Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO
“Tem gente aí morrendo que nunca morreu antes” ou “para morrer basta estar vivo” ou ainda: “só morre gente boa, canalha não morre...”
Não adianta: tudo que se disser sobre a morte é lugar-comum, inclusive este. Mas a verdade é que morreu muito amigo nos últimos dias. Primeiro, o melhor roteirista do Brasil, Leopoldo Serran, com quem escrevi meu melhor filme, Tudo bem, há trinta anos, depois, o Fernando Torres, grande ator e diretor de inesquecíveis montagens (até hoje lembro do Beijo no asfalto que ele dirigiu em 62), em seguida, foi-se Fernando Barbosa Lima, um inventor poético da TV. Nunca me esqueço do Jornal de Vanguarda, da velha TV Tupi, quando o locutor declarou: “Morrem 5 crianças pobres por minuto no Brasil”. Aí, Fernando tirou o jornal do ar por 1 minuto e quando voltou, o locutor completou: “Enquanto estávamos fora do ar, morreram cinco crianças de fome”.
Só assim se pode falar da morte: pela ausência. Nós apenas saímos do ar. Ela é tão banal que inventamos solenes rituais para dar-lhe consistência. Inventamos religiões ou filosofias agnósticas para nos consolar – crenças materialistas: “O universo é a eternidade. Deus é o universo, a substância. Fazemos parte de Deus. Ele está nas galáxias e no orgasmo, nos buracos negros e no coração batendo...” “Grandes merdas” – penso hoje – pois quando ela chega acaba a literatura. A morte só tem “antes”", não tem “depois” - no Ivan Iliitch do Tolstói, quando ela chega, acaba o conto.
A morte não está nem aí para nós, ela tem “vida própria”. A gente vai para um lado, o corpo para o outro. Ela nos ignora, nossos méritos, nossas obras. Outro lugarzinho-comum: “Só nos resta viver da melhor maneira possível até o fim. Tem mais é que curtir, gente boa...” Pois é, há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo, torrando dezenas. Do prédio em frente, as teleobjetivas fotografaram todas as agonias. Até hoje, lembro-me da foto em cores de um homem de terno, pastinha James Bond, agachado numa janela do vigésimo andar, com o fogo às costas. Seu rosto mostrava duvida: “O que é melhor para mim? Morrer queimado ou me jogar?” Ele curtiu até o fim e se jogou.
A coisa que mais me irrita na morte é que o morto fica logo desatualizado. As notícias vão rolar e eu nada saberei. Haverá crises mundiais, filmes que estréiam, músicas novas, e eu ficarei lá embaixo, sem saber das novidades. Quem foi eleito o Obama ou aquele direitista escroto? Quem virá depois do Lula? Quem ganhou a Copa? É insuportável a desinformação dos falecidos.
Meu avô me disse uma vez: “Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a Avenida Rio Branco...” Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia, depois passava na Colombo, comprava goiabada “cascão” e queijo de Minas e voltava para casa, de terno branco e sapato bicolor.
Por isso, quando me penso morto, eu, o único que não irei ao meu enterro, de que terei saudades? Não terei saudades de grandes amores, de megashows da vida de hoje, excessiva e incessante. Não. Debaixo da terra, terei saudades de irrelevâncias essenciais, terei saudades de algumas tardes nubladas de domingo que só o carioca percebe, tudo parado, com os urubus dormindo na perna do vento, como dizia o sempre presente Tom, do radinho do porteiro ouvindo o jogo no Maracanã, terei saudades do cafezinho nas beiras dos botequins, de certos tons de roxo e rosa em Ipanema antes da noite cair, saudades do cafajestismo poético dos cariocas, saudades dos raros instantes sem medo ou culpa, de alguns momentos de felicidade profunda, sem motivo, apenas pela gratidão de respirar.
Não terei saudades dos fatos e notícias, nada do mundo febril, só a quietude, o silêncio entre amigos na paz de um bar, papos de cinéfilo, risos proletários e camaradagem de subúrbio, do samba que nos envolve nas rodas pobres com a alegre sabedoria da desesperança, da Lapa, da Avenida Paulista de noite, de Noel Rosa, pernas cruzadas de mulheres inatingíveis, terrenos baldios de minha infância, Paris (claro), Erik Satie, João Gilberto, Matisse, Rimbaud, João Cabral, o tremor de medo e desejo na hora do amor, saudades da primeira namorada no sofá-cama rasgado do apartamentinho secreto do Partidão, com o cartaz dos girassóis de Van Gogh e uns livros da Acadêmica Soviética, tenho saudades da utopia, das madrugadas políticas, da boemia da esquerda, soldados ingênuos de uma guerra invisível, tenho saudades da delicadeza, da compaixão, também da alegria selvagem da vingança nas raras vitórias contra os canalhas, saudades da literatura, da “frágil lua nova”, de Borges, do prazer da arte, Fellini, Shakespeare e Tintoretto em Veneza para sempre, de Cantando na chuva – o maior hino da alegria americana, saudades do piano-bar do Hotel Carlyle, de Thelonius Monk, saudades de Fred Astaire dançando Begin the beguine com Eleanor Powell, felizes para sempre dentro do universo estrelado.
Há várias mortes. Há brutas tragédias, fomes e bombas, horrendos desastres, mas, na morte óbvia, comum, caseira, só temos duas escolhas: súbita ou lenta. Você, frágil leitor, qual delas prefere? O rápido apagar do “abajur lilás” de um ataque cardíaco, ou o lento esvair da vida, sumindo com morfina? Se eu pudesse escolher, queria morrer como o velho Zorba, o grego, em pé, na janela, olhando a paisagem iluminada pelo sol da manhã. E, como ele, dando um berro de despedida.
DEU EM O GLOBO
“Tem gente aí morrendo que nunca morreu antes” ou “para morrer basta estar vivo” ou ainda: “só morre gente boa, canalha não morre...”
Não adianta: tudo que se disser sobre a morte é lugar-comum, inclusive este. Mas a verdade é que morreu muito amigo nos últimos dias. Primeiro, o melhor roteirista do Brasil, Leopoldo Serran, com quem escrevi meu melhor filme, Tudo bem, há trinta anos, depois, o Fernando Torres, grande ator e diretor de inesquecíveis montagens (até hoje lembro do Beijo no asfalto que ele dirigiu em 62), em seguida, foi-se Fernando Barbosa Lima, um inventor poético da TV. Nunca me esqueço do Jornal de Vanguarda, da velha TV Tupi, quando o locutor declarou: “Morrem 5 crianças pobres por minuto no Brasil”. Aí, Fernando tirou o jornal do ar por 1 minuto e quando voltou, o locutor completou: “Enquanto estávamos fora do ar, morreram cinco crianças de fome”.
Só assim se pode falar da morte: pela ausência. Nós apenas saímos do ar. Ela é tão banal que inventamos solenes rituais para dar-lhe consistência. Inventamos religiões ou filosofias agnósticas para nos consolar – crenças materialistas: “O universo é a eternidade. Deus é o universo, a substância. Fazemos parte de Deus. Ele está nas galáxias e no orgasmo, nos buracos negros e no coração batendo...” “Grandes merdas” – penso hoje – pois quando ela chega acaba a literatura. A morte só tem “antes”", não tem “depois” - no Ivan Iliitch do Tolstói, quando ela chega, acaba o conto.
A morte não está nem aí para nós, ela tem “vida própria”. A gente vai para um lado, o corpo para o outro. Ela nos ignora, nossos méritos, nossas obras. Outro lugarzinho-comum: “Só nos resta viver da melhor maneira possível até o fim. Tem mais é que curtir, gente boa...” Pois é, há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo, torrando dezenas. Do prédio em frente, as teleobjetivas fotografaram todas as agonias. Até hoje, lembro-me da foto em cores de um homem de terno, pastinha James Bond, agachado numa janela do vigésimo andar, com o fogo às costas. Seu rosto mostrava duvida: “O que é melhor para mim? Morrer queimado ou me jogar?” Ele curtiu até o fim e se jogou.
A coisa que mais me irrita na morte é que o morto fica logo desatualizado. As notícias vão rolar e eu nada saberei. Haverá crises mundiais, filmes que estréiam, músicas novas, e eu ficarei lá embaixo, sem saber das novidades. Quem foi eleito o Obama ou aquele direitista escroto? Quem virá depois do Lula? Quem ganhou a Copa? É insuportável a desinformação dos falecidos.
Meu avô me disse uma vez: “Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a Avenida Rio Branco...” Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia, depois passava na Colombo, comprava goiabada “cascão” e queijo de Minas e voltava para casa, de terno branco e sapato bicolor.
Por isso, quando me penso morto, eu, o único que não irei ao meu enterro, de que terei saudades? Não terei saudades de grandes amores, de megashows da vida de hoje, excessiva e incessante. Não. Debaixo da terra, terei saudades de irrelevâncias essenciais, terei saudades de algumas tardes nubladas de domingo que só o carioca percebe, tudo parado, com os urubus dormindo na perna do vento, como dizia o sempre presente Tom, do radinho do porteiro ouvindo o jogo no Maracanã, terei saudades do cafezinho nas beiras dos botequins, de certos tons de roxo e rosa em Ipanema antes da noite cair, saudades do cafajestismo poético dos cariocas, saudades dos raros instantes sem medo ou culpa, de alguns momentos de felicidade profunda, sem motivo, apenas pela gratidão de respirar.
Não terei saudades dos fatos e notícias, nada do mundo febril, só a quietude, o silêncio entre amigos na paz de um bar, papos de cinéfilo, risos proletários e camaradagem de subúrbio, do samba que nos envolve nas rodas pobres com a alegre sabedoria da desesperança, da Lapa, da Avenida Paulista de noite, de Noel Rosa, pernas cruzadas de mulheres inatingíveis, terrenos baldios de minha infância, Paris (claro), Erik Satie, João Gilberto, Matisse, Rimbaud, João Cabral, o tremor de medo e desejo na hora do amor, saudades da primeira namorada no sofá-cama rasgado do apartamentinho secreto do Partidão, com o cartaz dos girassóis de Van Gogh e uns livros da Acadêmica Soviética, tenho saudades da utopia, das madrugadas políticas, da boemia da esquerda, soldados ingênuos de uma guerra invisível, tenho saudades da delicadeza, da compaixão, também da alegria selvagem da vingança nas raras vitórias contra os canalhas, saudades da literatura, da “frágil lua nova”, de Borges, do prazer da arte, Fellini, Shakespeare e Tintoretto em Veneza para sempre, de Cantando na chuva – o maior hino da alegria americana, saudades do piano-bar do Hotel Carlyle, de Thelonius Monk, saudades de Fred Astaire dançando Begin the beguine com Eleanor Powell, felizes para sempre dentro do universo estrelado.
Há várias mortes. Há brutas tragédias, fomes e bombas, horrendos desastres, mas, na morte óbvia, comum, caseira, só temos duas escolhas: súbita ou lenta. Você, frágil leitor, qual delas prefere? O rápido apagar do “abajur lilás” de um ataque cardíaco, ou o lento esvair da vida, sumindo com morfina? Se eu pudesse escolher, queria morrer como o velho Zorba, o grego, em pé, na janela, olhando a paisagem iluminada pelo sol da manhã. E, como ele, dando um berro de despedida.
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