Folha de S. Paulo
Anomia é termo mais adequado do que
desequilíbrio mental para abordar o comportamento de Donald Trump
A imprensa norte-americana achou no mínimo estranho o comportamento de Donald Trump num evento em Pensilvânia, quando ele dançou sozinho durante trinta minutos. Houve quem fosse além, suspeitando do estado mental. E ele agora se diz "pai" de um método de fertilidade, sem que se saiba por quê. Kamala Harris, que agora o chama abertamente de fascista, perguntou se ele estaria mesmo bem da cabeça.
O episódio coincide com o lançamento de
"O Aprendiz", um filme biográfico nada confortável de Trump (ele
tentou proibir uma parte), que expõe sua formação com o pai e um mentor tóxico.
Prato cheio para analistas. Há quem enxergue no filme o ovo da serpente. Até
agora, as bizarrices do ex-presidente americano não tinham se aproximado
das considerações demenciais dirigidas ao presidente
Biden.
O governo de Trump foi costurado pelo fio da
barbárie ou pelo "progresso regressivo", designação de Theodor Adorno (em "Mínima Moralia"), para o
paradoxo civilizatório que transforma a racionalidade em loucura. Mas Trump
como indivíduo parecia normal.
É verdade que a aparência individual de
normalidade tem sido desmontada em relatos e documentários que enfocam não mais
os grandes mentores do Holocausto na Grande Guerra, mas os pequenos
executores, oriundos de setores diversos das classes médias, considerados
inocentes fantoches do Estado. Destacaram-se os recrutas de Hamburgo enviados à
Polônia em 1941/42, com a missão de fuzilar judeus.
Na época, ainda havia a opção de não participar, livre de punição. Mas a
maioria aceitava, sem convicções ideológicas ou ódio explícito, tornar-se
"Einsatzegruppe", os primeiros assassinos do Holocausto, antes dos
campos. Não eram monstros, eram pacatos pais de família, muitos com educação
superior. Entre nós, durante a primeira campanha, Bolsonaro pregava a execução de 30 mil pessoas pela
ditadura como profilaxia social. Nenhum de seus eleitores se chocou.
As explicações convencionais para a conversão à monstruosidade contornam a
hipótese de que a vida social pode funcionar sem consciência total de si mesma.
Ninguém liga para a razão profunda de suas crenças ou ações. Já no século 18 o
médico e filósofo francês La Mettrie indagava-se "como, dependendo de
tantas causas externas, nós poderíamos deixar de ser o que somos? Como
poderíamos consertar mecanismos que não conhecemos?" (em "Anti-Sêneca
ou o Soberano Bem"). O pensamento social preteriu o indivíduo em favor das
estruturas.
Trump já ameaça com campos de deportação para
imigrantes. Diante desse molde de medos primitivos e de apreensões novas, a
observação atém-se, porém, a macrodispositivos como capitalismo financeiro e
complexo industrial-militar, deixando de lado o problema de um indivíduo
anômico, isto é, alheio às leis, mas investido de poder decisório, com
majoritária legalidade eleitoral. Anomia é termo mais adequado do que desequilíbrio
mental para abordar o fenômeno. No poder, anomia é o suicídio do outro.
Coincidência é que a dancinha anômica de Trump tenha se reproduzido entre nós.
Primeiro, no incidente do DJ que bailava em frente a um desastre com vítimas.
Também, na passeata política que dançava à frente de uma ambulância. Jung
chamou isso de sincronicidade. Do mal, fique bem claro.
4 comentários:
" Entre nós, durante a primeira campanha, Bolsonaro pregava a execução de 30 mil pessoas pela ditadura como profilaxia social. Nenhum de seus eleitores se chocou. "
Óbvio que não vou questionar a passagem do colunista. Mas me lembrei de uma piadinha que era bastante comum até bem pouco tempo entre participantes da esquerda: " Stálin matou foi pouco ". Nenhum de seus eleitores se chocou.
😏😏😏
A piadinha é dos stalinistas. E o Josef, foi primeiro ministro, não teve eleitores...
Melhor informando...
https://www.ecured.cu/Julien_Offray_de_La_Mettrie
https://epicureandatabase.wordpress.com/2020/02/26/la-mettrie-anti-seneca/
https://thestandupphilosophers.co.uk/la-mettries-anti-seneca/
Beleza.
Vamos fingir que me referi ao contexto soviético, a ( supostos ) eleitores soviéticos e que a piadinha era contada apenas por stalinistas.
E os stalinistas eram obviamente participantes da Esquerda.
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