O Globo
Faz tempo que ‘forte’ deixou de ser adjetivo
inocente. Passou a servir de aposto a políticos como Trump, Putin, Orbán,
Erdogan
Alexandre de Moraes disse que “não há no
mundo Poder Judiciário tão forte quanto o do Brasil”. O devaneio napoleônico do
ministro do STF foi proclamado em evento nesta semana para explicar à plateia
por que motivo o Judiciário sofre ataques contínuos de seus “inimigos”. É,
segundo Moraes, uma reação proporcional à grandeza da instituição — que ele
poderia ter enaltecido como “atuante", “independente”, “inquebrantável” ou
outra dezena de adjetivos de que seu vasto vocabulário de juiz certamente
dispõe. Preferiu dizer que é porque o Judiciário brasileiro é “forte” — segundo
ele, o mais forte das galáxias.
Faz tempo que “forte” deixou de ser um adjetivo inocente. Na tradição da ciência política que fala em “Estados fortes” e “Estados fracos”, os Estados Unidos da Guerra Fria eram o modelo de Estado fraco, por ser descentralizado e baseado no sistema de freios e contrapesos. O Estado forte por excelência era a União Soviética: centralizado, opaco, autoritário.
Mais recentemente, o mesmo adjetivo passou a
servir de aposto a políticos como Donald Trump, Vladimir Putin, Viktor Orbán e Recep
Erdogan, salvadores da pátria dados a ostentação de virilidade, concentração de
poder e variados graus de desdém pelas instituições — integrantes da casta dos
“strongmen”, ou “homens fortes”.
Como o Estado comunista e os líderes de
inclinação iliberal, o Judiciário brasileiro é forte. Não fosse assim, o decano
da Corte e aliado de Moraes, Gilmar Mendes, não se sentiria à vontade para usar
de uma prerrogativa do Legislativo e tomar a decisão monocrática que dificulta
o impeachment de ministros do STF, entre outras medidas, reduzindo a um único
indivíduo o total de autorizados a pedir a abertura do processo — sendo esse
único indivíduo o procurador-geral da República, hoje seu amigo e ex-sócio
Paulo Gonet. Tão acintosa foi a decisão do decano que fez erguer um coro
inaudito de protestos — acordou até os mortos.
Mas, se acintosa, de inédita não teve nada.
Foi Moraes quem abriu a picada — e não com um
único golpe de facão. Quando, em 2019, passou a presidir um inquérito aberto de
ofício — que criou a bizarra figura do ministro investigador, julgador e vítima
potencial —, muita gente se calou porque os alvos eram os desprezíveis
bolsonaristas, e o inquérito era um “instrumento excepcional de autodefesa da
democracia”, segundo o então ministro Luís Roberto Barroso. Quando, no mesmo
ano, Moraes censurou os sites da revista Crusoé e O Antagonista, por causa de uma
menção ao colega Dias Toffoli feita pelo delator Marcelo Odebrecht, pouca gente
protestou porque os atingidos eram veículos identificados com o lavajatismo e o
antipetismo.
Condescendência semelhante recepcionou
diversas outras decisões de Moraes que se convencionou chamar de
“controversas”, como mandados de busca e apreensão contra empresários por
conversas — privadas — no WhatsApp; detenções em massa; longas prisões
preventivas; e penas desproporcionais para os réus do 8 de Janeiro. A lista é
longa, e a justificativa para ignorá-la era sempre a mesma: é preciso defender
a democracia da ameaça bolsonarista. Passado o período excepcional, o STF
deverá exercitar a tal “autocontenção”.
Pois o período excepcional passou, Bolsonaro
et caterva estão presos, e o decano do Supremo desafia o Legislativo à luz do
dia a fim de blindar a si e a colegas da ameaça de impeachment — mais uma
“excepcionalidade” com que o plenário da Corte deverá assentir no dia 12.
— Nossa, estou chocado. Tem jogo nesse lugar! — disse o Capitão Renault, no filme “Casablanca”, ao simular perplexidade diante da “descoberta” de que havia jogatina no estabelecimento de que ele próprio era habitué. Sim, não é de hoje que tem algo de errado nesse lugar, e esse lugar é agora o Judiciário “mais forte do mundo”, segundo Moraes. Fingir surpresa, a esta altura, é hipocrisia.

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