

Valor Econômico

Para além de bloqueios e contingenciamentos, há um problema fiscal solenemente ignorado no Brasil

Pressionado por uma situação fiscal difícil, com o arcabouço fazendo água e em meio a uma avalanche de memes divulgados à direita e à esquerda criticando seu “ajuste pelo lado da receita”, Fernando Haddad e sua equipe econômica divulgam nesta segunda-feira sua proposta de bloqueios e contingenciamentos para tentar atingir a meta de déficit zero até o fim do ano.

Alguns números já foram antecipados, mas não é bom esperar nada de estrutural sendo anunciado, para além de medidas paliativas e o engodo do “pente fino” em despesas, esse emplasto utilizado pelos políticos quando não querem se indispor com cortes efetivos nos gastos.

Em debate realizado no dia 2 de julho na Fundação Dom Cabral, em São Paulo, um grupo de especialistas foi convidado a discutir um dos principais itens da despesa pública brasileira: a folha de pagamentos do funcionalismo.

O Estado brasileiro enfrenta um paradoxo: tem proporcionalmente menos servidores do que países desenvolvidos, mas as despesas com servidores são maiores do que a média de nações avançadas e em desenvolvimento.

Para além dessa distorção, como apontou a jornalista Renata Lo Prete, mediadora do evento, o debate sobre a eficiência do Estado se faz ainda mais necessário num momento em que os recursos estão mais escassos do que já foram em outros tempos.

Segundo o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, a questão do tamanho do Estado brasileiro levanta uma série de reflexões. “A captura não é apenas de grandes empresas que fazem lobby e corrompem o nosso Estado, ela acontece por dentro também”, referindo-se ao corporativismo de certas carreiras do Estado.

Para Arminio, chama a atenção no Brasil a ausência de uma arquitetura institucional que impeça o que ele se refere como “efeito escada” - mecanismo em que sempre que uma categoria consegue uma vantagem as demais se mobilizam para obter ganhos equivalentes. “O Judiciário consegue um benefício, o Ministério Público corre atrás. Ou auditores da Receita ganham um bônus e os analistas do Banco Central querem também”, exemplifica.

Na visão de Arminio, da mesma forma que o Estado precisa medir os efeitos das políticas públicas e dos benefícios fiscais para o setor privado, é fundamental também que se estabeleça uma política de avaliação dos servidores. Ele acredita ser possível conceber um sistema transparente, com direito de defesa e blindado contra perseguições políticas, sem ser complacente com a baixa produtividade.

Segundo Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, para muitas entidades representativas das carreiras da elite do funcionalismo público a estrutura do Estado passou a ser um fim em si mesmo. Ao manobrarem as instâncias decisórias em benefício próprio - a imagem utilizada por ela foi de um “faroeste orçamentário” - essas categorias estão corroendo a legitimidade de suas respectivas instituições ao se afastarem do atendimento das reais necessidades da sociedade à qual servem.

Na visão da procuradora, é preciso resgatar os papéis de planejamento, execução e controle das ações do Estado sob a lógica do “público feito em público”. Para Graziane, é preciso uma ordenação legítima das prioridades nacionais, para se evitar a captura do orçamento por grupos de interesses e a perenização das desigualdades sociais.

Em termos de ganhos fiscais, haveria espaço para se reavaliar a real demanda por diversos cargos que não se fazem mais necessários pelo avanço da tecnologia e mesmo pelos ganhos de escala que poderiam ser obtidos evitando-se a multiplicação de estruturas estatais dispersas em mais de 2000 municípios com população diminuta.

Já para a professora e pesquisadora em Administração Pública Gabriela Lotta, da Fundação Getulio Vargas, a discussão sobre reforma administrativa no Brasil não pode ficar presa aos argumentos simplificadores daqueles que demonizam o Estado ou de quem o defende sem nenhum senso crítico.

Para Gabriela, é fundamental entender a gritante diferença entre uma pequena elite que fura o teto do funcionalismo (R$ 44.008,52 por mês), enquanto 70% dos servidores públicos brasileiros recebem menos de R$ 5 mil mensais. “Qualquer proposta de reforma precisa levar em conta essa discrepância, em que uma pequena fração de privilegiados contamina a imagem de uma maioria que, na base, presta serviços diretos para a população sem uma remuneração adequada”, alerta.

Lotta chama atenção para a necessidade de quebrarmos o paradoxo de que, em nome de instituições fundamentais para a democracia e a sociedade brasileira - como o Poder Judiciário, o Legislativo e órgãos como Tribunais de Contas, advocacia pública, Receita Federal e Banco Central, por exemplo -, seus servidores garantem para si vantagens desconectadas da realidade brasileira. E nesse sentido é fundamental recuperar a autoridade do teto remuneratório.

Para além do embate entre quem defende um Estado menor ou maior, Lotta defende que é possível avançar em direção a um serviço público melhor.

Se tiver a ousadia de enfrentar essa questão, o governo Lula pode sair das cordas, apanhando do mercado, dos memes e de boa parte do eleitorado. Mas é preciso ter coragem.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade.

Anônimo disse...

Gabriela Lotta tem muita razão: "a gritante diferença entre uma pequena elite que fura o teto do funcionalismo (R$ 44.008,52 por mês), enquanto 70% dos servidores públicos brasileiros recebem menos de R$ 5 mil mensais."