Revista Será?
Há algo que se move sob nossos pés e que
parece se manifestar nessas eleições municipais de 2024, gerando certo
desconcerto. Trata-se de um movimento que não é evidenciado em discursos
eleitorais, manifestos políticos ou mesmo em “cartas ao povo”. Ele se expressa,
agora, no posicionamento do eleitorado mais pobre sancionando candidatos da
extrema-direita, especialmente nas grandes cidades, embora nossa história
recente não o desconheça por completo, pois ele havia anteriormente se
inclinado para o outro lado do espectro político.
É um movimento que não vem de agora e que ainda não encarnou em nenhum ator político específico, embora seja instrumentalizado a cada contenda eleitoral. Antes inclinado à esquerda, mas não reivindicando nenhuma organicidade, hoje ele sofreu, ao que tudo indica um deslocamento integral, tomando um rumo invertido nas últimas eleições. Não surpreende então que notórios intelectuais de esquerda tenham julgado esse deslocamento como um fenômeno de inconsciência ou simplesmente como uma questão comunicacional, já que implicou na perda de uma massa significativa de eleitores.
Entretanto, seria um erro tratar o problema a
partir da clivagem esquerda versus direita, como esse fenômeno parece se
expressar eleitoralmente. Uma percepção mais acurada nos leva primeiramente a
pensar esse fenômeno como uma mostra do nosso tempo. Não foi só aqui que ele se
manifestou. Contudo, seria deselegante com os fatos não indicar que ele sempre
foi parte da luta pela democracia e pela construção de uma democracia de massas
a incorporação, não somente pelo voto, de amplas camadas populares à vida política.
Naquele contexto, o avanço da democratização
significou luta e conquista de direitos sistematizados numa chave de matriz
híbrida: meio europeia, meio americana. O que quer dizer que a democracia
política se solidificava com lideranças e partidos políticos de perfil
republicano digladiando-se pelo espaço e pela promoção de politicas públicas.
Essa configuração andou de par em par com as expectativas das classes
subalternas de terem seus interesses atendidos pelo Estado. Nesse percurso, as
forças da democracia se dividiram, com parte buscando avanços institucionais,
em nome do “social”, e outra parte procurando expressar diretamente a explosão
dos interesses das classes subalternas, rechaçando quaisquer alianças
políticas. Como sabemos, foi essa última fração das forças democráticas que
prosperou, avançou e se metamorfoseou conforme as posições institucionais que
seguiu ocupando.
Entretanto, dela não viria nem o “assalto aos
céus”, nem a revolucionária chegada à “Estação Finlândia”, tampouco a hegemonia
dos “de baixo”, com a imposição de um “conselhismo” à la década de 1920, ou
mesmo a descida dos “barbudos” da “Sierra Maestra”, com suas referências
ligeiras e retóricas a um “Gramsci sem Maquiavel” embebido no espírito narodnik da
Teologia da Libertação, como escreveu Luiz Werneck Vianna. Nada disso poderia
ser adotado com sucesso diante do cenário social que havia se formado, por um
lado, com a modernização acelerada do regime autoritário e, por outro, com um
processo de democratização que deu vazão a um individuo apenas apaixonado por
seu interesse. Reconhecido como foi, era esse tipo de interesse vindo dos “de
baixo” que deveria se expressar politicamente e isso foi feito principalmente
pelo PT. Juntamente com a reorganização de massas, dos sindicatos, das
associações de todo tipo, dos movimentos sociais urbanos e rurais, etc.,
um ethos passou a se manifestar incisivamente, reivindicando por
todos os quadrantes a sua demanda: “eu quero o meu!”. Era a essência do
liberalismo dos “de baixo” pedindo passagem.
Esse movimento, visto e sentido como
expressão natural, foi se tornando hegemônico, mas sem a direção política de um
ator. O PT lhe deu passagem e o controlava minimamente, mas não o dirigia. No
interior dessa agremiação se entendeu, de forma instrumental do ponto de vista
eleitoral, que o sistema da ordem mais a fabulação retórica da desordem
poderiam dar conta dele para todo o sempre.
Contudo, o tempo das fabulações se esgotou.
Aportamos definitivamente. Aqui e agora não é mais crível lançar mão de nenhuma
miragem do futuro. Nosso liberalismo não pode mais reiterar o espírito
pretérito das oligarquias, mas também não pode se contentar em ser “um arremate
do longo processo de imposição da hegemonia da ordem privada” (Werneck Vianna),
sem conquistar corações e mentes. Tampouco pode seguir como uma expressão
travestida de personalismo e identitarismo que nos governou e nos governa politicamente,
com pretensões de representação das classes subalternas. Esperando por novas
gerações, nosso liberalismo não consegue ainda ser um liberalismo político à la
Rawls porque – para ser generoso – tem rarefeitos intelectuais de vocação
pública dessa estirpe e não tem, efetivamente, políticos com tal embasamento.
Sem a organicidade que se demanda
classicamente, por meio do protagonismo de uma classe que o encarne, nosso
liberalismo agora vem “de baixo” via Pablo Marçal e cia. Sem interpelação da
política democrática esse liberalismo que, desavergonhadamente desce às
profundezas do mundo dos interesses, quer agora se despir de todas as vestes
ideológicas ou mesmo retóricas. Para uma esquerda que sempre se recusou a
qualquer compromisso ou aliança com os liberais, com vistas à construção de uma
civilização democrática, essa descoberta é avassaladora (não à toa só se fala
na sempre renegada “frente ampla”). No passado, foi possível vociferar, como
reforçava o ex-ministro José Dirceu, que o projeto político do PT era “governar
o Brasil”. Agora, tudo indica, que isso não será mais possível, pelo menos na
forma como ele pensava. O que se move sob nossos pés parece ir agora em outra
direção.
Em suma, trata-se de ilusão imaginar que a
derrota da esquerda nessas eleições seja uma questão comunicacional ou de
inconsciência das classes subalternas. A esquerda está desafiada a enfrentar o
problema em outros termos, revendo e refletindo seriamente sobre sua história
mais recente e não simplesmente “atualizando o seu discurso”, como diz a maior
parte da mídia. Não é surpresa nenhuma que o candidato Boulos ainda continue
trabalhando com o diagnóstico de que a “extrema direita soube passar uma mensagem
mais sedutora”.
A esquerda tem diante de si não uma corrida
de 100 metros, mas sim uma maratona para se vencer. “Hic Rhodus, hic salta!”,
essa é a senha do realismo político na ferina língua de Karl Marx. Subterfúgios
não servirão de nada.
*Alberto Aggio é Professor Titular de
História da América Latina contemporânea na UNESP, campus de Franca.
Um comentário:
Muito bom! A Esquerda tem que se atualizar. O diretório nacional do PT se apressou em chancelar a vitória de Maduro logo após a divulgação do resultado "oficial" enquanto a contagem nem havia terminado. Agora, que o governo de Maduro acusa Lula de forjar o acidente em que sofreu queda grave no banheiro, o diretório do PT vai também apoiar esta outra mentira do governo venezuelano?
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