Por Luiz Guilherme Gerbelli / O Estado de S. Paulo
Economista e filósofo diz que números fiscais do Brasil são preocupantes, mas não calamitosos; ele critica alta dos juros e ‘dominância que o mercado financeiro exerce na formação das expectativas’
O economista e filósofo Eduardo Giannetti avalia que há uma reação exagerada do
mercado financeiro com os números da economia brasileira. No fim deste ano, a
incerteza sobre o futuro das contas públicas do País levou o dólar para a casa de R$ 6,30 e fez os juros futuros dispararem.
“Claramente, há uma reação exagerada do
mercado financeiro”, afirma. “Os indicadores fiscais brasileiros, embora
preocupantes, não são calamitosos. Longe disso. Nós não estamos na beira de
nenhum precipício fiscal.”
Em entrevista ao Estadão, Giannetti
critica a alta dos juros ― em seu último encontro, o Comitê de Política Monetária (Copom) aumentou a Selic em 1 ponto porcentual ― e avalia que o País
enfrenta uma dominância do mercado financeiro “na formação das expectativas e
no ambiente do debate público brasileiro”.
“O mercado financeiro é extremamente exigente
quando se trata de pedir cortes de gasto primário, mas ele é completamente
omisso quando se trata de trazer à tona o custo fiscal de um aumento
extravagante de juros como esse que nós estamos vivendo no Brasil”, diz.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o sr. analisa essa piora dos ativos e
até onde essa piora pode chegar?
Quando a gente conversou no ano passado, a
minha avaliação era a de que o governo Lula tinha ganho a batalha das
expectativas do primeiro ano do mandato. Podemos dizer, agora, que o governo
Lula perdeu a batalha das expectativas no segundo ano do mandato. O termômetro
dessas expectativas no regime de macroeconomia, como nós temos hoje no Brasil,
é a taxa de câmbio. Quando as expectativas se deterioram, o real desvaloriza.
Quando as expectativas melhoram, o real valoriza. Os milhares de agentes
econômicos compram ou vendem papéis denominados em real dependendo do estado
das expectativas. E as expectativas se deterioraram, especialmente, no segundo
semestre de 2024.
Na avaliação do sr., o que motivou essa
deterioração?
É uma conjunção de muitos fatores que se
combinam. É fato que o dólar se valorizou em todo mundo, especialmente nos
mercados emergentes. Portanto, o ambiente externo não foi benéfico, embora, no
ano passado, mesmo com os juros americanos mais altos, nós tenhamos assistido a
uma apreciação do real, porque o governo foi bem ao apresentar o arcabouço
fiscal e a proposta de reforma tributária. Mas o fato também é que a
desvalorização do real este ano foi muito além do que aconteceu com as outras
moedas relevantes do mundo emergente. Nós vivemos uma desvalorização do real
que extrapolou muito o padrão do mundo. E aí nós temos que obrigatoriamente
olhar para fatores domésticos, exacerbado nesse movimento.
E o sr. poderia detalhar esses fatores
domésticos?
Um fator de primeiríssima ordem, sem dúvida,
é o desapontamento com a proposta de corte de gastos apresentada pelo governo.
Houve vários problemas. O primeiro e grave é que o governo tentou escamotear o
corte de gastos com apresentação de cunho ― e eu posso dizer ―
político-eleitoral da proposta de reforma do Imposto de Renda com a exceção
para quem ganha até R$ 5 mil. O problema dessa proposta, entre outros, é que,
se o lado da isenção é líquido e certo, o lado da arrecadação compensatória
dessa isenção é extremamente complicado de implementar. Ficou uma assimetria
que gera muito ruído. Mas isso é uma parte. A outra parte é que o que o Haddad
apresentou, embora correto, é claramente insuficiente para endereçar a questão
do cumprimento do arcabouço fiscal nos próximos anos. Ele anunciou medidas
muito pontuais, quase conjunturais. Não disse nada a respeito dos problemas de
fundo do nosso desequilíbrio estrutural.
Quais são esses problemas de fundo?
São, essencialmente, três. A vinculação de
todas as despesas sociais ao reajuste do salário mínimo, que tem um impacto
automático de enorme magnitude nos gastos públicos, ainda mais num governo que
não abre mão de uma política de valorização do salário mínimo, que, em si, me
parece até justificável. Mas atrelar isso a toda família de benefícios sociais
e previdenciários é devastador para as contas públicas. São também as despesas
obrigatórias, especialmente, saúde e educação, que crescem também de acordo com
a arrecadação e tem um crescimento orgânico. Por fim, os gastos tributários, as
isenções que o governo oferece para grupos que se beneficiam de regimes
tributários especiais. Se nós não endereçarmos essas três questões, o problema
estrutural das contas públicas continuará na corda bamba. E a cada ano nós
vamos ter de fazer medidas duvidosas e muito sofridas em alguns casos para
conseguir manter minimamente uma expectativa de que o arcabouço fiscal vai ser
cumprido.
O arcabouço perdeu credibilidade?
Eu não acho que o arcabouço fiscal está
terminado e enterrado, como foram enterrados a Lei de Responsabilidade Fiscal e
o teto de gastos, mas eu diria que está na UTI, respirando por aparelhos. E o
governo vai ter de apresentar alguma coisa mais consistente para recuperar a
credibilidade desse arcabouço fiscal. Agora, vamos colocar as coisas em
perspectiva. Claramente, há uma reação exagerada do mercado financeiro.
Por que o sr. vê um exagero?
Entra nisso um elemento especulativo. Agentes
poderosos do mercado financeiro adoram volatilidade, porque é dessa forma que
ganham dinheiro. Os indicadores fiscais brasileiros, embora preocupantes, não
são calamitosos. Longe disso. Nós não estamos na beira de nenhum precipício
fiscal. Eu acho que houve também um fato que o presidente do Banco Central (Roberto
Campos Neto) apontou e é relevante: o movimento intenso de remessa de
dividendos das empresas transnacionais que atuam no Brasil para suas matrizes.
O que não deixa de representar um fato positivo, que é o fato de que elas
tiveram bons resultados no Brasil este ano. Estão podendo mandar dinheiro para
as matrizes. Isso também pressionou o câmbio.
E se a gente olhar para a economia real, os
indicadores deste ano são positivos. Tivemos um crescimento do PIB da ordem de
3,5%, sendo que, no início do ano, a previsão era de 1%, 1,5%. Veja como o
mercado financeiro erra para mais ou para menos nas suas projeções, nas suas
expectativas. Criamos 3 milhões de empregos. Metades dos quais na economia
formal. As nossas contas externas permanecem muito sólidas e equilibradas,
tanto pelo resultado da balança comercial como pelo investimento direto
estrangeiro. Não temos, portanto, nenhum tipo de vulnerabilidade externa. O que
me causa uma certa estranheza é a dominância que o mercado financeiro exerce na
formação das expectativas e no ambiente do debate público brasileiro, o que
acaba exacerbando esses movimentos.
Como o País sai dessa situação, então?
Primeiro, o governo deixando de dar
informações desencontradas e unindo o discurso. Eu acho que está mais do que na
hora de o presidente da República fazer um pronunciamento sólido de que a
questão fiscal não será desconsiderada e que o compromisso é sério. E que, se
for o caso, existem instrumentos de contingenciamento que permitem cumprir o
arcabouço fiscal nos próximos dois anos. E isso tem de ficar muito claro que
será implementado. Eu acredito também que está na hora de começarmos a discutir
mais seriamente os três temas que eu mencionei que endereçam de maneira mais
permanente o desequilíbrio fiscal brasileiro. Era tabu discutir a reforma da
Previdência no Brasil. Essa discussão amadureceu e a reforma acabou sendo
aprovada ― ainda que não seja suficiente para um tempo indefinido ― de maneira
amadurecida. Nós não podemos interditar o debate em torno dos três temas
estruturais.
Mas o que vimos foi o cenário de crise
econômica. Os indicadores da economia real estão bons, mas os indicadores dos
mercados apontaram para um cenário difícil, com a disparada do dólar e dos
juros futuros. Qual é o cenário que o sr. vê daqui em diante?
Ninguém tem como antever mercados que são tão
volúveis como são os mercados de alta frequência, o mercado de câmbio, o
mercado de Bolsa, o mercado de títulos e de juro futuro. Eu tendo a crer que,
se prevalecer um mínimo de bom senso, teremos uma acomodação. Agora, uma coisa
eu digo: esse juro no patamar em que está não pode permanecer por muito tempo,
porque ele leva a nossa dívida pública para um caminho insustentável e
explosivo. Eu acho que faltou muito, no debate, um ponto ― e aí eu lembro
aquele meu ponto da dominância do mercado financeiro na formação das crenças em
relação à economia ― de enfatizar a extravagância fiscal que um aumento da
Selic e no patamar em que está e o que representa.
Qual é o custo fiscal desse aumento?
É um número que não é fácil de estimar e a
gente tem ouvido informações muito desencontradas. Quanto custa para os cofres
públicos o aumento de 1 ponto porcentual na Selic se ele for mantido durante um
ano? Não é o número simples, porque não é todo o estoque da dívida pública que
é remunerado pela taxa Selic. É apenas uma fração. Numa estimativa
conservadora, nós estamos falando de um valor ao redor de R$ 30 bilhões por
ano. Veja só: em uma reunião do Copom, o gasto público aumenta um montante
equivalente a toda promessa de contenção de gastos daquele pacote tão sofrido
que o Fernando Haddad anunciou. O aumento de juros primários no Brasil, de
agosto para cá, supera em termos de gasto público largamente o valor total
previsto de contenção nos próximos dois anos anunciado pelo governo.
Agora, nessa hora ninguém lembra. O mercado
financeiro é extremamente exigente quando se trata de pedir cortes de gasto
primário, mas ele é completamente omisso quando se trata de trazer à tona o
custo fiscal de um aumento extravagante de juros como esse que nós estamos
vivendo no Brasil. Hoje, estamos gastando algo em torno de 6% do PIB, 7% do PIB
com juros. Nenhum país sustenta e aguenta por muito tempo uma conta dessa. Sem
falar do impacto altamente regressivo na distribuição de renda, que significa uma
transferência de um valor dessa ordem para quem tem poupança financeira neste
país.
O sr., então, acha que seria possível não
aumentar tanto os juros como o Banco Central está subindo e indicando?
Existem dois tipos de erro na condução da
política monetária. Um é o erro de sinal, e o outro é o erro de dosagem. No
período recente, o erro mais inequívoco de sinal foi no governo Dilma. Por
influência política da Dilma, numa época em que o Banco Central não era
formalmente independente, o governo e o Banco Central reduziram os juros quando
precisavam aumentar. Isso é um erro de sinal, e as consequências nós vimos. A
inflação brasileira subiu às alturas, o governo meteu os pés pelas mãos
tentando controlar preços e foi aquele festival de horrores do final do governo
Dilma.
Eu acredito que hoje há um erro de dosagem.
Nós aumentamos demais o juro, depois demoramos para reduzir o juro e, quando
reduzimos, reduzimos menos do que poderíamos ter reduzido. E agora, na minha
opinião, estamos sendo mais realistas que o rei. Esse último momento de juro do
Banco Central surpreendeu o próprio mercado financeiro, que estava com uma
expectativa um pouco menor.
Agora, aí é um jogo de credibilidade.
Colocando-me do lado do Banco Central, eu posso interpretar como uma tentativa
de estabelecer uma credibilidade que lhe permita, um pouco mais à frente,
voltar a ter uma política monetária menos agressiva.
O sr. disse da necessidade de novas medidas
adicionais, mas há uma leitura de enfraquecimento do ministro Haddad. Essas
medidas são possíveis ainda?
A minha leitura é de que o Haddad não está
enfraquecido e não vai se enfraquecer. Eu acho que o presidente Lula tem plena
ciência de que, se a situação já está difícil com o Haddad, ela vai piorar
ainda mais sem o Haddad. E ele é um laço, um fiador de algum grau de
compromisso com a responsabilidade fiscal no Brasil. O que seria uma
alternativa à equipe do Haddad no governo Lula hoje? Seria o PT. E aí, apertem
os cintos, a Argentina é logo ali.
Muitos analistas têm comparado este governo
do Lula com a gestão Dilma. No mundo real, o sr. acha que este governo é
parecido com Lula 1, Lula 2, Dilma 1 ou Dilma 2?
No primeiro ano, eu acho que o governo ganhou
a batalha das expectativas. A reforma tributária é um feito importantíssimo e a
gente não pode subestimar isso. Estamos há mais de 30 anos discutindo a reforma
tributária no Brasil. O governo Bolsonaro passou inteiro sem que sequer
apresentasse uma proposta de reforma tributária, e o governo Lula, no primeiro
ano de mandato, apresentou, negociou e encaminhou ao Congresso uma bela
proposta de reforma do imposto sobre o consumo. Temos de reconhecer isso. A paixão
partidária não pode prevalecer. Fernando Haddad montou, apresentou e, num
primeiro momento, convenceu com o seu arcabouço fiscal. Não é uma coisa
heroica. E é bom que não seja, porque, se for muito heroico, sabe-se que não
será cumprido, mas encaminhava e mostrava que havia um compromisso com
equilíbrio, para que a dívida pública não saísse do controle.
Neste segundo ano, a coisa começou a piorar.
Agora, nós estamos muito longe do descalabro que começou no segundo Lula e
chegou à plenitude no primeiro governo Dilma. Se o PT assumisse o Ministério da
Fazenda, eu acho que nós poderíamos dizer, agora, que estamos de volta ao
governo Dilma. E quem conspira contra Fernando Haddad ― ou, pelo menos,
desejaria vê-lo enfraquecido ― saiba que está aproximando para uma eventual
recaída na aventura que a equipe econômica da Dilma colocou o País. E foi de
uma incompetência épica. Eu não economizo adjetivos para descrever a gravidade
dos erros, que, de certa maneira, prepararam o terreno para a ascensão do
Bolsonaro. O descalabro da Dilma foi o território que deu ao Bolsonaro um
caminho para ele chegar aonde chegou.
O sr. citou a necessidade de o Brasil
endereçar questões mais de fundo. Até quando o País aguenta não discutir e
resolver a questão das contas públicas de uma vez?
Tem dois caminhos. Ou nós precisaríamos de
uma gravíssima crise financeira para a ficha cair. É o caminho da dor. Ou nós
teremos maturidade para entender que essa é uma realidade que se impõe. Nós não
podemos estar em um sistema em que o dinheiro público é gasto antes de ser
arrecadado, em que a margem de manobra do gasto discricionário do governo tende
a zero nos próximos anos. Não vai ter dinheiro para investir. Vai haver uma
arrecadação para imediatamente entregar o dinheiro já gasto na outra ponta. Não
precisa mais de governo. Nós temos de amadurecer essa questão no Brasil. Tem o
exemplo da reforma da Previdência. Era um tabu. Foi trazida, foi discutida. É
certo que precisou de uma grande crise para ela entrar na pauta, mas a crise
aconteceu e ela entrou na pauta. E, quando foi aprovada, havia, na opinião
pública, entendimento e aprovação da reforma previdenciária. Isso é raro em
qualquer país do mundo. Não dá para continuar com um Orçamento tão absurdamente
engessado, rígido e carimbado como a gente tem hoje no Brasil e com tantos
privilégios, inclusive, no Congresso e no Judiciário, que ficam totalmente à
margem do debate sobre gasto público. Se for mantido o patamar de juros que
está telegrafado ao longo do próximo ano, a gente vai para uma situação muito
delicada. É um sistema de retroalimentação.
Como assim?
A desconfiança leva à desvalorização, a
desvalorização leva à inflação, e a inflação obriga a aumentar os juros. O nome
disso é dominância fiscal. Em vez de tranquilizar, o aumento dos juros piora a
expectativa, inclusive, a de inflação. Tem um outro ponto, não é uma ação de
governo, mas todos nós temos de refletir. É exagerada a presença da visão
financeira e de mercado financeiro no debate público brasileiro. Esse aumento
de juros que nós vivemos recentemente prejudica enormemente o setor real da
economia. E isso passa batido. As empresas que estão endividadas hoje e pagam
juros estão tendo perdas, às vezes, por resultado de um enorme esforço de
produção e rentabilidade apenas por conta de uma reunião do Copom. Muitas delas
vão ter dificuldade para honrar compromissos financeiros. E isso passa batido.
O setor real da economia não tem voz no debate brasileiro. O mercado financeiro
tem uma dominância e uma hegemonia impressionante na formação de expectativas e
no encaminhamento do debate público.
Por que isso ocorre?
O fato é que eles contratam os melhores economistas e que têm presença na mídia. A mídia tem uma preferência por ouvir os economistas do mercado financeiro. O Boletim Focus é mercado financeiro na veia e é um grande elemento de formação de expectativas. E o mercado financeiro, por ser muito volátil, naturalmente atrai a atenção dos formadores de opinião, porque ele está lidando com o mercado de alta frequência que chama muita atenção. É por isso que ninguém fala de demografia. É a coisa mais profunda e importante na vida de uma sociedade, mas, como o movimento é muito lento e difuso no tempo, ninguém discute. Agora, uma mudança no juro e uma desvalorização da moeda são manchetes o tempo todo. Mas eu garanto para vocês que a demografia é muito mais importante do que qualquer mudança de juros e câmbio.
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