quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Operação contra golpistas contribui para a democracia

O Globo

PF aponta vínculo entre militares de alta patente e plano para assassinar Lula, Alckmin e Moraes

São extremamente graves os fatos narrados pela Polícia Federal na investigação do plano de militares das Forças Especiais do Exército (apelidados “kids pretos”) para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, depois da vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro em 2022.

Foram presos pela PF quatro militares de alta patente e um policial federal. A prisão do general da reserva Mário Fernandes, secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, leva as investigações à antessala da Presidência da República. Fernandes foi ministro interino e, diz a PF, imprimiu dentro do gabinete da Secretaria no Planalto um documento com o sugestivo nome Punhal Verde Amarelo, em que se tramava envenenar Lula e Alckmin.

Entre os fatos investigados, estão mensagens enviadas por Fernandes ao então comandante do Exército, general Freire Gomes, pedindo adesão ao plano — a tentativa foi rechaçada. Em delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, afirmou que Fernandes defendia um golpe de Estado para mantê-lo no poder. Uma de suas funções na trama descrita pela PF era obter adesões nas Forças Armadas. De acordo com as investigações, Cid e outros militares se reuniram em 12 de novembro de 2022 na casa do general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro, para tratar do plano golpista.

A trama previa, ainda segundo a PF, o assassinato das autoridades no dia 15 de dezembro de 2022, seguido pela instalação de um Gabinete Institucional de Gestão de Crise, sob o comando dos ex-ministros Braga Netto e Augusto Heleno. Os golpistas, diz o relatório policial, planejavam usar fuzis, pistolas, metralhadoras, lança-granadas, lança-rojões e armamentos de guerra.

Naquele período, o país vivia momento conturbado, com protestos contra a vitória de Lula exigindo que as Forças Armadas assumissem o poder. “A organização criminosa investigada tinha o objetivo de incitar parcela da população ligada à direita do espectro político a resistir na frente das instalações militares para criar ambiente propício ao golpe de Estado”, diz a PF. O inquérito apresenta indícios de que Fernandes era o elo entre o núcleo palaciano e golpistas acampados diante do quartel-general do Exército em Brasília. Felizmente, o plano não foi adiante, pois o Alto Comando das Forças Armadas não embarcou na aventura.

Foi um avanço que as investigações tenham chegado aonde chegaram. Agora precisam ir até o fim. É fundamental esclarecer se Bolsonaro tinha conhecimento ou se tomou parte no golpe urdido dentro do Palácio do Planalto. Independentemente disso, todos os militares ou civis que tiverem conspirado contra o Estado de Direito precisam responder por seus atos. Não pode haver exceções nem anistia para crime de tamanha gravidade. Por óbvio, as apurações devem ser feitas com serenidade, e aos acusados deve ser garantido amplo direito de defesa.

Sobretudo, é preciso sublinhar que a minoria golpista não representa os militares. Ficou evidente pelo desenrolar dos fatos que, quando confrontadas com a tentativa de golpe, as Forças Armadas seguiram a Constituição. Tal atitude, assim como a investigação que chegou aos golpistas, são sinais de maturidade da democracia brasileira.

Novas regras para as emendas parlamentares são insatisfatórias

O Globo

Elas têm lacunas em transparência, prejudicam responsabilidade fiscal e não encerram conflito institucional

O projeto aprovado no Congresso para regulamentar emendas parlamentares é insatisfatório. Apesar de trazerem avanços, as regras impostas continuam deixando a desejar em termos de transparência. Entre os avanços, elas preveem a fiscalização regular do Tribunal de Contas da União, priorizam obras de caráter estruturante para tentar reduzir a destinação paroquial das verbas e mudam critérios para emendas enviadas ao caixa de municípios e estados, as “emendas Pix”. A partir da sanção da lei, os autores dessas emendas e o destino do dinheiro deverão ser identificados. Tudo isso não bastará, porém, para garantir a transparência desejável.

Embora em toda democracia haja dispositivos constitucionais para os parlamentares destinarem recursos a suas bases, as emendas no Brasil se tornaram uma aberração pelo vulto que assumiram. Nos últimos dez anos, cresceram quase 550% em termos reais e hoje representam cerca de 20% das despesas livres da União, parcela sem paralelo em qualquer lugar do mundo. Em geral, resultam em mau uso do dinheiro público, pois a lógica do parlamentar é paroquial. Deputados e senadores com mais poder conseguem canalizar volume maior de dinheiro a suas bases eleitorais. Perdem os locais mais necessitados ou sem poder de pressão.

Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as “emendas do relator”, por omitirem o parlamentar responsável pelo destino da verba — um incentivo à corrupção. Imediatamente os congressistas encontraram outra saída para alocar recursos segundo critérios políticos: as “emendas de comissão”, que também não identificam os parlamentares responsáveis e saltaram de R$ 474 milhões em 2022 para R$ 15 bilhões neste ano. Pelo texto aprovado no Congresso, elas continuarão uma caixa-preta, pois as novas regras não obrigam a identificação.

Além disso, o Parlamento deu as costas ao compromisso de responsabilidade fiscal. Ainda que tenha imposto limites ao crescimento das emendas, nem cogitou reduzir o total a patamares compatíveis com o resto do mundo. Na votação do Senado, caiu o trecho que permitia ao governo bloquear o pagamento quando a despesa aumenta. Foi mantido apenas o poder de contingenciar, aplicável quando há queda na receita, algo mais raro.

Por fim, ao votar o projeto, o Congresso violou itens do acordo firmado no final de agosto entre representantes de Legislativo, Executivo e Judiciário. O encontro de quatro horas em Brasília há exatos três meses foi um sinal de maturidade depois das duas semanas de choque institucional que sucederam a suspensão do pagamento das emendas pelo Supremo. É certo que nem tudo o que foi acordado foi negligenciado. Mas agora, quando trechos do texto forem contestados no Supremo — e decerto serão —, é muito provável que sejam barrados, por contradizerem os princípios constitucionais que deveriam norteá-lo, transparência, moralidade e publicidade. O conflito institucional deverá se prolongar.

Brasil consegue consensos possíveis no comando do G20

Valor Econômico

Embora o saldo final do G20 possa ser visto como positivo para o país, o governo Lula deve se preparar para um cenário bastante distinto ao sediar a COP30 no ano que vem

A presidência do Brasil no G20 terminou com um saldo positivo dentro do espaço curto de possibilidades de consenso, em um cenário internacional conflagrado por guerras, tensões e disputas ideológicas que impedem acordos sobre temas urgentes que deveriam ser prioridades de todos. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva obteve resultados concretos em uma das prioridades estabelecidas, o combate à fome e à pobreza, um feito a se comemorar, e avanços mais tímidos que as ambições expressadas em outras - a taxação de grandes fortunas, o financiamento para combater as mudanças climáticas e a reforma da governança global.

A declaração final divulgada na noite do primeiro dia do evento, um feito por si só dado o histórico recente da cúpula, foi prova da dificuldade presente nos debates ao longo dos últimos meses. Em estratégia acertada, o Itamaraty deixou temas espinhosos para reuniões derradeiras, impedindo que discordâncias conhecidas sobre as guerras na Ucrânia e em Gaza, os dois pontos mais sensíveis sobre a mesa, contaminassem os debates e travassem acordos possíveis. A nova ofensiva lançada pela Rússia contra os ucranianos e a reação dos Estados Unidos de autorizar Kiev a contra-atacar com mísseis americanos de longo alcance quase inviabilizaram o texto fechado pelos negociadores.

No fim, a versão acertada previamente prevaleceu, com a mudança de apenas duas palavras, apesar das pressões europeias para reabertura mais ampla das discussões. Para acomodar os interesses em jogo, evitou-se apontar explicitamente responsáveis - a Rússia sequer é citada -, mas foram incluídos uma condenação das terríveis consequências humanitárias dos conflitos; e apelos por um cessar-fogo em Gaza, pela solução de dois-Estados entre Israel e Palestina e por “paz abrangente” na Ucrânia.

A maior resistência, porém, veio da Argentina. Empoderado pela eleição de Donald Trump, por quem foi recebido na última semana na Flórida, Javier Milei desembarcou no Rio com aparente disposição de dar uma vitória aos críticos do multilateralismo. Seu governo chegou a ficar fora da lista inicial da Aliança contra a Fome e a Pobreza, mas recuou, e ameaçou travar o documento final. Ao se ver isolado, Milei optou por ressalvas verbais ao texto final. Ainda assim, além de dar mostra de como as discussões internacionais serão mais complicadas com a troca de inquilino na Casa Branca, Milei leva na bagagem importante acordo com o Brasil para exportação de gás natural de Vaca Muerta, crucial para a recuperação da combalida economia do país.

O grande legado deixado pela presidência brasileira do G20 é a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, ainda que com prazo para acabar. Com a adesão de 148 membros, entre eles 82 países e nove instituições financeiras globais, seu objetivo é auxiliar os governos, com compartilhamento de conhecimento e experiências de políticas bem-sucedidas de transferência de renda, alimentação escolar e qualificação para o emprego, a elaborarem planos para erradicar a insegurança alimentar e a pobreza até 2030. Bases da aliança serão instaladas pelo mundo - a principal delas, de caráter técnico, na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) já anunciou financiamento de US$ 25 bilhões para a iniciativa.

Os avanços em outras prioridades ficaram aquém das ambições do Planalto. A taxação dos super-ricos constou na declaração final, o que foi visto como vitória brasileira, mas não foi assumido compromisso de que os países cobrem mais impostos de seus milionários. O texto destaca apenas a importância de pessoas com “patrimônio líquido ultra-alto” serem efetivamente tributadas. Sobre a governança global, o texto recorre a platitudes de sempre para reafirmar a disposição dos países em revigorar e fortalecer o sistema multilateral. Não há menção a reformas em nenhum organismo, muito menos do Conselho de Segurança da ONU, desejo de longa data de Lula e da diplomacia brasileira.

Já no front climático, o Brasil conseguiu que os países reconheçam a necessidade de fazer mais para cumprir as metas previstas no Acordo de Paris e barrou uma proposta feita pelos mais ricos para que os custos climáticos fossem divididos com os países em desenvolvimento.

O governo brasileiro conseguiu também ampliar as discussões do G20, antes restritas, a muitos segmentos sociais e econômicos, que contribuíram nas discussões de dezenas de temas, com propostas para todos eles. Deu um exemplo de como as reuniões podem ser feitas, assim como esboçou um mecanismo que servirá ao Brasil e a outros países para democratizar debates e decisões.

Embora o saldo final do G20 possa ser visto como positivo para o país, o governo Lula deve se preparar para um cenário bastante distinto ao sediar a Cúpula do Clima (COP30) em Belém em 2025. A sombra de Trump, na figura de Milei, já foi quase suficiente para travar os consensos possíveis. Seu negacionismo climático e sua oposição ao multilateralismo certamente serão entraves para que se consiga avançar em temas tão caros e urgentes para o mundo.

Suspeitas graves exigem tanto rigor como equilíbrio

Folha de S. Paulo

Para que apurações cheguem a bom termo em suposto plano de matar Lula, Alckmin e Moraes, é preciso restabelecer normalidade do trâmite judicial

Preocupações com atos e conspirações contra as instituições democráticas e o Estado de Direito voltaram a aflorar desde a semana passada, quando um homem chegou à frente da sede do Supremo Tribunal Federal munido de explosivos e morreu no local.

Nesta terça (19), o tema ficou mais escandaloso com uma operação da Polícia Federal que investiga nada menos que um plano ruminado entre militares, no final de 2022, para assassinar o então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal e, na época, chefe da Justiça Eleitoral.

É desnecessário apontar a gravidade de tais acontecimentos —e do que dá às suspeitas sua verossimilhança. O fato indiscutível é que Jair Bolsonaro (PL) estimulou entre auxiliares e seguidores ideias desvairadas de ruptura institucional que levaram, no exemplo mais visível, ao ataque de uma turba fanatizada às sedes dos Poderes em 8 de janeiro do ano passado.

O próprio ex-presidente foi tornado inelegível pelas mentiras que espalhou, púbica e descaradamente, sobre as urnas eletrônicas. Descobrir até que ponto avançaram tramas golpistas no governo passado, porém, é tarefa complexa, que exige conduta responsável e equilibrada por parte das autoridades, a começar pela corte mais elevada do país.

Os últimos dias também trouxeram de volta atitudes indevidas como declarações fora dos autos, não raro antecipando julgamentos. A nova investigação da PF se soma aos casos em que Alexandre de Moraes figura simultaneamente como supervisor e vítima em potencial.

Outras frentes a serem esclarecidas incluem as tratativas para a decretação de estado de defesa e de sítio antes da posse do governo eleito, sobre as quais já depuseram ex-comandantes das Forças Armadas, e a suposta espionagem de adversários e críticos por parte de uma "Abin paralela", da qual ainda se conhecem publicamente poucas evidências.

Para que as apurações cheguem a bom termo, é preciso que polícia e, principalmente, Justiça se comportem de modo mais técnico e menos político. O Supremo não pode desperdiçar mais uma oportunidade de caminhar na direção desejável.

Parece precipitada a decisão do presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, de distribuir também a Moraes a relatoria do inquérito sobre o atentado da semana passada, por entender que há conexão com as ações do 8/1. O mais correto teria sido seguir os trâmites ordinários até uma conclusão mais sólida.

É urgente voltar a caminhos mais ortodoxos. Houve razões para proceder de formas incomuns, dado que, sob Bolsonaro, a Procuradoria-Geral da República a cargo de Augusto Aras mergulhou em inércia subalterna, fragilizando todo o sistema de defesa institucional. A situação, espera-se, não é mais essa.

Putin faz ameaça nuclear no milésimo dia da guerra

Folha de S. Paulo

Russo reage a provocação de Biden e coloca sua retórica na forma de decreto que eleva os riscos de confronto entre potências atômicas

O milésimo dia da Guerra da Ucrânia, contabilizado nesta terça-feira (19), trouxe consigo a volta da ameaça nuclear. Enquanto retórica, ela esteve viva nas falas de Vladimir Putin desde que o presidente russo decidiu invadir o país vizinho, em 24 de fevereiro de 2024.

Do discurso do dia do ataque a inúmeras citações desde então, permeadas por atos mais concretos como exercícios militares, o abandono do último tratado de desarmamento vigente e o posicionamento de ogivas táticas na aliada Belarus, a sombra do átomo sempre esteve lá.

O blefe funcionou para retardar o incremento do grande apoio que permite a resistência de Kiev, mas sempre foi denunciado como tal por Volodimir Zelenski e aliados mais belicistas.

O que parecia bravata foi entronizado em um decreto estabelecendo a nova doutrina de emprego de armas nucleares pelo país que mais as possui —Rússia e EUA somam 90% do total.

Putin ampliou o leque de situações em que pode apertar o botão atômico. Além disso, deixou claro que um ataque convencional à Rússia por país apoiado por potência nuclear ensejará a possibilidade de uma guerra atômica contra ambos.

Ressaltou ainda que, se o inimigo for de uma aliança como a Otan, o conflito poderá ser generalizado. Em resumo, desenhou o cenário atual na Ucrânia.

Se a regra anterior, de 2020, respondia a um Donald Trump que havia também facilitado o emprego das armas americanas, agora Putin se viu motivado por um Joe Biden à beira de devolver a cadeira para o antecessor republicano.

O americano autorizou a Ucrânia a utilizar os mísseis de longo alcance dos EUA, com os quais foi equipada, para atingir alvos distantes da fronteira. Kiev não perdeu tempo e atacou um arsenal russo a cerca de 150 km de seu território. Foi um teste.

Ato contínuo, Putin divulgou o texto do decreto nuclear que, de resto, ele havia prometido meses atrás como resposta ao que chama de escalada do envolvimento ocidental no conflito.

Após meses de pressão de Kiev, Biden resolveu pagar para ver as cartas de Putin de forma tardia, na visão de quem só aponta bazófia do russo. Afinal de contas, é improvável que qualquer coisa mude no rumo da guerra, ora sendo vencida pelo Kremlin.

Se é certo que não interessa a Moscou vaporizar Kiev ou Varsóvia, sob pena de desaparecer também, a materialidade dada às ameaças por Putin em resposta a Biden insere um novo e perigoso componente na já volátil conjuntura de segurança europeia.

Traidores da Pátria

O Estado de S. Paulo

Revelação de audacioso plano para matar Lula da Silva, entre outras autoridades, mostra até onde os golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder

É de indignar todos os democratas deste país, sejam quais forem as identidades político-ideológicas que possam distingui-los, a revelação de que autoridades do governo de Jair Bolsonaro e militares das Forças Especiais do Exército, além de um policial federal, teriam conspirado para assassinar, no fim de 2022, o então presidente eleito Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que à época acumulava o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como se sabe, na manhã de ontem a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Contragolpe, que culminou na prisão do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência (2020) e atualmente assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ). Além de Fernandes, outros três militares com formação em Forças Especiais, conhecidos no Exército como “kids pretos”, foram presos por suspeita de elaborar o plano homicida com vistas “à abolição violenta do Estado Democrático de Direito”: Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Hélio Ferreira Lima. O quinto envolvido diretamente na trama, também preso, é o policial federal Wladimir Matos Soares.

A tentativa de golpe de Estado urdida pelos inconformados com a democracia, uma súcia de civis e militares, da ativa e da reserva, todos do entorno de Bolsonaro, já era execrável por tudo o que se sabia a respeito da sedição até agora. Por meio da desqualificação do processo eleitoral, entre outras artimanhas, pretendia-se evitar a eleição de Lula da Silva como presidente da República. Malfadado esse desiderato, partiu-se, então, para o impedimento da posse. A rigor, o que a Operação Contragolpe fez foi mostrar ao País, com impressionante riqueza de detalhes, até onde esses golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder, em afronta à vontade popular legitimamente consagrada pelas urnas em 2022.

Chamado no ninho golpista de “Punhal Verde e Amarelo”, como se patriota fosse, o plano dos militares liderados, do ponto de vista operacional, pelo general Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército (2018-2020), consistia, pasme o leitor, em envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. Alckmin, segundo consta, também seria envenenado. Já para matar Alexandre de Moraes, os golpistas pretendiam detonar explosivos durante uma cerimônia pública. Eis a dimensão da infâmia. Ainda segundo a PF, ao menos uma reunião para arquitetar o triplo homicídio teria sido realizada na residência do general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro pela reeleição. Este jornal apurou que a PF não tem dúvidas sobre o “envolvimento direto” de Braga Netto nessa trama mais do que antidemocrática, macabra.

Em um ofício de 221 páginas endereçado ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.874, que investiga no âmbito do STF a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”, a PF detalhou como os militares sediciosos monitoraram os passos de Lula, Alckmin e do próprio Moraes para decidir como e quando agir. Resta claro que o País esteve muito próximo de ser tragado por uma convulsão política e social inaudita em sua história recente. E é lícito inferir que as consequências mais nefastas dessa extrema violência política, gravíssima por sua mera cogitação, só não se materializaram porque o Alto Comando do Exército não endossou a estupidez.

Mas que ninguém se deixe enganar. Se felizmente a intentona não foi adiante, o simples fato de frutificar entre os mais bem treinados militares do Exército esse ímpeto golpista em nada tranquiliza a Nação. O País só estará em paz quando, um por um, todos os traidores da Constituição, que, como dissera Ulysses Guimarães, também são traidores da Pátria, forem julgados por seus crimes sob a égide do mesmo Estado Democrático de Direito contra o qual se insurgiram.

A conta da política fiscal eleitoreira

O Estado de S. Paulo

Levantamento da FGV mostra que estratégia de maquiar gastos abusivos nas eleições vinha sendo reduzida após um pico com Dilma Rousseff. Mas, com o lulopetismo de volta, o céu é o limite

Populistas não seriam populares se não fossem eficazes na arte de vender ilusões. Na economia, ela implica rifar o crescimento sustentável no futuro para fabricar um bem-estar efêmero no presente. A regra número um do manual do demagogo é mascarar a expansão de gastos ao final do seu mandato, obrigando a sociedade a pagar a conta no seguinte. Pesquisadores da FGV Ibre fizeram as contas para mostrar o tamanho dessa fatura.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se queixa, por exemplo, de despesas contratadas sem fontes de financiamento herdadas de Jair Bolsonaro. De fato, Bolsonaro empregou estratagemas criativos para ocultar impactos fiscais, como quando transferiu dívidas do Tesouro – os precatórios – para administrações futuras ou declarou “estado de emergência” em 2022 para justificar gastos fora do teto. Em tese, ele entregou o governo com um superávit primário de 0,2% do PIB; na prática, como os gastos encobertos foram de 0,9%, legou um déficit de 0,7%.

Este retrato do momento é útil à retórica vitimista lulopetista. Mas a trajetória do filme mostra que o lulopetismo é o grande responsável pela disfuncionalidade fiscal cujo preço se vê, por exemplo, nas cotações do dólar. Bolsonaro só aplicou a cartilha lulopetista, mas com menos denodo.

A contabilidade criativa vinha sendo reduzida nos últimos ciclos eleitorais. O déficit real de 0,7% do PIB, ao final de seu mandato, foi de 1,2% ao final de Dilma 2/Temer e de 3,5% ao final de Dilma 1 (1,8% de déficit primário, mais 1,7% de gastos ocultos). Para piorar, o período pré-eleitoral em Dilma 1 foi marcado por fortes intervenções no câmbio para baixar momentaneamente os preços das importações, o que não aconteceu nem no governo Temer nem no governo Bolsonaro – que, inclusive, inviabilizou a prática ao aprovar a autonomia do Banco Central, que Lula detesta.

A própria Dilma só agravou a degradação herdada de seu criador. Após a reestruturação fiscal de FHC e um período de estabilidade no início de Lula 1, a situação fiscal se deteriorou continuamente, de um superávit primário de 2,5% em 2005 para um déficit de 1,8% em 2014. Entre 2015 e 2019, o déficit se manteve em 1,5%. Em 2020, houve uma recuperação, e 2021 se encerrou com superávit de 0,6%.

Nos últimos anos houve, como diz Haddad, aumentos de despesas obrigatórias sem fonte de financiamento, como no Bolsa Família, Fundeb ou emendas parlamentares – todos apoiados pelo PT. Ainda assim, o gasto primário do biênio 2021-2022, de 18,1% do PIB, foi inferior aos 19,5% de 2019, pois o salário mínimo e os gastos com saúde e educação eram ajustados pela variação da inflação, portanto, sem aumento real.

Como dizem os pesquisadores da FGV Ibre, o governo Bolsonaro fez uma “escolha” para acomodar a elevação das despesas, e, se o modelo tivesse sido mantido nos quatro anos subsequentes, teria criado um espaço fiscal de 1 ponto porcentual do PIB. Já o governo Lula “não fez escolha nenhuma”. O salário mínimo agora é reajustado pela inflação e pelo crescimento do PIB, enquanto as despesas com saúde e educação voltaram a ser vinculadas às receitas.

A arrecadação aumentou, mas os gastos aumentaram mais e 2023 voltou a registrar um déficit de 1,6%. Para piorar, o governo elevou gastos parafiscais – como bolsas para estudantes ou empréstimos via fundos públicos –, que não passam pelo Orçamento, mas pressionam a dívida.

Quando Bolsonaro aprovou o aumento “temporário” do Bolsa Família em 2022, Lula ironizou: “É como se fosse um sorvete: chupou, acabou; fica com o palito na mão. Temos que dar uma lição para ele”.

A lição seria aprovar, como nas economias desenvolvidas, mecanismos institucionais para garantir a robustez da política econômica no médio prazo, como limites fiscais num horizonte de três a quatro anos para contrabalançar o apetite imediatista dos ciclos eleitorais. É o que se esperaria de um estadista. Mas Lula é um populista, e faz o contrário: produz mais sorvetes, com novos sabores, empurrando para 2027 um ajuste fiscal amargo. A sociedade continuará a pagar a conta dos populistas, se não aprender a lição e puni-los nas urnas.

Indústria em quarto minguante

O Estado de S. Paulo

Indústria de transformação perde espaço nas exportações e carece de uma visão mais estruturante

O perfil exportador industrial do Brasil mudou acentuadamente em duas décadas. Em 2003, a indústria de transformação respondia por 82,3% do total exportado, enquanto a indústria extrativa e a agropecuária ficavam, juntas, com os restantes 17,17%. Atualmente, a relação é de quase convergência, com 54% para o setor de transformação e 46% para os outros dois.

Os dados, expostos por Lia Vals, pesquisadora associada da Fundação Getulio Vargas (FGV), em entrevista ao Estadão, demonstram a fragilidade do segmento de transformação, essencial por converter produtos primários em bens acabados ou intermediários, muitas vezes usados pela própria indústria.

A composição da pauta exportadora industrial vem mudando de forma contínua ao longo dos anos e reflete, ao mesmo tempo, a inserção crescente da agropecuária e extrativa brasileiras no comércio mundial e o debacle do setor de transformação. Como lembrou a pesquisadora, o Brasil estava entre os dez maiores exportadores de produtos siderúrgicos da Organização Mundial do Comércio (OMC) nos anos 1990 e, no ano passado, havia caído à 34.ª colocação.

Depois de anos de um crescimento vertiginoso entre o período do pós-guerra e meados da década de 1980, a indústria de transformação ingressou em uma sequência de quedas que suplantou o período de prosperidade. Assim, a indústria de transformação minguou de uma participação de 36% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1985 para algo em torno de 11% em 2023.

Não há como dissociar essa derrocada da sistemática queda da produtividade. Diferentemente do ocorrido em países desenvolvidos, onde o setor industrial começou a refluir quando já contavam com renda per capita semelhante à atual, a indústria nacional foi protagonista de um perde-perde: perdeu mercado doméstico para as importações e perdeu participação nas exportações.

Num cenário duplamente desfavorável, a recuperação é tarefa difícil e lenta, para ser buscada por um planejamento que extrapole governos e se converta em um projeto de Estado. Já não basta reeditar subsídios tributários e as velhas políticas protecionistas.

Em artigo publicado no Estadão e assinado pelo presidente Lula da Silva e por seu vice, Geraldo Alckmin, o governo apresentou ao País a intenção de tocar um projeto de “neoindustrialização”. Oito meses depois, porém, lançou o “Nova Indústria Brasil”, alvo de críticas por reativar instrumentos comprovadamente ineficientes, como o crédito direcionado e subsidiado a setores específicos.

A política de recomposição da indústria de transformação ainda carece de uma visão mais estruturante, algo que vá além da promessa de R$ 300 bilhões em incentivos no curto prazo, visando o ano eleitoral de 2026. É preciso estender o olhar para medidas que definam as próximas décadas, com foco em investimentos em pesquisa e desenvolvimento, novas tecnologias e no aumento da produtividade e da competitividade. Só assim a indústria brasileira poderá aproveitar um mundo sob novo desenho geopolítico para reconquistar o espaço perdido.

Entre memórias e urgentes sanções

Correio Braziliense

A operação da PF ontem e a tragédia da família Paiva andam de mãos dadas quando se olha para a história do Brasil

A Polícia Federal (PF) bateu à porta ontem para prender quatro integrantes do Exército e um servidor da própria corporação acusados de planejar um golpe para matar o presidente Lula (PT) e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. A estratégia, planejada por meio de grupos de WhatsApp e articulada a partir de diferentes frentes, teve, segundo as investigações, sua gênese na casa do general Braga Netto, candidato na chapa do PL à Presidência da República em 2022 ao lado de Jair Bolsonaro.

Uma das ideias envolvia envenenamento das três autoridades — portanto, sem qualquer chance de defesa. No caso do presidente Lula, a PF informa que os quatro militares se aproveitariam da condição de saúde do petista para envenená-lo durante consultas hospitalares de rotina. O escândalo choca a sociedade, é uma ameaça evidente ao Estado Democrático de Direito, mas não surpreende os livros de história. 

O país segue enfrentando as feridas abertas pelo golpe militar de 1964. Ainda que a Comissão da Verdade, extinta em 2014, tenha prestado um serviço valoroso à democracia brasileira ao revisitar crimes contra os direitos humanos nunca solucionados pelo Estado, a Lei da Anistia que perdura desde 1979 escancara uma herança maldita ainda viva entre brasileiros e brasileiras.

Diante de tal cenário, vem em hora ainda mais essencial o sucesso do longa-metragem Ainda estou aqui, em cartaz na maioria das salas de cinema do país. O filme, dirigido por Walter Salles, conta a história de Eunice Paiva (Fernanda Torres), viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), sequestrado e assassinado pela ditadura militar em 1971. 

A trama, mesmo exigindo compreensão sobre a história do Brasil para seu entendimento mais completo, emociona o público ao redor do mundo por retratar a (quase) destruição de uma família unida e feliz a partir de um dos crimes mais conhecidos da ditadura militar brasileira. Após anos de luta de Eunice, o Brasil só atestou a morte de Rubens Paiva pela ditadura em 1996, a partir da Lei dos Desaparecidos Políticos, sancionada por Fernando Henrique Cardoso no ano anterior. 

A operação da PF que revelou o planejado golpe intitulado Punhal Verde e Amarelo e a tragédia da família Paiva andam de mãos dadas quando se olha para a história do Brasil. E o factual da semana confia às autoridades brasileiras uma nova oportunidade de dar a esses crimes os pesos que eles precisam ter. Notas de repúdio ou condenações via rede social são insuficientes para conter quem tem apreço pela opressão. O mesmo vale para declarações em microfones da imprensa ou em eventos públicos.

Ao mesmo tempo em que os livros e documentos da ditadura deixam claro que o plano para matar o presidente da República, seu vice e um ministro do STF tem explicações históricas, o Estado brasileiro já mostrou, em outras oportunidades, fraqueza ao punir quem odeia a democracia. O próprio fato de integrantes dos ataques de 8 de janeiro de 2023 terem se candidatado neste ano, ainda que nenhum deles tenha sido eleito, prova que se trata de uma nação quase sem memória. 

Ainda estou aqui, ao dar ao cinema brasileiro a chance de uma indicação ao Oscar, acerta não só ao retratar a tragédia causada pela ditadura pela ótica da viúva Eunice — diante do contumaz esquecimento da figura da mulher na resistência —, mas também por trazer a temática tão necessária a partir do viés da perda familiar. É preciso (re)lembrar, com nós na garganta, para não repetir os erros do passado.

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