Folha de S. Paulo
Ato do presidente revela tanto o risco da
insistência quanto a impotência ante o populismo
O ato de contrição final das cinco décadas de
carreira política de Joseph Robinette Biden Jr. não poderia ser mais
melancólico, até por inevitável.
Isolado devido à Covid-19, ele comunicou ao
mundo que deixa a corrida presidencial contra um reenergizado Donald Trump a
meros 107 dias do pleito —nunca antes isso havia ocorrido tão perto da eleição.
A desistência demonstrou duas coisas.
Primeiro, que líderes precisam saber a hora de parar, por bem ou mal. O Partido
Democrata não se renovou. Biden, 81, demorou três agônicas
semanas para render-se ao óbvio.
Isso pode lhe custar caro: se não resolver lançar um George Clooney, para ficar no ator que simbolizou o grito pela saída de Biden, a missão de derrotar Trump ficará ou com a anódina vice, Kamala Harris, ou algum dos governadores não testados da sigla.
Biden já ungiu Kamala, pedindo que ela seja a
cabeça de chapa. Deverá ter o desejo aceito, mas sempre há o risco de o
movimento crescente dos democratas que pediam a cabeça do candidato tornar-se
uma conflagração maior na convenção do partido.
Em princípio, Kamala seria um ótimo nome:
mulher, negra, origem asiática. Mas sua atuação foi, ao longo dos quatro anos
com Biden foi apagada, para dizer o mínimo. Ainda assim, já está dentro do
sistema, e poderá ser reforçada por alguém como Josh Shapiro, 51, o jovem
governador da Pensilvânia —estado em que Trump foi atacado a tiros na semana
retrasada.
A rapidez com que a sucessão for determinada
é crucial. Em 1972, quando o candidato a vice Tom Eagleton desistiu após ser
revelado que ele se submetera a eletrochoques, a decisão foi expedida pelos 200
membros do comitê nacional do partido.
Se a briga for para o chão de fábrica dos
delegados, com votações e debates extensos, poderá ser o caminho para uma
derrota deveras democrática. Mas o jogo não está jogado: o atentado
contra o republicano deu um gás renovado à sua postulação.
Houve alguma flutuação positiva em pesquisas, mas não uma corrida de eleitores
em seu favor.
Aqui entra uma segunda lição do traumático
episódio atual, que só tem paralelo em seis outros casos na história, o mais
recente quando o também democrata Lyndon
Johnson jogou a toalha após ver os EUA se cindirem enquanto
guerreava no Vietnã, em 1968.
A política tradicional está tão atordoada
quanto Biden ao enfrentar
a avalanche de mentiras do rival no fatídico debate. É uma
lição que fica para líderes em situação análoga mundo afora, a começar por Lula
(PT).
Se é óbvio que o presidente perdera condições
políticas de continuar e que sua cognição
está bem aquém do que a opaca Casa Branca deixou transparecer,
é fato também que é preciso uma forma mais dinâmica de combater o populismo.
Se confirmada a nova chapa, a juventude de
Kamala, aos 59 anos, reforçada por um vice de estado-pêndulo ainda mais jovial,
reabre as chances dos democratas. Os primeiros sinais de apoio são
encorajadores para ela. Mas não será nada fácil.
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