Valor Econômico
Sem um plano realmente consistente para lidar
com o alastramento das facções do crime organizado, a política para a área
volta sempre às mesmas infrutíferas iniciativas
A política de segurança pública no Brasil tem
seguido predominantemente a lógica do dia da marmota. Para quem não conhece a
metáfora, ela diz respeito à festa americana do dia 2 de fevereiro, quando se
tenta prever a duração efetiva do inverno pelo comportamento desse peculiar
bicho. Todo ano uma marmota é observada, como um eterno retorno. O filme
traduzido para o português como “Feitiço do Tempo” usa esse evento para
retratar a vida de um homem que diariamente acorda revivendo que o fez no dia
anterior. Parece ser essa a sina da proposta hegemônica para resolver os males
da criminalidade brasileira.
O que foi feito no Complexo do Alemão pelo
governador Cláudio Castro é a reprodução da mesma estratégia tentada por muitos
governadores do Rio de Janeiro e de outros estados desde a redemocratização. Há
um dia mágico em que uma comunidade é invadida para acabar com traficantes e
afins, pessoas morrem e são presas, sem que sejam pegos os verdadeiros chefes
das facções, e se decreta que, a partir de então, um combate duro contra o
crime será instalado.
A população local é oprimida pelo crime
organizado há décadas - e por vezes pela própria polícia - e anseia pela
recuperação de seus direitos básicos. A primeira operação, como o dia da
marmota, é comemorada efusivamente como algo redentor, capaz de mudar a vida de
toda a comunidade. Parte dos moradores desconfia do eterno retorno nesse jogo,
mas aposta inicialmente no sucesso porque, para lembrar da peça de Paulo
Pontes, o brasileiro tem a esperança como profissão.
No dia seguinte, comunicadores populares e políticos, especialmente os mais à direita, exploram essa esperança e dizem que é preciso endurecer a estratégia contra o crime, na linha do “tiro, porrada e bomba”, e parar de ouvir o “o pessoal dos direitos humanos”. Surgem várias propostas de alteração legislativa e medidas que terão um efeito salvador e mágico contra a bandidagem. Uma onda da opinião pública se instala abarcando quase todas as classes sociais.
O problema é que essa política não tem tido,
desde a década de 1980, um plano realmente consistente para lidar com o alastramento
das facções do crime organizado. Meses depois do dia da marmota, surge uma
sensação de fracasso e impotência porque a violência do crime organizado
continua, particularmente nas comunidades onde o território foi dominado pelas
facções. Os políticos que defendem essa estratégia sempre vão dizer que faltou
algum endurecimento a mais, mantendo o discurso de que o Estado brasileiro
protege o bandido.
A síntese desse caminho é bem representada
pelo que ocorreu na intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018. No início,
as Forças Armadas eram aplaudidas ao caminharem nas ruas. Oitenta e três por
cento dos moradores do Rio de janeiro aprovavam a medida. Ao final do ano,
quando o processo acabou de forma melancólica, apenas 33% da população disseram
que a segurança tinha melhorado.
Agora poderá se repetir esse fenômeno, porque
a sensação de alívio só ocorreria se o crime organizado fosse reduzido
drasticamente, e aparentemente o governo fluminense e a maioria da direita não
têm a menor ideia do que fazer no dia seguinte dessas operações, ou se houvesse
uma invasão policial das comunidades todo mês. Mas se tais ações forem
recorrentes, mais gente vai morrer, inclusive moradores locais que sofrem com
os criminosos. Isso desmoralizaria a perspectiva salvacionista do tiro, porrada
e bomba.
Em meio à repetição dos dias da marmota, os
políticos progressistas ainda não propuseram algo sistêmico e de longo prazo
para minorar o sofrimento das comunidades vulneráveis tomadas pelo crime
organizado. Certamente são muito importantes por defenderem o estado de
direito, porque isso evita a barbárie defendida por populistas de direita, pois
quando a violência estatal fica sem controles no Brasil, são os mesmos pobres,
já explorados pelos criminosos, que mais sofrem. Porém, afora algumas ações
minoritárias e fragmentadas, o centro e a esquerda não conseguiram ter um plano
maior e implementar soluções mais profundas contra as facções.
O governo Lula III representa bem essa
insuficiência progressista no combate às facções expandidas para todo o país. A
preocupação com o tema demorou a se tornar central em sua agenda. Começou a ter
maior destaque no ano passado, com a proposta do Sistema Único de Segurança
Pública (Susp), mas parecia que nem todos os governistas, incluindo ministros
poderosos, estavam realmente convencidos da necessidade dessa medida. Mas
depois da operação no Complexo do Alemão o tema do crime organizado só pode ser
prioridade máxima ao Executivo federal.
O projeto do SUSP e a Lei Antifacção são
medidas corretas, mas o governo Lula terá que convencer boa parte dos eleitores
acerca da prioridade do assunto em sua agenda. Mais do que isso, terá de
apresentar alguma agenda de curto prazo que minore o sofrimento da população
com a criminalidade e se interligue com a agenda mais ampla e estratégica.
Paradoxalmente, a CPI do Crime Organizado, pedida por quem queria montar o
palanque eleitoral da direita que acredita no dia da marmota, pode ser um
espaço para que o Executivo federal crie consensos sobre as principais medidas
na segurança pública e, assim, ganhe créditos eleitorais por isso.
De todo modo, a superação do dia da marmota
passa principalmente por dois processos. O primeiro é o da admissão de que,
para além da agenda predominante das operações salvacionistas de curto prazo,
há boas experiências em segurança pública em várias partes do país. Desde
programas antigos como o Pacto pela Paz em Pernambuco, passando por governos
estaduais que conseguiram juntar o planejamento inteligente da política pública
com uma governança integradora dos agentes públicos, como têm sido os casos da
Paraíba, Espírito Santo e, mais recentemente, do Rio Grande do Sul, aos quais
se juntam governos locais muito bem-sucedidos no combate à criminalidade, tal
qual o exemplo do Pacto Niterói Contra Violência - sim, do lado da cidade do
Rio de Janeiro há coisas além do eterno retorno da invasão policial dos morros.
É possível, aliás, recuperar o sentido mais
profundo das chamadas UPPs que por um tempo estiveram presentes no Rio de
Janeiro, como experiências de policiamento comunitário na cidade de São Paulo.
Eram propostas integradoras de medidas especificamente policiais, como a
retomada dos territórios, com ações de construção de mais oportunidades de bens
públicos às comunidades.
Não há uma dicotomia entre esses dois
objetivos. Esse modelo pode ser apoiado pelo governo federal, de forma
institucionalizada, e ainda se articular com os governos municipais, que
começam a ter uma visão mais estratégica sobre o tema, como revela a proposta
do prefeito Eduardo Paes de contratar especialistas em políticas públicas de
segurança pública, com a tarefa de produzir programas e ações baseados em
evidências.
Aqui entra o segundo passo necessário a uma
proposta que vá além do dia da marmota. A segurança pública precisa ter um
conjunto de propostas ancoradas em evidências e experiências bem-sucedidas.
Esse campo de política pública não tem a mesma densidade acadêmica, nem uma
coalizão política de gestores tão forte como a saúde. Entretanto, já há muitos
estudos e mesmo trabalhos conjuntos com governos que resultaram num
conhecimento seguro sobre o que não fazer, e várias pistas sobre o que fazer.
O ponto de partida é que não há solução única
e mágica, e o sucesso deriva de uma visão sistêmica, elencando reformas essenciais
e a articulação entre elas. Por exemplo, medidas que queiram estabelecer
tipificações penais às facções, corretas em si, serão fadadas ao fracasso se
não dialogarem com a necessária reforma do sistema prisional. Basta lembrar que
o PCC nasceu de uma ação violenta do Estado contra um presídio, e dali por
diante esse equipamento público se transformou no lugar mais importante para a
reprodução dessa facção.
Criar o Susp é o alicerce desse processo
reformador, porque gera a governança básica que articula União, estados e
municípios no combate nacional contra o crime organizado. Nenhum dos entes
conseguirá, sozinho, ter sucesso nesta empreitada. Cabe reforçar, a partir das
experiências de outras políticas públicas, que é necessário ter fóruns
federativos tripartite e bipartites (articulação do estado com os municípios)
que constituam as arenas responsáveis pela construção dos consensos e das ações
coordenadas.
A governança federativa é um passo essencial,
mas que precisará de muitas outras medidas, que devem fortalecer a inteligência
policial em torno de dados e planejamento, melhorar as condições dos
profissionais da área, integrar as polícias (especialmente a civil com a
militar), combinar a tomada dos territórios com a produção de oportunidades por
meio de bens públicos, para citar as principais (mas não únicas) propostas.
Livrar-se da maldição do dia da marmota que
predomina na política de segurança pública deveria ser o objetivo maior daqui
por diante. Transformar o tema em palanque barato é enganar mais uma vez os
cidadãos. Os que vão concorrer às eleições em 2026 provavelmente não serão os
mesmo daqui a dez anos. O sonho é construir instituições para além dos
partidarismos e personalismos de ocasião.

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