O Globo
Acredito que Janja da Silva já tenha ouvido
falar da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. Na dúvida, ajudo: foi uma campanha
de consolidação de poder a partir de 1966 contra os “Quatro Velhos” — costumes,
cultura, hábitos e ideias. Como saldo, mortes estimadas entre 500 mil e 2
milhões, crise econômica brutal e, no que nos interessa aqui, a destruição do
patrimônio histórico e artístico.
Entre outras boçalidades, lembra Rosa Freire
d’Aguiar no delicioso “Sempre Paris”, artistas foram enviados ao campo para
plantar repolho e camponeses colocados na cidade para fazer cultura. Ninguém se
lembra dessas realizações, e obviamente houve desabastecimento de repolho.
É o que deve ficar do espírito do “janjismo”
cultural que inspira os resultados do edital da Petrobras.
São alegados R$ 250 milhões destinados às diversas áreas da produção artística.
De início, rezavam as regras, seriam 30% para as afamadas cotas — gênero, raça
e localização geográfica (uma tal desregionalização). Terminaram por ser
95%. São Paulo e Rio de
Janeiro ficaram com os restantes 5% que escapam às citadas
delimitações ideológicas.
Em linguagem corrente, aos dois principais centros culturais do país, onde se concentra o maior número de produtores e artistas, sobrou apenas 5% da verba que não se enquadra no corte de raça, gênero e localização geográfica. Como Mao Tsé-Tung, não se deseja premiar a qualidade dos projetos, tampouco a experiência do realizador. Valem os novos conceitos dados como divinos pela camarilha petista, inspirados, como se sabe, pela primeira-dama Janja da Silva.
E aqui se discute porque é vendida como
política pública cultural feita com o dinheiro de impostos. O edital da
Petrobras recai na — e repete a — mesma armadilha da Lei Paulo Gustavo,
pensada e armada em resposta aos danos da pandemia ao setor artístico. No caso,
70% da verba era destinada ao audiovisual. Ok. Mas logo começou o populismo — o
dinheiro foi enviado a todos os estados e a todos os municípios. E 20% deveriam
caber a diretores negros e outros 10% a realizadores indígenas. Lindo. Não se
pedia currículo, apenas os quesitos de raça e município. Não é necessário
lembrar a impossibilidade de cumprimento da diretriz, dado que não são todas as
cidades — Caicó? São Félix? — que abrigam profissionais de cinema ou cineastas
indígenas e negros. O dinheiro apenas se encaminha para outras atividades
decididas pelo prefeito. O Brasil está assolado pelo miasma que orienta as
emendas parlamentares, uma política pública provinciana de desperdício de
dinheiro dos impostos.
O espirito do “janjismo” se confunde com o
dirigismo cultural praticado por Stálin em suas tristes décadas. Não é política
pública de incentivo à cultura, mas sim direção de como se deve comportar a
produção artística. O dirigente soviético veria no conceito de cotas um
aprimoramento de sua ação, até mais sofisticado. Stálin se via obrigado a
recorrer a seus burocratas e, quando não atendido ou desafiado, lançava mão do
exílio em trabalhos forçados na Sibéria ou de simples assassinatos.
Lembro-me do que aconteceu a Dmitri
Shostakovich. O compositor russo, nada ufanista e pouco otimista, era orientado
pelos stalinistas a compor a partir dos ritmos folclóricos russos (!), enquanto
artisticamente tinha caráter internacionalista. Na quadra petista, esquece-se o
currículo ou a qualidade cultural para se curvar a um critério fashion de raça
e gênero. Puro folclore.
O dirigismo não entende a cultura como um
processo civilizacional e tecnológico. Age mais por voluntarismo e populismo
político — plantem repolhos! Vira as costas ao que está conquistado pela
economia criativa. Enfim, destrói a competência. Por décadas, os realizadores
construíram uma cadeia orgânica de produção, com profissionais, escolas e
equipamentos concentrados em alguns centros. Não se tem verba para um Masp em
todas as cidades.
Numa metáfora ao gosto dos sindicalistas
petistas, é desaconselhável produzir automóveis em Ananindeua
(PA). Soa mais prático fazer uso dos companheiros metalúrgicos da
região do ABC Paulista. Por quê? Ali há experiência e uma cadeia profissional
de produção, onde se desenvolveu uma cultura automobilística. Se há uma
indústria em operação, por que desmontá-la? Pelo poder, Stálin desconstruiu a
cultura russa. Janjismo é uma espécie de volta às raízes. Será outra ruína.
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