Metópoles
Antonio Cicero viveu plenamente com lucidez, afeto e dignidade até o seu último momento
É lamentável que o avanço técnico já permite prolongar a semivida dependendo de aparelhos, mas ainda não temos avanço moral para permitir cada pessoa escolher se quer interromper esta semivida artificial do corpo sem consciência, sem autonomia, sem vida plena, sem criação, transmitindo sacrificios em vez de afeto aos familiares. Também lamentável, as crenças religiosas aceitarem a ciência enfrentando a Deus ao prolongar semivida artificial, mas considerem pecado uma pessoa escolher terminar seu sofrimento no momento em que a vida fica insuportável e deixa de ser plena. Dificil considerar a vontade de Deus condenando uma pessoa à vida que ficou insuportável e por isto, com a lucidez que Deus ainda lhe deixa, decida interromper o sofrimento em alguns dias ou meses, antes que ela chegue naturalmente. Quem está mais perto de Deus, a ciência que prorroga o sofrimento de uma vida artificial ou a moral e a lei que permite ao doente usar seus últimos dias com lucidez para antecipar a morte com dignidade e sem dor?
Antonio Cicero viveu plenamente com lucidez,
afeto e dignidade até o seu último momento e ao mesmo tempo prestou um imenso
serviço ao chamar atenção para o atraso moral e a injustiça das leis que
impedem a interrupção do sofrimento. Para isto. ele precisou morrer fora de seu
pais, longe de quase todos familiares, amigos e admiradores, sem olhar a
paisagem que amava. O impedimento legal no Brasil condena as pessoas com
recursos a uma morte como refugiado moral, e condena aos que não têm recursos a
prolongarem suas vidas indesejadas e sofridas, que não desejam continuar.
A mensagem “descanse em paz” deveria ser
permitida como despedida a um amigo ainda em vida, quando ele não deseja
continuar sofrendo, sem memórias do passado, nem condições de fazer o que
deseja no futuro. Negar a realização deste desejo é insensibilidade, até
perversidade, daqueles que acusam quem teve a dignidade de interroper uma vida
que já não lhe satisfazia e lhe provocava sofrimentos; oufalta de percepção do
conflito contemporâneo entre o avanço técnico, que desafia a natureza e a moral
herdada de um tempo em que a data da morte era desígnio divino, independente da
ciência e do dinheiro para comprar seus aparelhos. Estranho que os muitos
críticos do direito à morte assistida se omitem diante das mortes por fome, por
falta de acesso à saúde básica, por bombardeios durante guerras. Aceitam que
multidões sejam mortas por omissão da sociedade, por prioridades equivocadas
dos governos, dentro da lei. Aceitam inclusive como justa e legal a pena de
morte imposta pela sociedade na luta contra o crime, mas não que uma pessoa
lúcida termine seu próprio sofrimento em uma semivida que não lhe interessa.
Antonio Cicero sentiu que perdera as
condições de usar sua vida para transformar a energia do mundo na criatividade
que continuaria a nos dar a alegria de sua poesia e o fascínio de suas
reflexões filosóficas; que perderia emp breve as memórias do passado e a
capacidade de viver plenamente o futuro; teve a lucidez e também a coragem de
antecipar por meses, no máxipmo alguns anos, o final definitivo depois de um
período sofrido; levantou a bandeira de luta para fazer-se legal e digno o
direito de antecipar a própria morte assistida, sem necessidade de um refugio
terminal em terra distante.
Obrigado Antonio Cicero por sua obra,
filosófica, literária e musical, e por sua obra existencial final. Provocou
tristeza, mas também entendimento, respeito e um desafio.
*Cristovam Buarque foi ministro, governador e
senador
2 comentários:
Muito bom!
Há o livre arbítrio de cada um,pena que a primeira decepção do letrista vai ser de que a vida é contínua,não termina com a morte biológica,terá de passar pela provação,agora piorada,do lado de lá,sem contar a sua próxima encarnação com sequelas do seu ato.
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