segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Contra a farsa discursiva


José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO /mais!

Descrédito das promessas dos candidatos pode estar abrindo caminho para uma política mais responsável

O primeiro turno das eleições municipais de 2008 nos trouxe surpresas. Não houve a maré vermelha, pelo menos do ponto de vista estratégico, tal como era esperada pela imprensa, o PMDB se fortaleceu como a noiva mais cobiçada do pedaço e o PSDB tende a manter e até mesmo conquistar posições importantes na luta política.

Também emergem novas lideranças. Fernando Gabeira [PV] vai para o segundo turno na cidade do Rio de Janeiro como se tivesse mergulhado na fonte da juventude. Numa cidade cuja política tem se deteriorado a cada passo, onde o crime organizado pressiona eleitores a ponto de a Justiça Eleitoral precisar acionar o Exército para garantir a livre expressão das vontades, um candidato de bem -e não receio usar essa palavra- disputa a prefeitura, no mínimo se afirmando como um político acatado por ter opiniões definidas.

Desconfiança

O desempenho inesperadamente fraco do trio Aécio-Fernando Pimentel-Marcio Lacerda [respectivamente, PSDB, PT e PSB, em Belo Horizonte] nos faz desconfiar daquela disputa política que não é nem cara nem coroa.

Não é a trilha que tem caracterizado o lulismo? Este tem engolido qualquer alteridade política, desidratando as oposições, que, sem rumo, em vez de perguntar pelo país que queremos, tentam se distinguir na base do grito.

Creio que errou Aécio Neves ao procurar desenhar uma liderança política dissolvendo ainda mais a polaridade ideológica entre PT e PSDB, que está sob a ameaça de se reduzir a uma disputa pelo poder meramente enquanto poder.

Não há dúvida de que numa eleição municipal preponderam fatores locais, mas me parece que o eleitor desconfia de uma candidatura que unicamente se propõe a ser eficaz num campo onde todas as vacas são pardas.

Não é contra isso que Leonardo Quintão [PMDB-MG] se firmou como voz solitária e dissonante, valendo pela diferença?

Creio que dissonância semelhante ajudou Gilberto Kassab [DEM] a sobrepujar Geraldo Alckmin [PSDB] e Marta Suplicy [PT], saindo com vantagem ponderável na disputa do segundo turno.

Mas no que ele foi diferente? Tudo parece indicar o contrário. Os prefeitos em exercício tendem a ser reeleitos. Pudera, em geral os orçamentos municipais aumentaram quase 50% e são poucos aqueles que deixam de utilizar a máquina pública a seu favor.

[A pesquisadora] Fátima Jordão me apontou uma diferença interessante: enquanto a campanha de Marta foi mais nacional, inclusive usando imagens que seriam significativas no Nordeste, mas pouco relevantes para um paulistano, Kassab acentuou o lado municipal de seu programa, mostrou a eficácia da sua gestão. Ele chegou mais perto do eleitor, mostrou-se, penso eu, mais verdadeiro.

É de notar que, na pesquisa Datafolha publicada na quinta passada, em que Kassab aparece 17 pontos à frente de Marta, a comparação dos votos estratificados mostra uma inversão significativa: Kassab sobe conforme aumentam a escolaridade e a renda familiar dos eleitores, enquanto Marta cresce conforme elas diminuem.

Caberia dizer que Marta está mais à esquerda do que Kassab, quando obtém maior penetração nas camadas de renda e escolaridade mais baixas? Hoje em dia é preciso ter muito cuidado no emprego do conceito de esquerda. Esquerdista não é apenas o político que tem mais apelo popular, pois, sob esse critério, Benito Mussolini teria sido um político de esquerda.

Antes de tudo, não cabe à esquerda procurar atravessar o véu retórico que encobre toda a política? Não deveria ser ela mais veraz do que um verdadeiro político? Seria ridículo imaginar Kassab representando a esquerda, mas, segundo seu comportamento, não pode vir a ser um afluente dela?

Cada vez mais a política contemporânea se envolve numa farsa discursiva. Nisso o lulismo é exemplar. O presidente Lula costuma falar o que lhe vem na veneta, mas com tanta convicção e tal capacidade de convencimento que parece ser o arauto da verdade popular.Santa incoerência

Quem disso duvida, repare no que tem dito sobre a crise econômico-financeira, desde quando imputou toda a responsabilidade "ao Bush" até agora, quando diz ter assumido o leme do navio no meio da tempestade. Aliás, fazer sem levar em conta o que já disse é uma das características do movimento político encabeçado por ele.

E somos agradecidos por essa incoerência. O que seria do país se tivesse feito tudo o que já prometeu durante sua vida política?

O discurso político sem peias é hoje fenômeno universal. Basta prestar atenção ao que dizem Silvio Berlusconi [premiê italiano] e Nicolas Sarkozy [presidente francês] para que se perceba que tendem igualmente a falar o que lhes passa pela cabeça.

Interessante é que, conforme se acirra a disputa entre Barack Obama e John McCain, mais este atira para todos os lados, enquanto aquele contorce o seu discurso, dotado de uma elegância retórica ímpar, para vir mais tarde agir como presidente conforme o peso das circunstâncias.

Em resumo, o político contemporâneo fala o que vai fazer, mas de tal modo que possa mais tarde fazer o contrário.

Exagero no caso de Obama, pois, embora o mote da mudança ainda se apresente vazio, a maneira pela qual organiza sua equipe e convoca a população para uma nova fase da política americana já vai adquirindo um contorno de verdade.

Aproximar o discurso do que se pode tentar fazer verdadeiramente me parece uma das tarefas políticas que nos incumbem no momento. Não é porque o capital financeiro se deslocou da economia real que sua crise a deixará incólume.

"Mutatis mutandis", o apodrecimento do discurso político não pode estar abrindo caminho para uma política mais responsável no que ela afirma e no que ela faz? A democracia ensina o eleitor a pensar. Não está na hora de os políticos se mostrarem mais acurados e mais verazes a respeito de tudo aquilo que prometem? Estas eleições de 2008 não fazem transparecer essa demanda?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Nenhum comentário: