segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Opinião do dia: Fernando Henrique Cardoso*

Nossos partidos políticos ficaram aquém das expectativas. Sem falar na desilusão que foi o PT, mesmo o PSDB e o PMDB – um, social-democrata, o outro, democrático-popular – se enredaram na teia das corrupções, magnetizados pelo estatismo, fiador do patrimonialismo. A social-democracia envelheceu sem responder aos desafios das “sociedade em redes”: os contatos diretos voltaram a valorizar as pessoas, as novas formas de produção estagnaram a renda das classes médias e aumentaram as desigualdades. O populismo do passado, integrador das massas na política, deu passo à arrogância do populismo de direita, que espalhou o medo do imigrante, da violência e das mudanças.

Os movimentos políticos renovadores estão se organizando fora dos partidos. Entretanto, a democracia política requer formas institucionalizadas de ação. Que fazer? Renova-se a pergunta. Ainda haverá partidos capazes de se reinventar? A “nova política” dispensará partidos e será simbolizada apenas por líderes? Esse impulso carismático escapará de ser outra versão de fascismo? Duvido.

Chegou a hora de refazer percursos, de reconhecer erros e assumir, sem oportunismo, posições políticas condizentes com o estilo de produção, sociabilidade, comunicação e modo de agir contemporâneos. Em vez de aderir de corpo e alma ao “trumpismo” ou de sonhar com um estatismo caduco, é melhor agir em defesa dos interesses nacionais e populares, com postura não agressiva, mas altiva. Mãos à obra, repito.

*Sociólogo, foi presidente da República. ‘Falta fazer’, O Estado de S. Paulo, 4/8/2019.

Fernando Gabeira: Cordiais cortadores de cabeça

- O Globo

O que se coloca pela frente não é apenas brigar com Bolsonaro. O essencial hoje é pensar em como sobreviver à sua passagem

Nossa geração foi educada na crença de que os brasileiros são cordiais. Um profeta popular como Gentileza e sua frase “Gentileza gera gentileza” pareciam confirmar essa tese. Se acreditasse nisso, estaria, como algumas senhoras da minha idade, postando fotos do sol nascente com a frase “Mais um dia maravilhoso em nossa vida”.

Ultimamente, temos decapitado muito. Constatei isso em Pedrinhas, no Maranhão, em Manaus e, agora, dizem os jornais que dos 58 mortos em Altamira 16 foram decapitados.

Não conheço lugar do mundo em que isso aconteça com tanta intensidade. O Estado Islâmico, que usou a decapitação como espetáculo, parece que encerrou a temporada. Lembro-me de alguns casos no Haiti, mas isso num período de intensa luta política.

A novidade no caso é que o presidente do país não condena essas execuções e aconselha a pensar nas vítimas dos decapitados, e não nas suas cabeças cortadas. Isso nos dá uma sensação de barbárie. Mesmo os defensores da pena de morte a aceitam depois de um julgamento legal. No Brasil de hoje, as grandes organizações criminosas acabam ganhando o direito de matar, após um julgamento sumário.

Na mesma semana, Bolsonaro resolveu, sem nenhuma base, desenterrar um morto para desonra-lo. Todos os que acreditam no respeito humano protestaram.

Ao remover o passado para soprar as cinzas e fazer algum fogo, Bolsonaro questiona um dos fundamentos do nosso processo de democrático. Ele se fez num quadro conciliatório de anistia geral. Os atores radicais da época perceberam que estavam envoltos nas turbulências da Guerra Fria e expressavam internamente aqueles conflitos da época.

Ana Maria Machado: Destemperos e precedentes

- O Globo

Como narra Andersen na história das roupas novas do rei, por vezes os reinos ficam à mercê do imponderável e parecem desprotegidos. Uns espertalhões aduladores convencem o rei que de que lhe estão fazendo trajes magníficos, invisíveis a idiotas e ladrões. Vazam a informação sobre essa qualidade dos tecidos e toda a corte passa a elogiar os novos figurinos. Até que uma criança revela o óbvio: aquilo não existe e o rei está nu.

Como conta Suetônio, na Roma dos césares não houve criança para salvar a situação. Calígula resolveu nomear um novo senador: seu cavalo Incitatus. Dito e feito. Não apareceu quem o contestasse, não havia democracia, e o absurdo seguiu num crescendo — o imperador matou até a própria mãe.

Como evoca Manuel Bandeira em poema célebre, também a Espanha teve uma rainha demente, Joana a Louca — cujo poder foi limitado pelo confinamento e passou a sucessivos regentes.

Como vimos em filme premiado, o rei George III da Inglaterra ficou doido no trono, no século XVIII. A corte bem que tentou ver a loucura como excentricidade, mas a camisa de força terminou sendo inevitável. Aliás, um de seus médicos também foi chamado para tratar de outro caso de governante maluco na mesma época: nossa Maria, a Louca, de Portugal, mãe de D. João VI.

Acabou afastada, e o filho assumiu a regência em 1792 — ano em que Tiradentes, condenado no reinado dela, foi morto na forca.

Como escreveu Machado de Assis, um certo Simão Bacamarte todo poderoso diagnosticava a loucura alheia, internando aos poucos na Casa Verde os moradores que julgava insanos — até que a população achou que passava dos limites e internou o próprio alienista.

Aqui, já temos juiz do STF a classificar de inadmissível, outro a sugerir mordaça e jurista de renome a falar em interdição de alucinado. A julgar pela novela que se desenrola a cada dia, pelos destemperos, delírios vingativos e arroubos personalistas, e diante da insanidade da escalada retórica, a chapa está esquentando neste agosto.

Cacá Diegues: Democracia audiovisual

- O Globo

Numa democracia de verdade, nenhum governo, seja ele qual for, tem o direito de controlar nossa imaginação

Parece que Olavo de Carvalho compreendeu finalmente como funciona a Lei Rouanet e ensinou o mecanismo a seus leitores e discípulos. A propósito de um filme do cineasta Josias Teófilo, supostamente sobre Jair Bolsonaro, ele diz na web que “a Ancine não deu, nem vai dar um só tostão ao Josias. Só deu a autorização legal para ele tentar obter patrocínio privado. Os patrocinadores é que vão decidir se dão o dinheiro ou não”.

Bingo! É assim mesmo que funciona a Lei Rouanet: o Estado dá autorização para que o produtor corra atrás de investimento junto a empresas e contribuintes, que poderão descontar seu valor do imposto a pagar, como incentivo à cultura. Diga-se de passagem, não é esse o tipo de financiamento usado, em geral, pela indústria cinematográfica, cujos filmes são feitos graças à Condecine, uma taxa paga por todos os produtos audiovisuais consumidos no Brasil.

Assim, ao contrário do que se diz tanto por aí, sobretudo nas redes sociais, meios de comunicação onde abundam a leviandade e a irresponsabilidade, nossos filmes não são produzidos através de recursos do Estado, mas de recursos da própria atividade. Como o cinema não está no orçamento do Estado, os cineastas não têm como “mamar nas tetas” dele, como são acusados de fazer pelos inimigos do país.

Almir Pazzianotto Pinto*: Reflexões sobre o desemprego

- O Estado de S.Paulo

Real, cruel e diário, esse pesadelo exige providências enérgicas, objetivas, imediatas

Domenico de Masi, sociólogo italiano, teria adotado como leme de vida a frase “o homem que trabalha perde tempo precioso” (O Ócio Criativo, Ed. Sextante, RJ, 2000). Trabalhar seria apenas “um vício recente”, escreveu em O Futuro do Trabalho (Ed. UnB, Brasília, DF, 1999). Temos, portanto, quase 13 milhões de viciados na ociosidade e à procura de inexistente emprego. Computados diaristas, ambulantes, desalentados e desocupados o número dos sem emprego atinge algo em torno de 25 milhões.

Diferente do que apregoa Domenico de Masi, trabalhar é essencial para o ser humano. Não é vício, mas virtude. É com o trabalho diário e o suor do rosto que homens e mulheres adquirem dignidade, conquistam respeito, conseguem meios lícitos de subsistência e dão conta das obrigações com a sociedade. Trata-se de dever social. A laborfobia, ou vadiagem, é contravenção penal e moléstia contagiosa, caracterizada pela dedicação ao ócio, condenando o doente ao desprezo das pessoas de bem.

Quais as razões do desemprego? Sem diagnóstico correto é impossível prescrever a boa medicação. Nas décadas de 1940 e 1950 o mercado interno se expandiu, acelerado por elevadas taxas anuais de crescimento econômico. A implantação da indústria automobilística, nos anos de 1960, libertou-o de quase completa dependência da agricultura, do setor de fiação e tecelagem e da construção civil. 

Tornou-se intensa a procura por torneiros mecânicos, funileiros, ferramenteiros, ajustadores, desenhistas industriais, eletricistas, pedreiros, auxiliares de serviços gerais, afiadores de ferramentas, soldadores, projetistas, pintores, inspetores de esmaltação. A revista Veja, em reportagem publicada na edição de 19/12/1973, sob o título Onde está a mão-de-obra?, alude “à discreta guerra entre empregadores com o objetivo de preencher cargos vagos”. “Em matéria de emprego, a situação está boa para o trabalhador”, declarava Rubens Teodoro de Arruda, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, responsável pela “bolsa de emprego”.

Denis Lerrer Rosenfield*: A lógica do destempero

- O Estado de S.Paulo

Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada

As manifestações intempestivas do presidente da República, suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer política.

Somente agora completa o novo governo sete meses, porém tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.

A duras penas completou o novo governo a aprovação da primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já convertidos.

Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o subsidiário.

Cida Damasco: Tudo pela economia?

- O Estado de S.Paulo

Crença na retomada, apesar das loucuras do presidente, esbarra no investimento

A reforma da Previdência está bem encaminhada, as propostas para reforma tributária já mobilizam o Congresso e a equipe econômica, mal ou bem, tenta buscar algumas saídas para romper a estagnação. Quem gosta de tapar os olhos e os ouvidos para as loucuras de Bolsonaro tem tudo para se convencer de que a economia é um território isolado, onde investidores e empresas se abrigam para fazer negócios, bater metas e ganhar cada vez mais dinheiro.

Não é por acaso que, nas últimas duas semanas, enquanto se sucediam declarações e atitudes desastrosas do presidente, executivos de grandes empresas e dos mercados saíram a público para declarar que a economia vive um ciclo que “nunca antes” se viu nesse País. Sobre o destempero de Bolsonaro, ou o silêncio ou a consideração de que não compromete a economia.

Nos mercados, o bom humor é visível: a Bovespa se sustenta acima dos 102 mil pontos e o dólar abaixo dos R$ 3,90. No setor produtivo, os indicadores permanecem desfavoráveis, embora o discurso e a torcida de alguns analistas sejam de que finalmente a virada começou. Só como exemplo, a produção industrial está em queda generalizada e opera no nível de 2009. E o mercado de trabalho ainda frágil deixa à margem 28,4 milhões de pessoas, a chamada mão de obra subutilizada – que reúne desempregados, quem trabalha menos do que poderia e também quem não tem ânimo para sair de casa em busca de uma vaga.

A chave para aproximar esses dois mundos é o investimento. Há consenso de que um crescimento sustentado e não aos soluços, como tem ocorrido no Brasil, depende da retomada dos investimentos. Que estão, nesse momento, em 15,5% do PIB, bem abaixo do desejado e perto do fundo do poço da década, de 15% em 2017. E essa retomada, por sua vez, depende não só do fortalecimento da demanda existente como dos sinais de que País teremos mais à frente.

Marcus André Melo*: O mito do nordeste vermelho

- Folha de S. Paulo

O eleitor é o árbitro de trade offs entre ganhos federais e locais

Como explicar o voto presidencial no PT e o local nas oligarquias predatórias tradicionais?

Nas eleições municipais de 2012, o PC do B elegeu cinco prefeitos no Maranhão. Quatro anos depois, este número pulou para 46, aumento de 920%. O Maranhão elegeu 58% do total de prefeitos eleitos pelo partido no país.

Como explicar mudança de tal magnitude? Houve massiva conversão do eleitorado ao programa do partido? Não, a explicação é mais simples: O PC do B fez o governador em 2014.

A força centrípeta dos governadores nos estados pobres (efeito incumbente) é a chave para entender o fenômeno que tem dado margens a interpretações de que teria havido realinhamento partidário à esquerda na região. Essa visão ignora que a contraparte do voto para presidente no candidato petista é o voto para outros cargos nas oligarquias familiares ultraconservadoras e predatórias que controlam historicamente a política.

O voto presidencial tem sido influenciado pela política social. Sob FHC ela nacionalizou-se. Até então sua dinâmica era subnacional: atores locais e estaduais eram responsabilizados por programas de cunho redistributivo (exceção à política de salário mínimo e às frentes federais de emprego).

Com isso o eleitorado pobre vota nas eleições presidenciais em quem se mostrar mais eficiente em programas redistributivos federais. Em Imperatriz (MA) ou Guarulhos (SP), o eleitorado vota racionalmente: premia quem redistribui mais ou melhor. Pesquisas empíricas mostram que, controlando pela renda, há pouca variação regional do voto presidencial.

Celso Rocha de Barros*: Bolsonaro radicaliza

- Folha de S. Paulo

A boa notícia é que, conforme o bolsonarismo acelera a degradação moral, aliados de peso vão abandonando o Planalto

A coluna da última semana sobre a escalada autoritária bolsonarista ficou desatualizada rápido.

No mesmo dia em que foi publicada, Bolsonaro mentiu sobre a mortedo pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. O presidente da República disse saber que o guerrilheiro Fernando Santa Cruz foi executado por membros da guerrilha, o que é falso: os documentos da Aeronáutica provam que ele morreu no berço bolsonarista, os porões da ditadura.

A semana que começou com essa demonstração do que é o caráter do presidente da República terminou com seus apoiadores executando uma ação coordenada nas redes sociais para ofender a mãe do jornalista Glenn Greenwald, que tem câncer em estado avançado.

O iniciador do ataque foi um elemento que a ministra Damares Alves já recomendou em suas redes sociais como um profissional muito ético.

O que isso mostra é que o autoritarismo bolsonarista não é só repúdio às liberdades civis brasileiras, é um problema de saúde pública moral.

José Henrique Mariante: É a ecologia, estúpido!

- Folha de S. Paulo

Vamos pagar caro pelo corte de cabelo e pela política ambiental de Bolsonaro

Uma das maiores redes de hotéis do mundo vai deixar de oferecer os pequenos frascos de xampu e condicionador, aqueles que usamos e levamos para casa. Serão substituídos por recipientes reutilizáveis de cerâmica até o fim de 2021. InterContinental, Holiday Inn e Crowne Plaza abrem mão de 200 milhões de potinhos/ano, um milhão de quilos de plástico. Correm atrás do Marriott, que já cortou o mimo em 1.500 de seus estabelecimentos.

Em editorial de capa, The Economist diz que o “Brasil tem o poder de salvar ou destruir o mundo”. Escreve que as políticas do governo JairBolsonaro aceleram o desmatamento da Amazônia e que o processo pode alcançar ponto irreversível.

A revista lembra ainda que o “mundo deveria deixar claro a Mr. Bolsonaro que não tolerará seu vandalismo” e que consumidores precisam pressionar as empresas de alimentos a recusar carne e soja produzidas em áreas desmatadas, como já fizeram nos anos 2000.

Rascunho de relatório em discussão no IPCC (painel do clima da ONU), ao qual o Guardian teve acesso, afirma que a crise climática não é mais possível de ser resolvida apenas cortando emissões de veículos, fábricas e usinas. Humanos, que exploram 72% da superfície não congelada do planeta, precisam alterar o modo como produzem comida.

Leandro Colon: Dodge faz a lição de casa

- Folha de S. Paulo

O subprocurador Augusto Aras é o preferido, mas atual chefe da PGR emite sinais para ficar

Raquel Dodge deu a senha a Jair Bolsonaro no dia 7 de junho. “Estou à disposição, tanto da minha instituição quanto do país, para uma eventual recondução”, disse a procuradora-geral da República sobre o desejo de permanecer no posto.

Desde então, a chefe da PGR intensificou uma articulação nos bastidores, sustentada em alguns ministros do STF e parlamentares influentes. Em outra ponta, emitiu sinais para os pares no Ministério Público Federal, com os quais travou embates nos últimos dois anos. Não à toa, não quis disputar a lista tríplice da associação da categoria —provavelmente ela seria derrotada pelos colegas.

E Dodge fez o mais importante: aproximou-se de Bolsonaro,denunciado por ela por racismo e dono da caneta da indicação do próximo PGR.

Ao recorrer da decisão de Dias Toffoli (STF) que limitou o uso de dados do Coaf em investigações no país, Dodge deixou a porta aberta para manter parado o inquérito sobre Flávio, filho do presidente. Ela pede que Toffoli se limite ao caso do senador do PSL-RJ, que pediu a suspensão da apuração até análise em plenário, prevista para novembro. A procuradora-geral cumpriu o papel de recorrer, mas tomou cuidado para não incomodar o Planalto.

Fábio Zanini*: A sociedade sem Estado

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima (4/8/2019)

Descrentes de utopias estatizantes e coletivistas, libertários e anarcocapitalistas sonham com um mundo de comunidades autônomas com serviços organizados pela esfera privada, sem a intervenção de um poder central.

Na margem ocidental do rio Danúbio, entre a Croácia e a Sérvia, Liberland tem área de 7 km², equivalente a três vezes a do Principado de Mônaco. Seus habitantes dão a palavra final sobre qualquer lei e podem vetar normas que atentem contra a vida, a propriedade e a liberdade.

Mesmo não sendo reconhecido por nenhum Estado, o micropaís, fundado em 2015 por um ativista tcheco, tem uma Constituição, cerca de mil “cidadãos” espalhados pelo mundo e um padrão monetário baseado em criptomoedas, o mérito liberlandiano.

Embora seja uma excentricidade geopolítica, o lugarejo tem relevância simbólica. Representa um experimento libertário, em que o Estado existe como uma fina moldura e a vida segue seu curso sem que haja interferência na economia e nas condutas individuais, desde que não causem prejuízo à liberdade e à existência de outras pessoas. Há cerca de 500 mil pedidos de cidadania ao país atualmente em análise, dos quais pelo menos 5.000 são de brasileiros.

Visto do Brasil, Liberland é um pontinho distante nos Bálcãs, mas os entusiastas de uma sociedade livre das amarras do Estado estão longe de terem força desprezível por aqui.

Ao contrário, a influência de libertários, com raízes na França do século 18, e seus irmãos ainda mais radicais, os anarcocapitalistas, um movimento estruturado no século 20, vem crescendo rapidamente.

Estes ultraliberais estão hoje presentes em dezenas de institutos espalhados pelo Brasil, ocupam cargos importantes no governo federale dominam grande parte de setores da nova economia digital, como o de criptomoedas. Fazem barulho nas redes sociais e possuem uma presença considerável de jovens na faixa entre 20 e 30 anos.

Grosso modo, libertários aceitam o Estado como pouco mais do que um garantidor de fronteiras. Anarcocapitalistas (ou “ancaps”), um subgrupo libertário, nem isso aceitam. Para eles, todos os serviços, inclusive a segurança, devem ser privados. “Imposto é roubo” é o grito de guerra de todos.

Nos EUA, a figura mais visível é a do ex-candidato a presidente Ron Paul, que obteve 0,5% dos votos em 1988 concorrendo pelo Partido Libertário.

“Lá os libertários são considerados um grupo meio maluquinho, até para se diferenciar do termo ‘liberal’, que foi capturado pela esquerda”, diz Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil e colunista da Folha, que se define como um “ancap”. “A gente ficou maior que eles [americanos]: mais influente, mais profissional. No Brasil, você tem libertários e anarcocapitalistas em posições de comando”, afirma.

O universo liberal contempla, em seu círculo mais amplo, todas as vertentes que defendem um papel preponderante do indivíduo na organização da sociedade e no funcionamento da economia.

Liberais “mainstream” pregam a privatização de empresas e as parcerias público-privadas, com o Estado servindo de garantidor de regras e fiscalizador de serviços. Estiveram em voga no Brasil nos anos 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sempre consideraram os ultraliberais uma franja extremista, mas agora o jogo parece estar se equilibrando.

Libertários e anarcocapitalistas são adeptos da Escola Austríaca, cujas referências maiores são os economistas Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992). Para eles, a economia não deve ser regulada pelo Estado, mas funcionar a partir de interações voluntárias e desimpedidas entre agentes privados.

Outro expoente, sobretudo para libertários, é a escritora russa Ayn Rand (1905-1982), uma defensora radical do racionalismo e do objetivismo, como na novela “A Revolta de Atlas”, de 1957. O americano Murray Rothbard (1926-1995) levou o pensamento dos chamados “austríacos” um passo adiante e hoje é considerado o pai do anarcocapitalismo.

Em dezenas de livros e artigos, pregou que, para haver liberdade, o Estado deve, simplesmente, deixar de existir. “O Estado oferece um canal legal, ordeiro e sistemático de predação da propriedade privada. Torna certeiro, seguro e relativamente pacífico o sustento de uma casta parasita da sociedade”, escreveu em uma de suas obras mais importantes, “A Anatomia do Estado”, de 1974.

Para Rothbard, é falsa a acepção hobbesiana de que o Estado é um contrato social. “Ele sempre nasceu da conquista e da exploração”, diz.

Há ecos no anarcocapitalismo de seu primo talvez mais famoso, o anarquismo de esquerda. O principal, obviamente, é a negação do Estado nacional, uma invenção do século 17 surgida do Tratado de Vestfália (1648), que pôs fim a uma série de guerras religiosas na Europa e reconheceu a soberania de um monarca sobre seu território.

Sergio Lamucci: Além das reformas e da retomada da economia

- Valor Econômico

Ações do governo no ambiente e na educação preocupam

O avanço da reforma da Previdência no Congresso é sem dúvida positivo para a economia, contribuindo para reduzir as dúvidas em relação ao equilíbrio das contas públicas no longo prazo. Com menos incertezas quanto à situação fiscal do país, empresas tendem a investir mais e o Banco Central (BC) tem mais segurança para cortar os juros básicos. O cenário para a atividade econômica nos próximos meses se torna mais favorável, ainda que a recuperação deva ser gradual.

Depois de uma recessão que durou quase três anos e de uma recuperação lenta, a volta de um ritmo de crescimento um pouco mais forte será mais do que bem vinda, num país com 12% de desemprego, o equivalente a 12,8 milhões de pessoas. A perspectiva de que a agenda de concessões de infraestrutura e de privatizações ganhe fôlego também é importante para a economia avançar com mais firmeza, assim como a promoção de uma agenda de reformas constitucionais e outras medidas para melhorar a produtividade e consolidar o ajuste das contas públicas.

No entanto, concentrar a atenção somente no avanço das reformas e na possível retomada da atividade é miopia. Há várias áreas em que as ações do governo são preocupantes, com grande potencial de provocar estragos, inclusive com o risco de afetar negativamente o crescimento. É o caso evidente das políticas da gestão de Jair Bolsonaro para o ambiente e a educação - e estão longe de ser as únicas.

Bruno Carazza*: "Curvo-me diante de ti"

- Valor Econômico

Governo precisa resistir às pressões tributárias

Era uma vez um país continental, com uma legislação tributária caótica, que tornava a vida de cidadãos e empresários um inferno. Impostos incidiam em cascata, tirando a competitividade dos produtos no exterior. O emaranhado de normas emitidas pela União e pelas dezenas de Estados exigia um aparato burocrático que consumia tempo e recursos das empresas, além de estimular a sonegação. Diversos setores da economia faziam lobby para extrair do governo e do Legislativo incentivos e isenções, e a carga tributária foi sendo aumentada ao longo dos anos para controlar os déficits fiscais.

Durante décadas se debatia a necessidade urgente de uma reforma tributária. Sucessivos governos de centro-esquerda apresentaram projetos que acabaram não avançando no Congresso - todos concordavam que era preciso mudar, mas ninguém queria correr o risco de perder arrecadação. Até que um líder nacionalista, vindo de um partido de direita, chegou ao Poder e assumiu a reforma tributária como um dos alicerces de seu programa econômico liberal.

A proposta era simplificar e racionalizar o sistema, aproximando-o dos principais países do mundo: o novo Imposto sobre Bens e Serviços substituiria diversos tributos federais e estaduais, incidindo apenas sobre o valor adicionado ao longo da carreira produtiva, com alíquotas uniformes em todos os Estados e cobrança no destino, para acabar com a guerra fiscal. As alíquotas foram balanceadas de forma a minimizar seu impacto sobre as contas públicas e também se criou um fundo para suavizar as perdas dos Estados com a nova metodologia.

Gustavo Loyola*: Recriação da CPMF é má ideia

- Valor Econômico

Trata-se de um equívoco que representaria um enorme retrocesso no já complicado sistema tributário nacional

O governo federal está cogitando substituir as contribuições patronais incidentes sobre a folha salarial por um tributo que incidiria de forma cumulativa sobre as transações financeiras. Trata-se de um equívoco que representaria um enorme retrocesso no já complicado sistema tributário nacional.

Há várias razões que desaconselham a existência de um tributo sobre transações financeiras. A mais relevante delas é seu caráter cumulativo. A cobrança desse tipo de tributo afeta diretamente a eficiência econômica. Do ponto de vista microeconômico, a cumulatividade tributária gera uma organização da produção que não necessariamente é a mais eficiente. A decisão de verticalizar ou não uma determinada etapa da cadeia produtiva, por exemplo, acaba sendo tomada considerando-se os efeitos da tributação cumulativa e não por razões de eficiência econômica.

Tipicamente, o imposto cumulativo é um custo de transação que, na acepção de Coase, vai influir nos arranjos produtivos. O ideal é sempre buscar ter um sistema tributário que seja neutro no sentido de não distorcer decisões de indivíduos e empresas que deveriam ter em conta apenas considerações econômicas.

Ricardo Noblat: Melhor que Lula já vá se acostumando

- Blog do Noblat / Veja

Melhor que Lula já vá se acostumando

É pule de dez nos corredores do Supremo Tribunal Federal que Lula não será liberado para cumprir em casa o resto da sua pena no processo do triplex do Guarujá. O governo não quer, os militares também não, o PIB é contra e grande parte da mídia idem.

É pule de dez que o Supremo não atentará contra a reputação do ex-juiz Sérgio Moro. Alguns ministros, individualmente, poderão fazê-lo, mas o coletivo jamais. Primeiro porque pôr Moro em risco significaria abrir a porta da cela para a saída de Lula.

Segundo, porque outras decisões da justiça correriam o risco de ser questionadas. Assim, o melhor é deixá-lo sossegado a lamber suas feridas. Do procurador da República Deltan Dallagnol, encarregue-se o Ministério Público Federal cuja tendência é a de protegê-lo.

De maneira que, salvo graves, contundentes, escandalosas revelações que ainda possam emergir dos arquivos do site The Intercept e provocar uma hecatombe, em nome dos superiores interesses da Nação a Vaza Jato não prevalecerá sobre a Lava Jato.

Agosto, mês do cachorro louco, do ano sem graça de 2019 – ou excessivamente engraçado, descambando para o quase trágico.

Bolívar Lamounier: A política no tempo da raiva

- Revista IstoÉ

Mudaram os pontos cardeais econômicos, mas no culto à bravata Bolsonaro é igual a Lula. E como o furor de ambos é carregado de desconfianças, não nos livraremos desse drama enlouquecido tão cedo

A indagação talvez mais importante e perturbadora do momento é se a política raivosa se trata de um fenômeno passageiro ou veio para ficar. Realmente, hoje o que mais nos chama à atenção são o aumento da agressividade e de uma sedutora grossura. Parece ser um fenômeno mundial, mas neste meu espaço mal cabe o Brasil. E isso é bom, pois me afasta da descabida pretensão de tudo compreender.

Por aqui, as sementes da raiva estão bem à vista. Eclodiram na era Lula, robusteceram-se na esteira da recessão, do empobrecimento do País, do desvendamento da corrupção e desabrocharam para valer com o enfrentamento de 2018 entre o bolsonarismo e o petismo.

A primeira pista que me vem à mente é perguntar o que há em comum entre Lula e Bolsonaro. No culto da macheza, eles são perceptivelmente iguais. É assim que, em geral, os populistas se apresentam: são avessos às luvas de pelica e gostam mesmo é de dar murros na mesa. A macheza de Lula apoiava-se nos comícios ululantes, na massa movida à mortadela, nas bandeiras vermelhas. A de Bolsonaro, na encenação teatral do tipo corajoso, que topa qualquer parada.

Murillo de Aragão: Medo e autoritarismo

- IstoÉ

Só damos crédito para nossas instituições diante de interesses. Foi assim entre os apoiadores da Lava Jato. Agora o mesmo vale para a turma da Vaza Jato

Como bem disse o historiador José Murilo de Carvalho, no Brasil a república não é republicana. E o que faz nosso sistema político ser assim? É o fato de, ao longo de nossa história, o conjunto das forças sociais ter se movido mais por interesses do que por princípios ou valores. Essa prevalência se expressa na forma do autoritarismo que permeia a política nacional desde sempre. Interesses são defendidos pela imposição do medo como estratégia e da não aplicação do direito e da lei.

O autoritarismo sempre foi e sempre será o maior inimigo da lei e da ordem por atropelar as instituições, colocando os interesses acima dos princípios gerais. O autoritarismo desmoraliza as instituições e, sem estas, não se pode assegurar o exercício do direito, nem tampouco a aplicação de princípios e valores. A situação se torna mais complexa quando o autoritarismo não é percebido como tal. Ou só é percebido e condenado se praticado pelo adversário da vez. A ausência de princípios e de valores acaba suavizando a interpretação do que seja ou não autoritarismo.

Reduzir o spread bancário é indispensável neste momento: Editorial / Valor Econômico

No início desta década, o então governo prometeu adotar uma série de medidas para reduzir o chamado spread bancário, que é a diferença entre o que as instituições financeiras pagam ao captar os recursos e o que elas cobram nos seus empréstimos. Todas as tentativas feitas pelo governo resultaram em nada e o spread no Brasil só é inferior ao praticado em Madagascar, de acordo com informações que foram apresentadas na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, em seminário sobre o tema, no ano passado.

O fenômeno, no entanto, ficou ainda mais incompreensível, pois, apesar de o Banco Central estar praticando a menor taxa básica de juros desde a criação do real, a moeda que colocou um fim na hiperinflação, o spread bancário não cede. Ao contrário, ele subiu do fim do ano passado para este ano. Quem olhar os dados do Banco Central vai constatar que o spread, nos créditos livres dos bancos, estava, em termos médios, em 27,8% em dezembro de 2018 e subiu para 31,5% em junho passado.

Falta dinheiro no governo, mas sobra em 220 fundos: Editorial / O Globo

Engessamento orçamentário impede a transferência de recursos paralisados para áreas sem dinheiro

Com excesso de otimismo, o investimento público federal deverá alcançar R$ 40 bilhões neste ano. É pouco, sobretudo se for considerado o fato de que a despesa da União, descontados juros da dívida pública, será de R$ 1,4 trilhão.

Gasta-se muito, investe-se pouco. Na realidade, cada vez menos: o investimento público federal, em valores de hoje, é metade do que era cinco anos atrás.

Esse cenário indica a gravidade da crise fiscal, cuja perspectiva de solução no médio prazo depende da rapidez nas reformas estruturais do ambiente econômico.

Reflete, também, um legado de balbúrdia nas finanças públicas, resultante do engessamento do Orçamento da União a partir de interesses setoriais e corporativos.

Exemplos dessa herança dominam o cotidiano da Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

Decálogo do bom governante: Editorial / O Estado de S. Paulo

Governar é difícil. Governar o Brasil, por sua vastidão territorial, multiplicidade étnica e cultural, histórica desigualdade e deficiência crônica em áreas básicas para o progresso humano, é tarefa para quem, antes de tudo, enxergue essas questões como estímulo e, de forma empática, saiba liderar a Nação na busca por soluções para nossas mazelas.

As variáveis que levaram os eleitores a escolher Jair Bolsonaro como presidente da República em outubro do ano passado já não importam, senão para a historiografia. A democracia não corre o risco de embolorar quando a sociedade se mostra capaz de aprender as lições deixadas por cada pleito. Aliás, é dessa abertura dos cidadãos ao aprendizado cívico que vem o oxigênio que mantém a democracia viva. Ora avançando, ora retrocedendo, o que importa é o constante apuro do discernimento dos eleitores.

Os cidadãos serão mais uma vez convocados às urnas no ano que vem para escolher os prefeitos e vereadores dos 5.570 municípios do País. É uma escolha muito importante porque é o município a base do sistema político brasileiro. É no município que acontecem os fatos que mais afetam a vida de milhões de homens e mulheres no País. Trata-se, pois, de mais uma excelente oportunidade para os eleitores buscarem informação confiável, sopesarem seus interesses e necessidades e identificarem no rol de candidatos aqueles que julgam estar preparados para melhorar suas vidas.

Inpe na encruzilhada: Editorial / Folha de S. Paulo

Após vexatória demissão de diretor, caberá a ministro da Ciência escolher entre ciência e ideologia

Por ora, a razia de Jair Bolsonaro (PSL) contra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) acarretou estragos só na imagem do presidente e de seu ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes.

O próprio Inpe saiu engrandecido com a atitude do diretor exonerado Ricardo Galvão, que não se dobrou à sanha obscurantista de Bolsonaro e a sua fixação com sonegar dados objetivos de desmatamento. Isso não significa que a instituição não possa ainda ser prejudicada pelo mandatário e pelo astronauta que pousou no ministério.

Galvão, como tem sido praxe nos centros de pesquisa da pasta, foi escolhido com base em lista tríplice composta por um comitê independente de busca.

As melhores instituições científicas do mundo —incluindo brasileiras— recorrem ao método para minorar a influência política na indicação de dirigentes, que deve pautar-se apenas no mérito como pesquisador e na capacidade gerencial dos candidatos.

Poesia / Fernando Pessoa: Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Música / Mariza: Beijo de Saudade