domingo, 27 de outubro de 2024

Dancinhas anômicas sem regência equilibrada – Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Anomia é termo mais adequado do que desequilíbrio mental para abordar o comportamento de Donald Trump

A imprensa norte-americana achou no mínimo estranho o comportamento de Donald Trump num evento em Pensilvânia, quando ele dançou sozinho durante trinta minutos. Houve quem fosse além, suspeitando do estado mental. E ele agora se diz "pai" de um método de fertilidade, sem que se saiba por quê. Kamala Harris, que agora o chama abertamente de fascista, perguntou se ele estaria mesmo bem da cabeça.

O episódio coincide com o lançamento de "O Aprendiz", um filme biográfico nada confortável de Trump (ele tentou proibir uma parte), que expõe sua formação com o pai e um mentor tóxico. Prato cheio para analistas. Há quem enxergue no filme o ovo da serpente. Até agora, as bizarrices do ex-presidente americano não tinham se aproximado das considerações demenciais dirigidas ao presidente Biden.

O governo de Trump foi costurado pelo fio da barbárie ou pelo "progresso regressivo", designação de Theodor Adorno (em "Mínima Moralia"), para o paradoxo civilizatório que transforma a racionalidade em loucura. Mas Trump como indivíduo parecia normal.

É verdade que a aparência individual de normalidade tem sido desmontada em relatos e documentários que enfocam não mais os grandes mentores do Holocausto na Grande Guerra, mas os pequenos executores, oriundos de setores diversos das classes médias, considerados inocentes fantoches do Estado. Destacaram-se os recrutas de Hamburgo enviados à Polônia em 1941/42, com a missão de fuzilar judeus.

Na época, ainda havia a opção de não participar, livre de punição. Mas a maioria aceitava, sem convicções ideológicas ou ódio explícito, tornar-se "Einsatzegruppe", os primeiros assassinos do Holocausto, antes dos campos. Não eram monstros, eram pacatos pais de família, muitos com educação superior. Entre nós, durante a primeira campanha, Bolsonaro pregava a execução de 30 mil pessoas pela ditadura como profilaxia social. Nenhum de seus eleitores se chocou.

As explicações convencionais para a conversão à monstruosidade contornam a hipótese de que a vida social pode funcionar sem consciência total de si mesma. Ninguém liga para a razão profunda de suas crenças ou ações. Já no século 18 o médico e filósofo francês La Mettrie indagava-se "como, dependendo de tantas causas externas, nós poderíamos deixar de ser o que somos? Como poderíamos consertar mecanismos que não conhecemos?" (em "Anti-Sêneca ou o Soberano Bem"). O pensamento social preteriu o indivíduo em favor das estruturas.

Trump já ameaça com campos de deportação para imigrantes. Diante desse molde de medos primitivos e de apreensões novas, a observação atém-se, porém, a macrodispositivos como capitalismo financeiro e complexo industrial-militar, deixando de lado o problema de um indivíduo anômico, isto é, alheio às leis, mas investido de poder decisório, com majoritária legalidade eleitoral. Anomia é termo mais adequado do que desequilíbrio mental para abordar o fenômeno. No poder, anomia é o suicídio do outro.

Coincidência é que a dancinha anômica de Trump tenha se reproduzido entre nós. Primeiro, no incidente do DJ que bailava em frente a um desastre com vítimas. Também, na passeata política que dançava à frente de uma ambulância. Jung chamou isso de sincronicidade. Do mal, fique bem claro.

 

4 comentários:

Mais um amador disse...

" Entre nós, durante a primeira campanha, Bolsonaro pregava a execução de 30 mil pessoas pela ditadura como profilaxia social. Nenhum de seus eleitores se chocou. "

Óbvio que não vou questionar a passagem do colunista. Mas me lembrei de uma piadinha que era bastante comum até bem pouco tempo entre participantes da esquerda: " Stálin matou foi pouco ". Nenhum de seus eleitores se chocou.

😏😏😏

Anônimo disse...

A piadinha é dos stalinistas. E o Josef, foi primeiro ministro, não teve eleitores...
Melhor informando...
https://www.ecured.cu/Julien_Offray_de_La_Mettrie

https://epicureandatabase.wordpress.com/2020/02/26/la-mettrie-anti-seneca/
https://thestandupphilosophers.co.uk/la-mettries-anti-seneca/

Mais um amador disse...

Beleza.

Vamos fingir que me referi ao contexto soviético, a ( supostos ) eleitores soviéticos e que a piadinha era contada apenas por stalinistas.

Anônimo disse...

E os stalinistas eram obviamente participantes da Esquerda.